“Como os mendigos e as putas, nós sabemos reconhecer aqueles que vão nos estender as mãos. Com esses trocamos o que somos e não o que temos”. Essas são frases do psicanalista e escritor Roberto Freire que bem traduzem o clima de um Fórum Social Mundial. Encontrar e rever antigos amigos, conhecer novas pessoas, buscar os temas mais atuais para acompanhar e debater. Há sempre uma generosidade que se expressa da militância à curiosidade.
O Fórum Social que nasceu como um contraponto de Davos, hoje se torna o mais importante espaço de reflexão de toda a perplexidade desencadeada por um triângulo de crises: econômica, social e ambiental. Prestigiado pela expectativa da presença de cinco presidentes latino-americanos, patrocinado pelo Governo do Estado do Pará, o Fórum é e deve continuar sendo um espaço da Sociedade.
Antes mesmo da marcha de abertura, vários grupos se movimentam e discutem. O Fórum Mundial da Educação promoveu um grande encontro de educadores para discutir “Educação, Transgressão e Construção da Cidadania Planetária”. A mesa de abertura contou com diversas autoridades e a mesa de discussões, coordenada pelo educador Moacir Gadotti, trouxe o teólogo Leonardo Boff e a senadora Marina Silva que deram um norte ético para as discussões da crise e do meio ambiente.
Para Boff a crise é uma crise do sistema global e coloca a grande questão de como criar alternativas que incluam toda a espécie humana e todas as espécies vivas. Propõe cinco princípios como bases para uma nova civilização: Sustentabilidade da Vida e do Planeta, Cuidado com a Natureza, Respeito ao Direito de Existir, Responsabilidade Universal (não contaminar as águas e o ar, não fazer guerras ou o pior que pode acontecer que é não fazermos nada) e Cooperação. Além dos princípios sugere quatro virtudes: a hospitalidade, a convivência das diferentes formas de vida, a tolerância e a comensalidade (todos têm o direito de comer).
Marina Silva situou inicialmente o que entende por transgressão. Citou Edgard Morin para quem a mudança, no princípio, é apenas um pequeno desvio. Transgredir seria então, escolher os pequenos desvios que queremos que prosperem.Acabar com a Amazônia é um desvio que não queremos que prospere. A visão de que os recursos naturais eram infinitos caiu por terra. Uma educação civilizatória entra no contexto das duas crises, econômica e ambiental. É preciso resolver essas duas coisas agora.
É preciso transgredir com a lógica do mercado e fazer prevalecer a lógica dos valores. Não é errado ter interesses, todos tem os seus desejos. Mas o erro é quando se sobrepõe o seu interesse aos demais. A transgressão positiva se dá no sentido de uma desadaptação dos nossos jeitos de fazer as coisas. É diante da crise que somos instados a buscar novas alternativas. Ensinar não é uma linha de mão única. Precisamos resolver as Mudanças Climáticas com todos, jovens, velhos, índios. Vamos juntar o melhor de nossas experiências para dar uma resposta nesse momento da crise.
Marina contou sua experiência de ex-aluna do MOBRAL para depois situar como grande desafio, o de sairmos daqui transformados em militantes da civilização. Não se tem resposta pronta; não foi o certo e o errado que nos trouxeram aqui, mas a abertura para novos saberes. A tradição é uma forma de conhecimento, o índio não faz modelagem matemática, mas sabe que o rio está mudando. Devemos olhar generosamente para a alteridade e as diferenças. A civilização tem que andar sobre o masculino e o feminino, isso é transgressão.
Marina contou que no ministério, se sentia como uma flecha impulsionada pelo arco da sociedade. Mesmo quando chamada de ministra dos bagres. Recitou então, uma poesia sua, sobre o arco e a flecha.
Trago essas duas falas para a discussão do meio ambiente, não apenas pela admiração que tenho por essas duas pessoas, mas porque traduzem tendências que deverão prevalecer no Fórum. No entanto, o caminho de criação das soluções é um caminho político.
Marina soube disso ao criar uma política ambiental não avessa ou submissa aos conflitos. Encarou os transgênicos, perdendo a parada, mas deixando claros para a sociedade os riscos da aprovação dos mesmos. Ao conflito da Transposição, contrapôs o programa de recuperação da bacia da São Francisco. Licenciou hidrelétricas, exigindo mudanças de projeto, de barragem de acumulação a sistema de aproveitamento a fio d’água, o que representa a redução da inundação de terras e da perda de biodiversidade. Criou as Conferências Nacionais do Meio Ambiente enquanto espaços de manifestação da sociedade.
E essa política veio para ficar. O ministro que a sucedeu também encara conflitos com o agronegócio na discussão do código florestal, com o desenvolvimento agrário e o desmatamento dos assentamentos ou do licenciamento dos mesmos. Werneck Viana já se perguntou se o governo Lula não seria um Estado Novo do PT, não pelo autoritarismo, mas pela permanente negociação entre opostos.
E os organizadores do Fórum também têm essa noção da importância da política na criação de soluções. Estão programadas discussões sobre mudanças climáticas (Destruição da Floresta e Degelo dos Andes), modelos energéticos (a luta contra as barragens), a soberania e a segurança alimentar (crítica aos agrocombustíveis), a luta pela terra, os impactos das hidrelétricas sobre as populações tradicionais, a justiça nos trilhos (impactos da mineração), a justiça ambiental, a justiça climática (ainda não sei o que é isso) as utopias do século XXI até o ecossocialismo. A tenda da Reforma Urbana vai discutir a sustentabilidade das cidades. A tenda multiuso III discute Juventude e meio Ambiente, a ecologia social, os processos de titulação, o capitalismo e a natureza e o papel das universidades frente aos grandes projetos. O difícil vai ser escolher o que acompanhar. Sejamos bem vindos.
(Por Celso S. Bredariol*, Carta Maior, 27/01/2009)
*Engenheiro Agrônomo pela UFRRJ, Ms em Educação pela FGV com tese sobre Ecodesenvolvimento e Educação Ambiental, DsC em Planejamento Ambiental pelo PPE-COPPE-UFRJ com tese sobre Negociação de Conflitos Ambientais.