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cerrado sustentabilidade rural
2009-01-20

Nascido em Molfetta, na região de Puglia, o “salto da bota” que dá forma à Itália, Gennaro Salvemini começou bem cedo a lidar com os segredos dos alimentos. Aos 13 anos, já experimentava e se encantava com os aromas e os sabores da saudável cozinha mediterrânea.

Formado em Gastronomia, aportou em Pirenópolis (GO)  há mais de uma década, onde conheceu o baru, o pequi e outros frutos do Cerrado. Mergulhou nessas possibilidades, elaborando receitas com fortes traços italianos e sotaque brasileiro.

Migrar da cidade histórica para a capital Goiânia foi questão de tempo. Lá, fundou a Nonna Pasqua, onde aproveita a diversidade da natureza em produtos variados, como licores, doces, conservas e molho pesto. Nesse item típico do cardápio italiano, os tradicionais pignoles foram substituídos com louvor pelo baru, castanha nativa e muito nutritiva do Cerrado. “Quando cheguei aqui (no Brasil), o baru era praticamente desconhecido. Mas é uma noz de mil utilidades na gastronomia. Realmente única”, enfatiza Salvemini.

Sempre apostando em matérias-primas regionais com valor agregado, a empresa vende todo mês, por exemplo, 400 quilos de castanha de baru torrada e cerca de duas mil garrafas de Baruzetto (licor feito com a castanha, imagem acima). Pode parecer pouco para certos sonhos de gigantismo comercial, mas seus produtos são encontrados em lojas do Distrito Federal e das regiões Sul e Sudeste. “Assim também divulgo o baru para outros pontos do país”, diz o italiano, que vê no horizonte próximo a exportação para países europeus e da Ásia. O Japão vai receber castanha de baru, ainda este semestre.

Criada em 2005, também na capital goiana, mas com fábrica no município de Aparecida de Goiânia, a Iguarias Produtos Alimentícios descobriu no pequi uma oportunidade para promover a economia local e estadual com a produção de conservas, molhos e cremes. O fruto amarelado é o carro-chefe da empresa, cujos frascos são encontrados em prateleiras de Goiás, Distrito Federal e até do Amazonas. Nos últimos três anos, consumiram cerca de dez toneladas de pequi.

“É um bom nicho de mercado, mesmo com outras empresas já o explorando. A estrutura de produção não precisa ser muito grande. Mas como o pequi tem sabor e cheiro muito específicos, há certa dificuldade para se abrir novos mercados”, comentou André de Castro, proprietário da Iguarias.

Confiando em produtos mais gelados, mas não menos saborosos, a Sorbê também nasceu há pouco mais de três anos. Fabrica sorvetes e picolés artesanais em Sobradinho (DF) e vende seus produtos em quatro lojas do Distrito Federal. Além de itens da Mata tlântica e da Amazônia, 17 frutos do Cerrado são aproveitados, como araticum, pequi, jatobá, mangaba, macaúba, cajuzinho e cagaita. Uma tonelada de cada fruta é consumida por ano.

Segundo Rita Medeiros, uma das proprietárias do empreendimento familiar, a idéia sempre foi ampliar a variedade de sabores, fugir do tradicional. Daí a aposta nas frutas nativas, principalmente do Cerrado. Esses representam por volta de 20% das vendas. “Há resistência pelo desconhecimento dos sabores. Frutas tradicionais ou mais conhecidas, como açaí, cupuaçu e maracujá, além da tapioca, lideram a comercialização”, conta.

Da árvore para a fábrica
Seja sorvete, creme de pequi ou pesto com baru, um ponto em comum em sua fabricação é a dependência do extrativismo, da coleta de frutos e castanhas de árvores e arbustos em porções preservadas de Cerrado. Raramente esses itens são encontrados nas prateleiras dos supermercados ou têm fornecimento contínuo garantido – suas safras ocorrem em períodos diferentes do ano. O pequi, por exemplo, de novembro até meados de janeiro, no máximo. “A vegetação nativa do Cerrado é alvo histórico de extrativismo. Hoje há um comércio forte ligado às safras e alguns produtos ganham certa escala comercial”, avalia José Carlos Souza e Silva, do Núcleo de Recursos Naturais da Embrapa.

As frutas usadas na Sorbê, conta Rita Medeiros, são obtidas a partir de parcerias com extrativistas dos municípios goianos de Damianópolis e de Pirenópolis, além de São Félix, no Tocantins. “E tudo que recebemos deve ser imediatamente congelado, para não perder o sabor”, explica.

Já a produção da Nonna Pasqua é garantida por pequenos produtores de outros municípios  de Goiás, como Bom Jardim e Jussara. Nesses locais, cerca de 200 famílias se mobilizam a cada safra para colher baru, direto do pé. “Antes, carvoarias torravam o Cerrado. Agora, famílias e fazendeiros estão até plantando baruzeiros”, revela Gennaro Salvemini.

Conforme Carlos Silva, da Embrapa, ao contrário da maioria dos frutos do Cerrado, os amazônicos açaí e cupuaçu têm alta produção por árvore, mesmo com extrativismo. Por isso, ganharam maior escala comercial e caíram no gosto de brasileiros, de norte a sul.

Enquanto isso, na região central há ilustres desconhecidos, como mama-cadela, gabiroba, ingá, araçá e pimenta de macaco. “Seu consumo é quase restrito a populações locais, isoladas, mesmo que o brasileiro esteja se tornado mais receptivo a novas opções”, disse.
   
Outra ponta do sistema

Por essas e outras que cooperativas e associações de produtores vêm se organizando e criando sua própria economia, cada vez menos informal, e abrindo espaços no mercado, no peito e na raça. Assim fez a Cooperativa dos Produtores Rurais e Catadores de Pequi de Japonvar (Cooperjap), do interior de Minas Gerais. Criada há exatos dez anos, reúne hoje pouco mais de 200 famílias dedicadas a colher e preparar frutos que são transformados em óleos, doces, polpas e licores. “Tudo é coletado em fazendas, quintas e também há pequenos cultivos. Temos dez toneladas de polpas congeladas de frutas nativas do Cerrado em nossa câmara fria”, conta José Antônio Alves dos Santos (57), presidente do grupo, pequeno produtor rural e catador de pequi desde criança.

O sucesso da Cooperjap poderia ser medido por seu tempo de vida e número de pessoas que ajuda a sustentar, mas vale citar, também, as vendas feitas há mais de um ano para Itália e Estados Unidos. A terra do Tio Sam recebeu duas toneladas de polpa e caroços de pequi, comercializadas a partir de um escritório paulista. “Antes, vendíamos em beira de estrada, a preço de banana podre. Agora estamos organizados e agregamos valor à produção. O pequi vai amarelar o mundo”, diz Santos.

Apesar das vendas no Brasil e para o exterior, o principal comprador dos produtores de Japonvar e de várias outras cooperativas ainda é a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). A estatal adquiriu, só em 2008, 142 toneladas de pequi (polpa e caroço) e 237 toneladas de baru (castanha e farinha) de pequenos produtores. Todos os alimentos são repassados, por exemplo, à merenda de escolas públicas. A Cooperjap vendeu por volta de 5 toneladas de produtos com pequi ao organismo federal em 2008.

Fina estampa
Quem vê produtos de cooperativas como a de Japonvar (imagem acima), com rótulos e vidros bem apresentados, tem que saber do apoio da Central do Cerrado, de Brasília (DF). Baseada no Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), há mais de três anos ajuda a qualificar e vender o que se produz nos interiores do país. Reúne cerca de 30 organizações que somaram capacidades produtivas para reduzir custos e comercializar produtos em mercados e feiras locais, regionais e nacionais. Só no ano passado, foram 40 feiras.

“Um dos desafios foi mudar a lógica de pessoas que sempre se comportaram como fornecedoras de matérias-primas, que sempre estiveram na mão de atravessadores ou venderam em condições precárias, e capacitá-las para produzir com a qualidade que o mercado espera. Também é preciso enfrentar o labirinto das exigências comerciais e legislativas”, conta Luís Carrazza, coordenador da central.

À parte da burocracia e do gosto padronizado da maioria dos consumidores urbanos, outra barreira a esses produtos vem das grandes redes de supermercados. Além de exigirem enormes volumes para compra, cobram pelas melhores posições nas estantes e até pela veiculação de marcas e produtos em folhetos e banners.

Mesmo assim, os itens da central podem ser encontrados em vários estados do Centro-Oeste, Sudeste e Sul do país. “Buscamos nichos específicos e diferentes para vendê-los, de produtos naturais e orgânicos e restaurantes especializados”, explica Carrazza. O catálogo da central tem mais de cem itens, entre alimentos, artesanato e cosméticos. De cada venda, até 30% do valor é separado, auxiliando na manutenção do espaço, publicidade e outros serviços. Seu faturamento vem dobrando a cada ano, chegando a cerca de R$ 100 mil em 2008.

Para este ano, a Central do Cerrado encaminha sua regularização jurídica, investirá ainda mais em produtos como coquetéis e cestas especializadas, negocia com uma cooperativa italiana ligada a 6 milhões de consumidores e está vendo várias cooperativas trocando informações ou montando lojas para comercializar itens produzidos em outras regiões . “Um grupo de dez municípios do Vale do Rio Urucuia (MG) está aprendendo com a gente a produzir com o pequi”, conta José dos Santos, presidente da Cooperjap.

Toda essa movimentação, avalia Luiz Carrazza, vem na carona de uma tendência mundial pela valorização de produtos locais e regionais e também pela preocupação crescente com o que se come. No Brasil, no entanto, diz, ainda há forte preconceito com produtos naturais e falta uma ajudinha do poder público. “Falta políticas e pesquisas para divulgar esses produtos, infra-estrutura para transporte e normas para produção”, reclama.

Mais de 11 mil possibilidades
Conforme a pesquisadora em Ecologia Vegetal Fabiana de Góis Aquino, dados compilados da Embrapa, do IBGE e da Universidade de Brasília (UnB) mostram que o Cerrado tem 11.426 tipos de plantas, fazendo dele a savana mais rica que se conhece. Dessa fartura, pelo menos 110 vegetais (menos de 10%) já são usadas na alimentação de pessoas ou rebanhos, na medicina, para a fabricação de tintas e corantes, na indústria química, artesanato, obtenção de madeiras e outras utilidades. De 26 espécies, se pode preparar cerca de 200 pratos diferentes.

Segundo ela, tanta biodiversidade é pouco aproveitada pela carência de estudos, tanto para identificação de novas plantas quanto para descobrir seu potencial econômico. Desmatar é sempre mais fácil. “O Cerrado sofre com desmatamento acelerado e tem poucas unidades de conservação. O desconhecimento sobre seu uso e a falta de políticas públicas para conservação da biodiversidade restringem as chances de investimentos em novos produtos, a partir de animais e plantas nativos, que poderiam ser lançados no mercado nacional e internacional. Extintos, Esses recursos estarão indisponíveis definitivamente às futuras gerações”, salienta a pesquisadora.

O extrativismo e a produção de alimentos com frutos do Cerrado podem crescer muito mais, pois não oferecem qualquer ameaça direta às monoculturas de soja, gado e outras que vêm devorando o bioma. São exemplos concretos de outras possibilidades econômicas, que também geram empregos e divisas e são bem mais ligadas à necessária conservação. “Os produtos feitos com itens nativos são um chamado à preservação do Cerrado. Eles reduzem a agressão ambiental de outras atividades”, afirma Luís Carrazza.

Atalhos:
www.centraldocerrado.org.br
www.caatingacerrado.com.br

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(Por Aldem Bourscheit, OEco, 19/01/2009)


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