Em 1 de julho de 2008 o site Vi o Mundo publicou a reportagem Aldo Vicentin, mais uma vítima do amianto (Aqui). Em 14 de julho, médicos disseram que Manoel estava bem de saúde. Mas ele tinha câncer no pulmão (Aqui).
Essas reportagens denunciaram que:
1) A indústria brasileira do amianto, através do Instituto Brasileiro da Crisotila (IBC), financiou e financia boa parte das pesquisas do amianto dos médicos Mário Terra Filho, Ericson Bagatin e Luiz Eduardo Nery, respectivamente, professores da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). É deles o estudo que levou à conclusão de que nenhum trabalhador que começou a trabalhar com amianto após 1980 adoeceu. O que não é verdade.
2) Mário Terra Filho, Ericson Bagatin e Luiz Eduardo Nery esconderam informações cruciais às comissões de ética em pesquisa das suas próprias instituições. Foi o que aconteceu com o projeto Exposição ambiental ao asbesto: avaliação dos riscos e efeitos na saúde apresentado à Comissão de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa (CAPPesq) da Diretoria Clínica do Hospital das Clínicas da FMUSP. O orçamento previsto era de 4 milhões de reais. Foi revelado à CAPPesq apenas 1 milhão de reais do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento (CNPq). Sonegou-se que boa parte do valor restante seria financiada pelo IBC -- instituição que patrocina e promove o lobby da indústria do amianto e é sua principal porta-voz. Essa informação também não foi repassada aos órgãos de fomento à pesquisa científica do País.
3) Questionados por esta repórter, patrocinador e patrocinados deram valores discrepantes. “O valor total é 3,6 milhões de reais”, disse inicialmente o IBC. Mario Terra Filho informou por e-mail: “A pesquisa está orçada em R$ 2.500.000,00. Já recebi 1.000.000,00 do CNPq. Estive em Goiânia, mas ainda não recebi 500.000 reais da FUNAPE (órgão governamental), e recebi aproximadamente 500.000 reais do Instituto Brasileiro de Crisotila que está fazendo a intermediação para o recebimento do restante.” Confrontado, de novo, o IBC forneceu novos números, que não batiam totalmente com os de Mário Terra Filho. “Valor total: R$ 2.562.275,00. CNPq: R$ 1.000.000,00. Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado de Goiás: R$ 500.000,00. IBC: R$ 1.062.275,00”.
4) Mário Terra Filho, Ericson Bagatin e Luiz Eduardo Nery, responsáveis por pesquisas com amianto, são os mesmos médicos que, através de empresa privada que mantêm em sociedade, participam das Juntas Médicas de Acordos Extrajudiciais com fins de indenização das vítimas pelos danos provocados pela exposição ao amianto.
5) Desse modo: 1) realizam pesquisa sobre o amianto -- financiada inclusive com dinheiro público; 2) fazem diagnóstico de ex-empregados do setor -- como consultores das empresas Eternit e suas subsidiárias, Sama e Precon, com financiamento privado; 3) Em função dessa atividade profissional privada, interferem no valor das indenizações, já que indicam o grau de incapacidade e a classe correspondente no referido Acordo Extrajudicial; 4) deixam de registrar os casos confirmados ou suspeitos de doenças relacionadas ao amianto junto à Previdência Social (através da CAT- Comunicação de Acidente de Trabalho) e ao Ministério da Saúde (através do SINAN – Sistema Nacional de Agravos Notificáveis). Em conseqüência, ferem a Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) nº 1488/1998, modificada pela nº 1810/2006. Essa Resolução é sobre “as normas específicas para médicos que atendem o trabalhador”.
6) Apresentam conflito de interesse flagrante tanto na relação médico-paciente quanto na realização de suas pesquisas sobre amianto. Ferem a resolução 196/96 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), do Conselho Nacional de Saúde, cujo princípio maior é o controle social, a defesa da sociedade.
“Denúncias são pertinentes”
A Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Aqui para ir ao site) solicitou a apuração dessas denúncias ao Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), ao CNPq e às faculdades de medicina envolvidas. Cinco meses depois os primeiros resultados.
"Atendendo à recomendação da comissão averiguatória, instalaremos uma comissão sindicante que visa ouvir a todas as partes envolvidas no processo”, informa o médico e professor Marcos Boulos, diretor da Faculdade de Medicina da USP. “A comissão será composta por professores da faculdade e por um consultor jurídico da USP, já que não temos um na estrutura da FMUSP.”
A comissão averiguatória foi criada, em agosto de 2008, pela diretoria clínica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, para apurar o caso. O alvo, Mário Terra Filho, é chefe do Ambulatório de Pneumologia Ocupacional do Incor, subordinado ao HC-FMUSP. A comissão ouviu o médico, o presidente da Abrea, João Eliezer de Souza, e a engenheira e auditora fiscal do Ministério do Trabalho, Fernanda Giannasi.
“Isso é indício de que as denúncias são pertinentes”, afirma um professor da FMUSP que prefere o anonimato. “À comissão de sindicância caberá daqui em diante apurar se houve culpa ou não do médico/professor envolvido.”
Na Unicamp, prossegue o trabalho da comissão de sindicância criada para apurar a denúncia. O alvo, Ericson Bagatin, é professor de saúde ocupacional do Departamento de Saúde Ocupacional da Faculdade de Ciências Médicas. “A comissão já ouviu o pesquisador, analisou os documentos e, após o período de férias, decidirá se chama ou não os pacientes”, informa a professora Carmen Sílvia Bertuzzo, coordenadora do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
A Unifesp é a única universidade envolvida que até agora, estranhamente, não tomou nenhuma medida para apurar a denúncia. “Quem julga essas coisas é o Comitê de Ética; não compete a mim qualquer avaliação”, limita-se o professor José Osmar Pestana Medina, coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa da Unifesp. O alvo é Luiz Eduardo Nery, professor de Pneumologia.
CREMESP vai ouvir médicos e comissões de ética
sindicância nº 096142, criada pelo Cremesp para apurar as denúncias, também está em andamento.
“Os três médicos já foram notificados para se manifestar por escrito”, informa o médico Henrique Carlos Gonçalves, presidente do Cremesp. “Além disso, interrogaremos, em audiência, cada um deles separadamente. Como envolve o nome de três faculdades de medicina, queremos saber como está o andamento dos procedimentos nessas instituições. Afinal, a pesquisa tem a chancela delas. Pediremos às respectivas comissões de ética um parecer sobre o caso.”
“Como os fatos denunciados são graves, provavelmente mais adiante será feita também uma perícia”, prossegue o presidente do Cremesp. “Nós nomearemos um perito. Será facultado às partes a indicação de assistentes técnicos.”
“Desmascaramento da dita ciência ‘neutra’’’
“As denúncias são um divisor de águas no Brasil”, afirma a engenheira Fernanda Giannasi, fundadora da Abrea e coordenadora da Rede Virtual Cidadã para o Banimento do Amianto na América Latina. “Há anos a Abrea alertava sobre a conduta inadequada desses médicos e os seus estudos fajutos. Mas ninguém tinha coragem e independência suficientes para segurar a ‘batata quente’. As reporrtagens fizeram com que essa história deixasse de integrar o rol das queixas solitárias das vítimas do amianto, dos apoiadores da luta pelo banimento e dos poucos profissionais das áreas médica e jurídica indignados, e conduzisse a ações concretas. Pôs fim a uma lamentável impunidade travestida de cientificismo inquestionável -- ‘um crime social perfeito’. Definitiva e inquestionavelmente, a apuração das denúncias pelas comissões de ética das universidades envolvidas e pelo Cremesp são fruto de um trabalho jornalístico persistente.”
“Essas ações das faculdades e do Cremesp são fundamentais”, continua Fernanda Giannasi, símbolo da luta contra o amianto no País. “Elas escancaram o crime corporativo da indústria do amianto, que se respalda em estudos feitos sob encomenda, cujos resultados com viés só interessam ao poderoso lobby da fibra cancerígena. Desmascaram a dita ciência ‘neutra’. Conduzem, sobretudo, a um debate sério nas universidades sobre a ética na pesquisa e os potenciais conflitos de interesses, pondo fim à crença reinante da ‘imaculada concepção do pensamento científico’. Esperamos, sinceramente, que a apuração das nossas denúncias sobre irregularidades na conduta médica e ética dos profissionais envolvidos seja feita de maneira idônea, transparente, com independência e sob controle social.”
(Por Conceição Lemes, Viomundo, 14/01/2009)