“A crise ambiental é fundamentalmente a crise de um modo de produção.” Essa é a definição do economista Flávio Tayra para o atual caos ambiental vivenciado em todo o mundo. A falta de preocupação com os recursos naturais estão nos aproximando “do limite da lógica de exploração econômica desmesurada”, alerta.
Autor da pesquisa A crise ambiental e o papel das novas tecnologias da informação: além do domínio da técnica, Tayra acredita que desenvolvimento tecnológico bem conduzido pode representar uma “chance para chegarmos a uma espécie de ‘reequilíbrio’ da natureza”. A busca pela estabilidade é uma condição “essencial para a nossa sobrevivência”, assegura. Ao contrário dos céticos e temerosos, o pesquisador diz que a “técnica existe como um elemento da cultura humana, que promove o bem ou o mal, segundo os que a exploram programem”. De acordo com o pesquisador, a internet é bom meio para mudar o curso da história e projetar um futuro diferente. Além disso, destaca, precisa ser incorporado um novo padrão de desenvolvimento capitalista, no qual “a percepção da finitude dos recursos e a necessidade de direcionamento de pesquisas” ajudem a encontrar soluções mais sustentáveis.
A entrevista a seguir foi concedida por e-mail à IHU On-Line.
Para alcançar uma produção menos degradante em termos ambientais e um consumo equilibrado, sugere, “é preciso mover esforços” e direcionar a técnica “para a nossa sustentabilidade, nos libertando da pressão imediatista. O esforço individual precisa ser multiplicado até atingir a escala global”. Flávio Tayra é mestre em Economia e doutor em Ciências Sociais, pela Pontificia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com a tese Sobre a compatibilidade entre Economia e Ecologia: Cultura, Técnica e Natureza na Gênese da crise ambiental (2003). Também cursou pós-doutorado em Saúde Ambiental, pela Universidade de São Paulo (USP).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor entende a atual crise ambiental?
Flávio Tayra – A crise ambiental é fundamentalmente a crise de um modo de produção. Parece cada dia mais claro que estamos próximos do limite da lógica de exploração econômica desmesurada, sem preocupação com a sustentabilidade dos recursos. Além de afetar o meio físico e as outras espécies, o que já vem acontecendo há muito tempo, o limite de exploração do modelo atual fica cada dia mais claro na medida em que já passa a afetar diretamente a vida das pessoas, comprometendo sua saúde e suas condições de vida.
Em que sentido as novas tecnologias da informação podem ajudar a encontrar uma solução para a crise ambiental?
Tayra – De maneira geral, acredito que o desenvolvimento tecnológico, bem conduzido, pode ser a nossa chance para chegarmos a uma espécie de “reequilíbrio” com a natureza. Alguns analistas mais céticos acreditam que só vamos começar a sentir a real necessidade desse reequilíbrio através do aprendizado pela dor, quando realmente sentirmos na pele os seus efeitos. Talvez estejamos nos aproximando desse momento, mas é evidente que a margem para a piora do quadro é muito grande. Para não chegarmos a esse extremo, o desenvolvimento de novas tecnologias, mais econômicas e menos degradantes, será uma condição essencial para a nossa sobrevivência.
Sem conscientização não há mudanças
Além dessa nova tecnologia ainda em gestação, creio que a outra importante variável no caminho para a sustentabilidade é o da conscientização e mobilização. Sabemos da iminência de uma crise ambiental de proporções seriíssimas, mas continuamos, a grande maioria, consumindo muito (e sendo estimulados a isso). O alto consumo é o parâmetro para o crescimento econômico. Vemos isso na atualidade: cresceremos menos em 2009 porque os Estados Unidos estão em crise e a China diminuirá sua produção; isso nos abalará pelos próximos anos. A economia precisa continuar caminhando e não temos alternativas econômicas sérias para entendê-la sem analisá-la sob o binômio produção/consumo. Precisamos mudar o padrão. Precisamos de uma produção menos degradante em termos ambientais e um consumo que seja mais equilibrado, sem os exageros do padrão norte-americano, que quer ser espalhado pelo resto do mundo, mas é altamente perdulário em termos energéticos. Se os chineses, em sua escalada econômica, adotarem o padrão americano, é evidente que os recursos ambientais do Planeta se esgotarão muito rapidamente.
Hoje já existem alguns estudos muito sérios veiculados, como o Relatório Stern, que dão conta da magnitude do problema. Segundo o relatório coordenado pelo economista britânico Nicholas Stern, se investirmos uma fatia pequena do PIB global atual (algo em torno de 2%), economizaremos a quantia absurda que teremos de gastar no futuro para mitigar os efeitos do aquecimento global (cerca de 25% do PIB). O problema é global, não é localizado num só país, e por conta disso exige uma conscientização, enfrentamento e uma solução global. Talvez a tecnologia da informação – estou pensando aqui na internet –, possa dar uma força nesse sentido. O sociólogo espanhol Manuel Castells, famoso por suas obras sobre a tecnologia da informação, destaca a importância das redes suscitadas pela internet em escala global e essa movimentação da sociedade civil tem por alvo o Estado para tentar obter mudanças em suas condições de vida. As mídias são muito importantes nesse sentido, pois através delas os atores da sociedade civil criam uma sensibilidade que indiretamente influencia as instituições políticas. Óbvio que ainda existe um longo caminho a percorrer nesse sentido.
Como a técnica pode interferir na natureza e construir um mundo mais sustentável?
Tayra – Falando bem rapidamente, o paradigma da modernidade se deu sob a égide do domínio da técnica para o controle da natureza. Para conseguir se afastar do mundo assombrado pelos demônios era preciso que se desmistificasse uma porção de ideias até então largamente difundidas. Foi o grande motivador para o crescimento e grande expansão do conhecimento. E isso nos trouxe uma série de facilidades e melhores condições de bem-estar que não podem ser ignoradas. Do conhecimento científico para o crescimento econômico foi um pulo; e aí começam as mazelas ambientais. O que precisa ser incorporado, de imediato, num novo padrão de desenvolvimento capitalista é a percepção da finitude dos recursos e a necessidade de direcionamento de pesquisas para que sejam encontradas soluções mais sustentáveis. Parece óbvio, mas ainda não está claro para todo mundo. É preciso tornar fontes alternativas de energia, como a eólica e a solar, mais atraentes economicamente, bem como aproveitar os recursos naturais de maneira mais saudável (os famosos 3R´s: reduzir, reutilizar, reciclar). Para isso vai ser preciso o desenvolvimento de novas técnicas. Mas isso é apenas parte do processo.
Que relação pode estabelecer entre o mundo do trabalho e o meio ambiente? A partir dessa relação, quais são os limites para o desenvolvimento sustentável?
Tayra – Numa das maiores tentativas de acordos globais em termos ambientais – o Protocolo de Kyoto – o que ficou patente foi a recusa americana na ratificação do tratado. Quando o distinto presidente Bush recusou a adoção, o seu argumento foi de que a assinatura poderia compreender a extinção de quase 5 milhões de postos de trabalho. Houve repercussão negativa sim, principalmente internacional, mas isso parece não ter afetado muito a percepção dos norte-americanos, que o re-elegeram dois anos depois (em 2004). Em resumo, todos temos as nossas preocupações ambientais, mas ela não é a prioridade zero para a grande maioria. A maioria, senão a sua totalidade, está muito mais preocupada com as suas questões mais mundanas e diárias. Para isso é preciso emprego, ou seja, renda. Nos anos 1970, ainda dava para falar em crescimento zero, mas nos 1980 já era evidente que esse discurso não emplacava mais. Como diz o sócio-economista Ignacy Sachs, precisamos encontrar fórmulas para crescer sem destruir.
O senhor percebe relações entre as crises ambiental e econômica? Como ambas estão interligadas na constituição do caos mundial?
Tayra – É preciso resistir às tentações de se fazer análises do tipo “o declínio do império americano” para explicar a derrocada econômica atual. Acredito que existam relações entre as duas crises, mas ela é muito sutil, tênue. Mas não dá para falar: “a economia americana desabou porque é insustentável ambientalmente”. Está em crise porque isso acontece no sistema capitalista de tempos em tempos e porque faltaram mecanismos de regulação no seu sistema financeiro, eufóricos com uma criatividade desenfreada dos mecanismos de alavancagem, que permitiram anos de grande crescimento econômico. É evidente, no entanto, que o modo de ser (e de consumir) dos americanos só piora o quadro ambiental global: a pegada ecológica dos EUA (9,4 hectares por habitante) é quase 3,5 vezes superior à média mundial (2,7 hectares por habitante), que já está acima do aceitável (2,1 hectares por habitante).
A introdução da técnica sobre o mundo moderno mudou nossa maneira de perceber o meio ambiente?
Tayra – A popularização do aquecimento global veio nos mostrar que o mundo tem limites. Por muito tempo, acreditamos na dispersão dos nossos dejetos. “O esgoto pode ir pro mar, pois lá, diante da sua imensidão, ele se dilui”. O mesmo pensamento em relação à poluição atmosférica. A percepção do nível exacerbado de poluição atmosférica devido ao uso de combustíveis fósseis já era muito clara nas grandes cidades, mas por algum motivo, acreditava-se que ele se dispersava e isso não traria maiores consequências além das localizadas. Em resumo, achava-se que dava pra varrer para baixo do tapete. Agora, com a percepção do aquecimento global, mesmo as regiões mais distantes como os pólos sentem os efeitos dessa poluição.
Essa poluição e utilização massiva dos recursos naturais só ganharam escala após o advento do capitalismo, que por sua vez, nasceu (e para muitos é também fruto) no bojo das grandes transformações da modernidade. Até então, talvez devido à pequena escala de produção econômica (que só veio com o capitalismo), as atividades do homem não chegavam a oferecer riscos mais graves ao meio ambiente.
O senhor diz que a modernidade rompeu o equilíbrio entre homem e natureza. Considerando a crise climática, chegou a hora de retomar esse enlace?
Tayra – Esse equilíbrio foi desfeito na modernidade por conta do crescimento científico e do capitalismo. Para algumas correntes críticas da modernidade, como Marcuse, ciência e capitalismo são uma só coisa. Em poucas palavras, ciência (conhecimento racional e objetivo) e ideologia (concepção de mundo) se confundem. Desaparece o valor objetivo do conhecimento científico. Nesse sentido, a crítica da "razão instrumental", "razão unidimensional", ou "razão técnica" encerra, no fundo, uma crítica da própria civilização. Daí o ataque à "sociedade industrial" ou "tecnológica", justamente a sociedade moderna baseada na ciência e na tecnologia.
É possível estabelecer uma harmonia entre técnica e meio ambiente? Como ciência e técnica devem ser redelineadas?
Tayra – A associação com o capitalismo decorre do fato de que o desenvolvimento dos meios de produção e obtenção dos recursos, a técnica, desencadeou o processo de grande crescimento econômico dos últimos séculos. De uma forma mais ou menos pragmática, temos de observar, no entanto, que, apesar dos tropeços de ordem social e ambiental, tal crescimento econômico trouxe também benefícios e facilidades que nos períodos anteriores seriam quase inimagináveis. Essas facilidades, por certo, deviam ser almejadas e aspiradas pelos homens. Segundo o historiador Lewis Mumford, a técnica existe como um elemento da cultura humana, que promove o bem ou o mal, segundo os que a exploram programem. A máquina em si não tem exigências ou fins. É o espírito humano que possui exigências e estabelece as suas finalidades. A tecnologia pode ser tanto boa quanto má. Existem processos tecnológicos estritamente danosos; mas isso não é necessariamente consequência de sua existência, e sim de seu mau uso. É preciso mover esforços para direcioná-la para a nossa sustentabilidade, nos liberando da pressão imediatista. Mas o esforço individual precisa ser multiplicado até atingir a escala global.
(Instituto Humanitas Unisinos, 14/01/2009)