Em dezembro do último ano, a Petrobras anunciou seu desligamento do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, em função da discussão sobre a venda de diesel limpo no Brasil. Enquanto a Petrobras justificou a atitude afirmando que “o objetivo de atingir a imagem da companhia e questionar a seriedade e eficiência de sua administração”, o Ethos diz que a ação politizada da estatal “promove a desinformação do público em geral e induz entidades sérias a cometerem erros de avaliação e decisão”. Uma novela foi criada a partir desse desligamento que resultou, inclusive, na suspensão do Instituto Ethos do conselho da Bovespa por divulgar detalhes que exclui a Petrobras de sua carteira.
Quem analisou a decisão foi o professor e médico Paulo Saldiva. Em entrevista, realizada por telefone, à IHU On-Line, Saldiva disse que este deveria ser o momento de compreendermos certas questões sobre o meio ambiente e a saúde dos brasileiros e não de fazer rupturas como essa. “O mundo mais desenvolvido, numa fase de conhecimento maior, conclui que há duas coisas que melhoram, efetivamente, a saúde pública: parar de vender carvão e baixar o enxofre do diesel. Todos sabem disso, inclusive a Petrobras e outras empresas petrolíferas. Mas por que a mesma companhia que opera petróleo no Brasil vende o diesel melhor na Europa e Estados Unidos, deixando o pior para os brasileiros? Isso é o que chamamos de racismo ambiental e de desigualdade socioambiental”, disse Saldiva.
Paulo Saldiva é médico e doutor em Patologia, pela Universidade de São Paulo (USP), onde também realizou o pós-doutorado e recebeu o título de livre-docência. É professor do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP, onde é também chefe do Laboratório de Poluição Atmosférica. Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que significa o desligamento da Petrobras do Instituto Ethos?
Paulo Saldiva – É uma pena. O momento deveria ser de entendimento e não de rupturas. Houve o não cumprimento de uma norma, o que pode prejudicar a saúde das pessoas. Seu não cumprimento se deu por razões comerciais, de investimentos da empresa que não levaram em conta os custos em saúde. A mesma coisa aconteceu com a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), que não atendeu a uma norma já sabida, por razões de lucratividade. O momento é, então, de consertar essa situação. Sabemos como o Ethos trabalha; então, no momento em que o próprio Instituto se vê contra a sua empresa, é algo ruim para todos.
Isso influencia na questão do pré-sal?
Saldiva – O pré-sal faz parte daquela Petrobras que dá orgulho a todos nós: a Petrobras tecnológica, pioneira, que constrói riquezas para o Brasil. O desligamento do Ethos faz parte da Petrobras que não gosta de ser criticada, de uma empresa na qual qualquer crítica a ela é motivada por questões políticas. São dois compartimentos, felizmente distintos, porque a empresa é composta por várias facetas: uma que dá orgulho e outra que merece algum tipo de reparo.
Como o senhor avalia a atuação da Petrobras hoje?
Saldiva – A Petrobras não é uma empresa só. Participei de uma rede da Petrobras que pensava a tecnologia, ou seja, o futuro da empresa. Certos conceitos e fatos que a Petrobras não cumpriu eram entendidos como vitais dentro da própria empresa. Acredito que a sua atuação precisaria evoluir para um conceito no qual o ciclo de vida do combustível não acaba no momento em que você abastece seu veículo. Existem outros conteúdos que irão agregar valor ao combustível, como o aquecimento global, a toxicidade das emissões e a sustentabilidade das cidades. Nenhuma empresa de petróleo ou energia pode ignorar isso hoje. A Petrobras ainda não chegou a essa consciência. Mas isso deve acontecer em breve. É impossível imaginar o negócio do combustível desvinculado de saúde e efeitos climáticos.
Como é o diesel produzido no Brasil?
Saldiva – O diesel produzido aqui não é o melhor do mundo, nem o pior. Está num estado intermediário. O diesel que vendemos na maioria dos locais, composto de duas mil partes por um milhão de enxofre, é encontrado apenas em países muito pobres, que não estão na mesma condição tecnológica e econômica do Brasil. Há exemplos disso na América Latina, na África e na Ásia. O mundo mais desenvolvido, numa fase de conhecimento maior, conclui que há duas coisas que melhoram, efetivamente, a saúde pública: parar de vender carvão e baixar o enxofre do diesel. Todos sabem disso, inclusive a Petrobras e outras empresas petrolíferas. Mas por que a mesma companhia que opera petróleo no Brasil vende o diesel melhor na Europa e EUA, deixando o pior para os brasileiros? Isso é o que chamamos de racismo ambiental e de desigualdade socioambiental.
A mesma empresa tem padrões de sustentabilidade e qualidade que variam de acordo com o país para quem é comercializado o produto. Como profissional de saúde, afirmo que isso não significa que a empresa seja sustentável. Muitas companhias de petróleo fazem um marketing de sustentabilidade bastante chamativo e investem em atividades ambientalmente adequadas, mas que não estão dentro de sua esfera de negócios. Isso é chamado de “maquiagem verde”, pois a empresa tem padrões de operação distintos, variáveis. A mesma coisa acontece com os motores. Os caminhões cujos motores são produzidos no Brasil são exportados e têm padrão de emissão muito menores do que os que são vendidos aqui.
O senhor pode explicar o cálculo que criou para explicar que cerca de 25 mil pessoas podem morrer em decorrência do adiamento do cumprimento da resolução que fala na redução do teor de enxofre no diesel?
Saldiva – Esse cálculo foi feito numa conferência para discutir a questão da compensação. Toda empresa tem um custo, ou seja, sabe que irá investir um milhão de reais em programas de manutenção e inspeção, além de comprar laboratório de emissão diesel para a Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (CETESB). Mas nem sempre elas preveem esse custo. De 2009 a 2040, teremos algo em torno de um milhão de mortes naturais na cidade de São Paulo. Deste total, se não for feita a compensação, 25 mil terão como um fator causador da morte as consequências do teor de enxofre no diesel que é solto no meio ambiente pelos motores dos veículos. Se dividirmos 25 mil por um milhão, pode parecer pouco. No bruto, isso é muito! O não atendimento da norma fará com que caminhões e ônibus sejam liberados e possam rodar entre 2009-2012 com o teor de enxofre alto na produção de diesel, quando começarão a rodar os novos caminhões. Esses caminhões ficarão rodando por 40 anos. Existe um cálculo de não abatimento de partículas baseado na conta que as próprias empresas fizeram. Imagino que isso não acontecerá porque haverá medidas que impedirão que isso aconteça. Mas, se nada for feito, esse é o tamanho da “encrenca”.
Que consequências essa decisão da Petrobras traz para o projeto ambiental brasileiro?
Saldiva – Para o projeto atual, nada, porque o Brasil não tem uma política ambiental baseada em saúde humana. Para se ter uma idéia, a atual administração é muito permissiva em relação à poluição do ar: não presta a devida atenção no ar das cidades. A saúde humana não faz parte da agenda ambiental do país. A que existe está defasada e não é efetiva. A questão do diesel está trazendo à tona a questão de como incorporar saúde humana à política de combustível e transporte do país.
Qual a qualidade do ar brasileiro?
Saldiva – Felizmente, ela melhorou nos últimos anos. São Paulo e Porto Alegre estão em nível intermediário de poluição no mundo. Belo Horizonte está em situação um pouco melhor, e o Rio de Janeiro um pouco pior. Contudo, estamos em melhor situação do que cidades asiáticas, chinesas e africanas. Na América Latina, em Santiago do Chile e na Cidade do México estão em piores condições. Não é uma catástrofe o nosso ar, mas há espaço para melhoria. Verdade seja dita: o padrão estabelecido pela Organização Mundial de Saúde é ultrapassado na maioria das cidades brasileiras. Deve haver uma série de medidas, mas o diesel tem um papel importante na melhoria da qualidade do ar e de vida dos brasileiros.
Como o senhor avalia a política ambiental do país?
Saldiva – Para as florestas, a política que está no papel é boa e está começando a ser implementada de forma mais efetiva. Conseguimos lançar uma política voltada a mudanças climáticas. Estamos evoluindo. Não sou pessimista em relação ao Brasil. Estamos tomando o caminho certo. Claro que falo pelo viés da saúde, pois sou médico. Mas, do ponto de vista da saúde humana, ainda é pouco.
Como incorporar o custo da saúde humana nos projetos de energia e transporte?
Saldiva – As evidências científicas de hoje não podem ser negadas, é como se eu dissesse que a Terra é plana. Há um consenso internacional sobre as emissões poluentes dos combustíveis. Para cada real investido na melhoria do diesel, haverá um retorno de oito reais. É um bom negócio, e o Estado é quem deveria garantir isso. A relação custo/efetividade é o principal motor para a mudança de combustível. Quando o álcool passou a ser usado, não se tratava de que fosse mais limpo ou neutro de carbono, mas sim de um primeiro choque do petróleo. Agora que o petróleo baixou, o álcool voltou a ser bastante utilizado. Logo, o que move essa lógica é o custo financeiro. Só que o custo de saúde nunca é levado em conta. Para cada dez microgramas para metro cúbico de concentração anual de material particulado no ar, ganharemos de oito meses a um ano de vida. Além disso, há custos de saúde em função de infarto, internações por doenças respiratórias. Se somarmos tudo isso, o custo de saúde de manter o diesel do jeito que está é maior do que se melhorarmos ele. Se essa decisão fosse menos política e mais técnica, penso que perceberiam que o país perde dinheiro ao manter o diesel como está, embora a Petrobras e a Anfavea ganhassem mais. No fim, o país todo está perdendo.
Com o aumento significativo no número de carros nas ruas, qual a sua sugestão para que possamos melhorar a qualidade do ar?
Saldiva – Na verdade, esse é o problema central da questão. Precisamos mudar a lógica de transporte em nosso país. A médio prazo, não vejo nenhuma medida de melhoria no transporte que não seja feita de forma coletiva. Em São Paulo, contudo, ocorreu algo interessante nas últimas eleições municipais, quando quase todos os candidatos apresentaram planos para o problema dos transportes em sua plataforma política. Isso entrou no ideário político porque a velocidade média de mobilidade por hora caiu a pontos insuportáveis na cidade.
Hoje, um paulistano perde de duas a duas horas e meia de sua vida, por dia, em congestionamentos. Essa é uma falência do modelo individual de transporte, e por isso passou-se a incorporar política de transporte coletivo. Espero que as demais cidades brasileiras aprendam com os erros de São Paulo. Pelo que vejo, por onde vou, há uma crescente percepção nítida de que as pessoas estão perdendo cada vez mais tempo no trânsito, que a situação está cada vez mais complicada. Se não houver uma política consistente, a cidade ficará imobilizada. O que vai melhorar o transporte coletivo não será a saúde humana, mas a falência da mobilidade urbana. Nos horários de pico, em São Paulo, a velocidade média é de 8 a 10 km/hora. Se eu andasse a cavalo, andaria mais depressa. Em outras palavras: em pleno século XXI, temos o padrão de mobilidade do século XVII.
(Instituto Humanitas Unisinos, 11/01/2009)