Saris coloridos enfeitam as ruas caóticas de Nova Delhi. Mulheres com rostos encobertos cruzam as ruas, palco de trânsito ensurdecedor. Um país em constante crescimento. O tigre asiático que ainda mantêm o sistema de castas em pleno funcionamento. Contrastes! Aqui ninguém é cidadão. Absolutamente, ninguém. Camelos enfeitados atravessam estradas guiados por homens de turbantes e suas mulheres silentes. Crianças descalças brincam em meio a uma sujeira surreal. Um país de sabores, cheiros e cores. De desigualdade e discriminação. Lugar apaixonante, encantador, mas também assustador.
O país da computação e da tecnologia da informação. Destino certo de muitas empresas. Em Bombaim, empresários cruzam rápidos em direção aos novos escritórios que proliferam rapidamente pela cidade. Mas o dia-a-dia deste país é absolutamente sem nenhuma modernidade. A vida diária é rudimentar em qualquer proposta de organização ou planejamento. Um país da falta completa de cuidado. Associada a esta falta de organização, vive um sexto da população do mundo. Cidades poluídas. Rios contaminados. Animais silvestres em meio a montanhas de lixo, competindo entre si e com pessoas por um pouco de comida.
A pátria da espiritualidade. Iogues, mestres, iluminados, diferentes templos e ashrams. O país dos antigos Vedas, dos textos sagrados que proíbem a destruição da natureza e afirmam que a poluição das águas é um sacrilégio. O corte das árvores também é condenado. Severas referências em defesa das florestas são encontradas em clássicos como Mahabharata e Ramayana. “Amar as árvores como se fossem seus filhos”. “O homem deveria viver em harmonia e em profunda comunhão com a terra”. Mas, na prática, isso não está em lugar nenhum. Parecem mantras repetidos por milhares de anos, sem que as pessoas tenham a menor percepção do seu significado. Aflige o desrespeito que é dado ao bem considerado o mais sagrado de todos, que é a natureza. É o sagrado se tornando profano até o extremo da mais absurda insanidade.
Natureza no seu estado primitivo, sagrada, total, plena, é rara de se ver por aqui. O mundo natural que se vê aqui é o reflexo da mente humana, tal qual como pode ser produzida por esta multidão. O que se encontra aqui é a realidade interior. É reflexo do que há na alma humana. Então, como não se surpreender que o mesmo país que se intitula como o mais espiritualizado do mundo, é o que também traz uma natureza totalmente destruída, como qualquer outro não espiritualizado. O que se vê é um completo colapso. Uma terra colapsada. Um lugar miserável em termos de políticas e ações em prol da conservação. É como ter em suas mãos um livro onde quase todas as páginas foram arrancadas, destruídas e profanadas. E quando se depara com algumas, esquecidas, últimas páginas sagradas dessa natureza selvagem, da vida silvestre abundante, da fauna exuberante, dos lugares extraordinários, é difícil conter a emoção.
É também esta natureza sacra que tem impulsionado multidões de visitantes para esta terra antiga. Que tem movimentado o mercado do turismo, como um dos melhores locais do mundo para fotografia de vida silvestre. Turistas que topam a empreita de viajar à Índia para visitar os parques nacionais. E o ponto alto destas visitas é conseguir avistar a maior de todas as estrelas, o exuberante tigre indiano. Animal solitário, símbolo da vida silvestre deste país.
Originalmente, o tigre tinha uma grande área de distribuição de locais de altas altitudes, como as florestas do Himalaia, atingindo regiões como os deltas e manguezais de Sunderbans, até as florestas do Rajastão. Desafio salvar esta espécie que no século 19 chegou a uma população de aproximadamente 40.000 indivíduos. Em 1972, a população foi reduzida para insignificantes 1.800 animais. Esta redução se deu simplesmente, pela absurda redução dos ambientes naturais devido ao crescimento demográfico. Além desta destruição, o tigre foi usado durante anos pela medicina popular, como “ingrediente” para manipulação de medicamentos para tratamento de artrite e, não menos surpreendente, como afrodisíaco. Agora, a indústria do turismo, sem controle, pode ser considerada a nova ameaça.
Graças ao esforço do Project Tiger, foi possível instituir várias áreas protegidas e ações mais efetivas para proteção da espécie. Levando ao aumento da população, em 1986, para aproximadamente 4.000 felinos.
O Parque Nacional de Ranthambore nasceu como um dos resultados deste esforço. A área é exuberante, com uma vida silvestre abundante. Autoridades oficiais admitiram, em 2005, que a população de tigres naquela área era de 47 indivíduos, número contestado pela não-governamental Tiger Watch, que afirmou haver no local apenas 15 animais. Independente da assertividade, os números pressionaram o governo a aumentar a área do parque em 4.000 km2 e a realocar populações humanas que viviam em áreas importantes, por ser necessário mantê-las livres da presença do homem.
Mas visitar os parques da Índia também é uma imersão na triste realidade das áreas protegidas mundiais. Nenhuma informação é repassada ao visitante que entra e sai delas sem se dar conta de que entrou num local protegido. Na entrada, uma série de ambulantes tentam convencer turistas a comprar produtos com a logomarca do parque. Cada um vende o que quer e não há qualquer retorno para a área. Da mesma maneira, uma série de guias levam e trazem turistas, principalmente europeus. Há uma tentativa de controle, mas apenas baseada na venda de entrada. Lembrando que muitos entram extra-oficialmente e sem controle.
O planejamento utilizado naquele parque, basicamente, é usado para dispersar as centenas de grupos que visitam a área ao mesmo tempo. Mas nunca se sabe para onde se está indo, apenas se vê outros grupos constantemente cruzando. Uma conversa em hindi entre os guias dá a impressão de que eles sabem onde estão indo. O visitante sorri e fica imaginando que se tivesse recebido alguma informação nem que fosse uma simples orientação cartográfica norte–sul, facilitaria bastante. No próximo instante, o guia repassa as informações básicas do safári. O bonito hindi é deixado de lado e, em inglês, dá boas-vindas e fala que aquele lugar é realmente maravilhoso. Olhando para o céu, pede a proteção de Ganesha, ergue as mãos umas três vezes, numa cara de devoção, e o visitante ali, parado, simplesmente não acreditando que estas são as informações. Não há como não sorrir novamente e relaxar, afinal de contas aqui é a Índia, e tudo tem que ter este “charme” espiritual.
Cervos por todos os lados. Macacos saltitando. Paisagens maravilhosas e a expectativa de que num determinado momento o felino apareça. A vida silvestre é realmente abundante. Não se deixa de avistar animais em nenhum momento. Mas quanto ao tigre, não há como prever sua aparição; não há como esperar esta precisão da natureza. Quando a manhã já está quase no fim, há algo no ar; todos os animais ficam elétricos. Agitação, vocalização e corrida. Não há dúvidas: há tigre na área. Dois minutos e ali está diante dos olhos do visitante. Um animal imenso, um macho de uns 200 quilos, enorme, jovem, marcando o território. Neste momento não interessa se foi por proteção de Ganesha, experiência do guia, ou pura sorte. Isso não tem nenhuma importância. O que interessa é que, quando se avista um destes animais, a emoção é tamanha que não há como transcrever. O coração dispara. As lágrimas correm pelo rosto. Um profundo agradecimento por existirem parques nacionais. Uma completa satisfação. Uma emoção tamanha. A raridade de um destes encontros. Uma experiência única. Um marco na vida de qualquer pessoa.
Passada a emoção, um novo sentimento aparece, que é o de desespero porque esta natureza primitiva esta definitivamente no fim. Não há como mantê-la muitos anos. É uma contagem regressiva do que realmente desaparecerá para sempre. Restarão apenas os antigos Vedas que continuarão a enfatizar a necessidade de proteção dos ambientes naturais. E as pessoas seguirão repetindo e profanando o que é considerado sagrado.
Mas a contemplação da natureza em seu estado mais primitivo é o único e absoluto sagrado. É a manifestação do divino. E assim se caminha entre o sagrado e o profano. Surpreendendo-se, ainda, diante de cada área protegida que se visita. Feliz por ter a capacidade de se emocionar frente às manifestações da natureza selvagem. E, mesmo não conseguindo prever por quanto tempo isso ainda será possível, não se pode permitir que a tristeza tome conta, ao contrário o que surge é uma profunda alegria por saber que há muitas pessoas que sentem esta mesma emoção e estão dispostas a continuar dedicando suas vidas por esta causa, a qual embora tão profanada é de todas a mais sagrada.
(Por Verônica Theulen, OEco, 08/01/2009)