O ano de 2008 foi de muita visibilidade para a luta indígena no Mato Grosso do Sul. Pela afirmação poderíamos supor que foi um ano de intensas mobilizações indígenas, de sucessivas retomadas, de ações extraordinárias. No entanto, os povos indígenas no estado não fizeram mais do que costumam fazer normalmente para reivindicar seus direitos. Os atos que podem ser considerados além do esperado foram ações de respostas necessárias perante os esquecimentos e provocações de sempre. Nada que pudesse quebrar o status quo do latifúndio, nada que ponha em perigo as injustas relações sociais de produção da terra, que é eixo fundamental da resistência, da vida e do futuro dos povos indígenas.
Então de onde veio a visibilidade marcante, no ano que terminou, do índio, da índia, das lideranças políticas e religiosas, das comunidades e aldeias indígenas, de suas organizações. De onde veio? Se a fome, a desnutrição, os assassinatos e os suicídios já não enxotam ninguém e passam quase despercebidos? Se estes fatos já não causam impactos além das estatísticas e páginas policias nos jornais, que coisas empurraram para tal visibilidade?
Para falar a verdade, por mais que tenham ajudado bastante, tampouco foi à co-produção ítalo-brasileira, o filme Terra Vermelha, do diretor chileno-argentino Marco Bechis, com exibição nos cinemas mundiais e que, segundo a crítica, foi um dos melhores exibidos na seleção de cinema de Veneza em 2008. Menos espetacular que Terra Vermelha, “Ñande Guarani”, que lotou na sua apresentação oficial o cinema Brasília, em ocasião da 41ª edição do Festival de Brasília, o documentário do cineasta brasileiro André Luiz da Cunha, deu uma força a nível nacional, mas não foi determinante para Mato Grosso do Sul.
Alguém acreditaria, depois de todas as possibilidades acima colocadas e descartadas, não por falta de merecimento, que o verdadeiro fator que determinou tanta visibilidade da presença e a luta indígena no MS em 2008 foi o racismo? Qualquer um poderia responder: mas não foi de demarcação de terra que se falou o tempo todo nestes últimos meses? Quanta verdade! E então? Pois é. Perante esta terrível incongruência poderíamos bem usar a genial frase do escritor francês Antoine de Saint-Exeupéry; que no contexto da luta indígena pela terra ficaria tragicamente cativante: “Só se vê com o coração. O essencial é invisível aos olhos”. Foi mais ou menos o que aconteceu na mídia, nos discursos dos fazendeiros e da “sociedade produtiva”, o que vendeu na sua propaganda ideológica o agronegócio e o capitalismo. Colocou-se perante os olhos da população sul mato-grossense a cega idéia de que o essencial, primordial, e determinante, é o progresso e desenvolvimento do Estado e do país. E, que uns poucos indígenas não podem impedir isso. Entretanto, apesar de invisível aos olhos, deu para perceber, infelizmente, que no Mato Grosso do Sul em 2008 ficou demarcado o racismo. Felizmente, muita gente percebeu isso com o coração; com o coração adoecido.
Tudo começou com as portarias publicadas pela Fundação Nacional do Índio (Fuinai) em 10 de julho de 2008, que, em comprimento de um Decreto do Poder Executivo de março de 2003, onstituiu grupos técnicos de trabalho para iniciar estudos de natureza etno-histórica, antropológica e ambiental para identificar e delimitar terras tradicionalmente ocupadas pelo povo Guarani dentro do território brasileiro.
Desde julho, o poder oligárquico do Mato Grosso do Sul começou a destilar, além de cana e exploração nas usinas, todo seu racismo e preconceito contra os índios. A palavra “demarcação” ficou conhecida, até famosa. Os indígenas e suas reivindicações passaram no primeiro plano, nunca tão visível como em 2008. Até agora não foi demarcada nem um hectare de terra Kaiowá-Guarani, mas uma coisa é certa: a palavra racismo já ficou demarcada por quilômetros e em proporções vergonhosas, digna de um prêmio de Survival, a prestigiosa organização internacional que outorga cada ano um “prêmio” ao fato mais racista em algum país do mundo. A “sociedade produtiva” de Mato Grosso do Sul é merecedora dessa distinção.
Vejamos alguns títulos de jornais do Estado:
- André Lidera ofensiva contra demarcação em áreas indígenas (Correio do Estado 03/VIII/08)
- Demarcações podem ter proporções catastróficas (Correio do Estado 23/XI/08)
- Produtores declaram guerra aos índios (Correio do Estado 12/XI/08)
- Ex-guerrilheiros manipulam indígenas (Correio do Estado 13/XI/08)
- Governador vai ao Supremo para impedir estudo de demarcações (O Estado 06/VIII/08)
- Técnicos que farão estudos em terras indígenas denunciam ameaças (O Estado 05/8/08)
- Demarcação: Aldeias têm falsos índios (O Progresso 06/VIII/08)
- Pecuaristas querem menos terra para índios (O Progresso 23/VIII/08)
- Representante da ONU enfrenta tumulto de ruralistas (Correio 24/VIII/08)
- Presença de índio americano gera protestos de fazendeiros (DMS 25/VIII/08)
- O Imbróglio indígena (Correio do Estado 08/IX/08)
- Produtores criticam Estatuto do Índio (O Estado 12/XI/2008)
- Mato Grosso do Sul não será terra de índio (O Progresso 09/VIII/08)
- Fazendeiros reforçam segurança contra invasões indígenas na fronteira (Correio do Estado 03/VIII/08)
- Governador, prefeito e deputados tentam evitar estudos antropológicos (Diário MS 18/VIII/08)
- Demarcação afasta produtores do campo (O Estado 10/XI/08)
- Nunca vimos índio algum em Indápolis (Dario MS 29/VIII/08)
A luta continua. Aguardamos que 2009 seja a vez das demarcações das terras tradicionais Kaiowá-Guarani.
(Cimi, 05/01/2009)