O hábito de plantar mangueiras nos quintais cuiabanos apelidou a capital de Mato Grosso de “cidade verde”. O costume partiu de ribeirinhos, que deixaram marcas de sua ocupação secular no Pantanal através das árvores crescidas nas margens do Rio Paraguai. Possivelmente, foi assim que chegou a Cuiabá, e, a exemplo de milhares de outras cidades brasileiras, a árvore exótica se dispersou pelo Cerrado mato-grossense. A fruta se tornou uma das mais apreciadas do mundo, menos por quem faz gestão de unidades de conservação.
A presença de espécies exóticas invasoras, como a mangueira, é considerada hoje uma das três principais causas da extinção de espécies no planeta. É por isso que 193 delas foram marcadas para morrer na Estação Ecológica da Serra das Araras (MT).
Eficaz no quesito adaptação a diferentes tipos de solo, a mangueira saiu das Índias e se espalhou por diferentes biomas brasileiros, impulsionada pelo intenso comércio mundial de sementes e de mudas. Enquanto para algumas cidades a árvore é uma bênção, por dar vastas sombras nos dias mais quentes, em diversas áreas protegidas ela foi identificada como espécie perigosamente danosa. Segundo o Instituto Hórus, este é o caso da Reserva Serra das Almas (CE), o Parque Nacional de Brasília (DF) e o Parque Nacional Cavernas do Peruaçu (MG), além de áreas de manguezais da Paraíba e de floresta atlântica no estado do Rio de Janeiro.
No caso da Estação Ecológica da Serra das Araras, nenhum estudo específico foi realizado na unidade de conservação para identificar concretamente as conseqüências da presença de mangueiras. Esse tipo de levantamento é geralmente feito durante o plano de manejo das unidades de conservação, coisa que a Serra das Araras ainda não tem, apesar de seus 26 anos de vida. De qualquer maneira, por se tratar de uma área de proteção integral, a retirada dessas árvores tem implicações preventivas.
“Sabemos que se trata de uma espécie com poder invasivo, da qual encontramos indivíduos jovens em áreas primárias da unidade de conservação, o que pode ser considerado poluição biológica”, diz Rafael Valadão, analista ambiental lotado na estação ecológica. “Ela compete por dispersores com as espécies nativas que frutificam no mesmo período, o que provavelmente tem influências na biodiversidade nativa”, continua o biólogo. Segundo ele, ao longo de seu processo evolutivo a mangueira acabou se armando com sinais químicos que impedem o crescimento de outras espécies vegetais sob sua copa, impedindo a regeneração natural de algumas áreas
Técnicas adotadas
As mangueiras plantadas no entorno da sede da estação ecológica foram aneladas, técnica usada para atrapalhar o fluxo de nutrientes pelo caule. O método é menos dispendioso do que a derrubada direta e exerce menor impacto sobre a flora nativa, uma vez que os galhos caem gradativamente, impedindo a abertura de grandes clareiras. De acordo com Valadão, isso dá chance para a regeneração natural da área antes dominada por invasoras como as mangueiras.
Além delas, foram identificadas outras oito na nascente e mais quatro no curso do Córrego Teófilo. O rio Salobo tem aproximadamente mais 15 delas, tudo isso na área regularizada da Serra das Araras. E especialmente nessas áreas, a mangueira pode ser perigosa. Foi o que concluiu a pesquisadora Rosane Segalla, que mencionou o alto potencial invasivo das mangueiras na unidade de conservação na sua dissertação de mestrado deste ano na Universidade Federal de Mato Grosso. Com dados do Instituto Hórus, ela afirma que “em ambientes ciliares está gerando alteração do pH da água por apodrecimento das folhas e frutos em grande quantidade”. A invasão também favorece população do macaco-prego, que pode interferir na dinâmica populacional de outras espécies.
De acordo com Marcelo Guena de Oliveira, chefe do Centro nacional de Orquídeas, Plantas Ornamentais, Medicinais e Aromáticas do Instituto Chico Mendes (ICMBio), uma mangueira pode se comportar como invasora num ambiente e não em outro. Mas, em geral, elas apresentam mesmo comportamentos invasivos em vegetações florestais encontradas em todos os biomas brasileiros. Mesmo que os danos pareçam desprezíveis, Oliveira alerta para alguns detalhes. “Certas alterações sutis podem mudar a biodiversidade da unidade de conservação com contaminação genética de espécies locais”, lembra. Existem ainda casos documentados de que uma espécie exótica que não esteja apresentando comportamento invasivo mude esse status. “Manter espécies exóticas mesmo que ainda não tenham comportamento de invasoras é um risco em áreas onde se pretende preservar a biodiversidade nativa”, conclui Oliveira. É por isso que não apenas mangueiras, mas abacateiros, limoeiros, jaqueiras e pés de laranja vão tombar na Serra das Araras, para o bem da natureza.
Apesar dos riscos evidentes das espécies invasoras, a pesquisadora Marcia Chame, da Fiocruz, crê que seja importante relativizar para não banalizar esse problema. “De repente a gente entra ‘na moda’ das espécies exóticas invasoras”, alerta. Basta olhar para o caso das invasoras no Parque Nacional da Tijuca, no Rio, que teve nas árvores exóticas algumas das principais espécies usadas para o replantio histórico do século XIX. “A jaqueira é exótica, é invasora, mas ela está aqui há 200 anos. O parque vendo sendo espremido a cada ano e hoje muitas espécies já adquiriram uma dependência pela oferta do fruto, que, aliás, é o que tem a maior biomassa e dá o ano inteiro”, opina. Márcia é, para todos os efeitos, adepta a planos muito cuidadosos para lidar com as exóticas. “A gente tem que ter muito juízo para fazer esse controle, às vezes podemos estar causando um problema maior daqueles que tínhamos. É claro que algumas espécies requerem ações imediatas, mas precisamos de estudos”, continua.
Para Silvia Ziller, diretora executiva do Instituto Hórus, para mangueiras e quaisquer outras espécies de exóticas invasoras, a tolerância deve ser sempre zero. “Não existe isso de dizer que as exóticas já fazem parte do sistema. Ao longo do tempo vai haver algum favorecimento de fauna que se alimenta da manga, por exemplo”. A legislação é clara. A lei que cria o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (9985/2000) tem um artigo que proíbe o uso de espécies exóticas em unidades de conservação, com exceção de Áreas de Proteção Ambiental (APAs), Florestas Nacionais, Reservas Extrativistas e de Desenvolvimento Sustentável com plano de manejo. “Para parques nacionais ainda vale o Decreto 84.017/1979, cujo artigo 14 proíbe a introdução de espécies estranhas aos ecossistemas da unidade de conservação e, em seu artigo 17, define que as espécies alienígenas serão removidas com métodos e pessoal qualificado”, reforça Oliveira.
Árvores marcadas há cerca de um ano na unidade de conservação mato-grossense já podem ser consideradas em processo de “morte apial”, quando os galhos mais altos desfalecem. A expectativa é de que, em mais dois anos, as mangueiras estejam banidas da Serra das Araras.
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(Por Andreia Fanzeres, OEco, 06/01/2009)