A propriedade neste século XXI não é a mesma do século XIX, absoluta, inquestionável. Nos últimos anos, cada vez mais ela assume uma função social e ambiental. No Brasil, essa mudança se consolidou na Constituição de 1988. Por exemplo, não existem mais águas particulares, só públicas (CF, arts. 20, III e 26, I). A propriedade, que entrou nos direitos e garantias individuais, está atrelada ao exercício de sua função social (art. 5º, incs. XXII e XXIII).
Não é fácil adaptar-se aos novos tempos. Os operadores do Direito, que se formaram na velha escola do Código Civil de 1916, ficam perplexos. E os proprietários, mais ainda, já que não conseguem entender como podem ter seu direito restringido (v.g. proibição de construir em zona urbana, a menos de 30 m de um curso d’água, Cód. Florestal, art. 2º, “a”, I).
Novos tempos, novos direitos. As transformações sociais, a migração campo/cidade com o inchaço das periferias, a falta de moradia, os problemas ambientais, a má distribuição da renda, tudo isto força a existência de um novo Direito. Neste quadro, a utilização social da propriedade revela-se inevitável. Em meio a esta nova realidade, o artigo 1.275, III, do Código Civil de 2002 (CC) estabeleceu que se perde a propriedade pelo abandono. E o artigo 1.276, complementando-o, deu os requisitos. Façamos uma análise, com foco exclusivamente em imóveis urbanos:
Art. 1.276. O imóvel urbano que o proprietário abandonar, com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que se não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, 3 (três) anos depois, à propriedade do Município ou à do Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscrições.
§ 1º ...
§ 2º Presumir-se-á de modo absoluto a intenção a que se refere este artigo, quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus fiscais.
O dispositivo legal é claro. Atualmente, o dono de imóvel urbano que não esteja na posse de outrem não pode abandoná-lo, sob pena de perdê-lo. E isto sem direito a qualquer indenização, pois não se trata de desapropriação. Assim, o dono tem o dever de ser diligente e conservar o seu bem. Se nele houver construção, deve zelar para que não haja risco de desabamento e até pelo seu aspecto estético. Se for um terreno, deve mantê-lo limpo e não permitir que se transforme em depósito de lixo. Deve, também, evitar águas paradas que contribuam para a proliferação da dengue.
Se ele se omitir nestas e em outras providências, que são sinais exteriores do exercício da posse, e não satisfizer os ônus fiscais (principalmente o IPTU), seu imóvel poderá ser arrecadado como bem vago. Passados três anos, poderá ser incorporado ao domínio do município.
Esta ousada mudança foi precedida pela Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade) que, no artigo 4º, III, disciplina a ocupação do solo, e no 5º, § 1º, permite ao município considerar subutilizado o imóvel.
Mas o artigo 1.726 do CC e também o 5º do Estatuto da Cidade são pouco conhecidos e cumpridos. No entanto, não faltam imóveis abandonados nos municípios, principalmente nos litorâneos. Com efeito, milhares de terrenos são deixados à sua própria sorte. A regra geral é que nada se faz para arrecadar estes bens que descumprem a sua função social.
Vejamos as medidas que podem ser tomadas para alcançar tal fim: a) promover um levantamento de imóveis abandonados; b) instaurar um processo administrativo de arrecadação para cada imóvel abandonado, instruindo-o com prova da omissão no pagamento do IPTU e informações do setor de fiscalização (inclusive fotografias); c) notificar o proprietário, pessoalmente por funcionário da Prefeitura (Lei 10.257/01, art. 5º, § 2º), carta com AR ou, no caso de insucesso, por edital, para que exerça seu direito de defesa (CF, art. 5º, inc. LV); d) após, proferir decisão administrativa, decretando (ou não) a arrecadação como bem abandonado.
Note-se que o parágrafo 2º do artigo 1.276 do CC dá a presunção absoluta de abandono quando o proprietário, além de não exercer a posse, deixa de satisfazer os ônus fiscais. No entanto, o Enunciado 243, extraído de estudos promovidos pelo Conselho da Justiça Federal, conclui que o dispositivo citado não pode contrariar o artigo 150, IV, da Constituição, ou seja, o tributo não pode ser usado como instrumento de confisco. Não será difícil distinguir as situações. A omissão no pagamento dos tributos é apenas um indício a mais do abandono. Nele não se vê o objetivo de confisco de propriedade via ordem tributária, mas sim a busca do uso social da propriedade.
Ao município, depois de declarada a vacância do bem imóvel, cumpre aguardar por três anos, na forma do artigo 1.276 do C. Civil. Neste espaço de tempo, cabe ao Poder Público exercer a posse do imóvel, para tanto tomando as medidas que se fizerem necessárias (limpeza, cerca, etc.). Não teria sentido decretar a arrecadação e permitir que a inércia do dono permita que persista perigo ou dano social. No triênio, se o proprietário comparecer, terá direito a retomar a posse do bem, pois não se consumou o abandono (CC, art. 275, III). Aí, evidentemente, deverá ressarcir ao município todas as despesas a que deu causa.
Mas, se passados os três anos, a situação continuar a mesma, cabe ao município ingressar em Juízo requerendo a mera declaração judicial (que é indispensável) do seu direito (CPC, art. 4º, inc. I). Evidentemente, o proprietário será citado para o pedido e poderá contestá-lo. Julgada procedente a ação, será ela averbada no Cartório de Registro de Imóveis, nos termos do artigo 1.275, parágrafo único do Código Civil e artigo 167, I, item 28 (por analogia) da Lei dos Registros Públicos, transferindo-se o domínio para o município.
A lei civil não dispõe sobre o destino dos bens arrecadados. Mas está implícito que eles deverão ser utilizados, preferencialmente, em alguma atividade de cunho social. Afinal, a medida existe porque da propriedade se exige que tenha esta função. Assim, ao município, cabe destinar o imóvel a orfanatos, asilos, casa de aidéticos, prisão aberta ou outras atividades assemelhadas. Em suma, a propriedade urbana tem função social e o seu abandono pode resultar na sua perda, cabendo ao Poder Público tornar a lei uma realidade.
(Vladimir Passos de Freitas Consultor Jurídico, 04/01/2009)
*Desembargador aposentado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região e professor de Direito Ambiental da PUC/PR.