Se a nevasca iniciada no último dia de 2008 amainar, a Expedição Deserto de Cristal termina de levantar acampamento neste domingo (04/01). O vento também precisa ficar abaixo dos 20 km/h. Por fim, havendo horizonte minimamente contrastado, pousará na pista de gelo azul o jato Ilyushin-76TD que levará de retorno a Punta Arenas (Chile) os oito integrantes da primeira missão científica nacional ao interior da Antártida.
Uma semana atrás, o tempo ainda ajudava. Domingo, segunda e terça foram dias de boa atividade no acampamento da expedição, nos montes Patriot. Houve sol na maior parte das 72 horas e ventos suportáveis.
Os próximos dias seriam de muitos preparativos para encaixotar toda a carga. São mais de duas toneladas de barracas, aparelhos, todo o lixo gerado e, principalmente, 130 metros de cilindros de gelo.
Reabastecimento
No domingo passado, o tempo não havia ajudado tanto assim. Nublado, mas pelo menos sem nevar. Bom o suficiente para reabastecer com gasolina o gerador da estação de coleta de aerossóis montado pelo físico Heitor Evangelista e pelo biólogo Marcio Cataldo a 12 km do acampamento.
De lá as duas motos de neve seguem com a reportagem da Folha até o vale da Universidade. A finalidade do desvio é amostrar misteriosas linhas paralelas de sedimento, faixas amarronzadas no imaculado gelo azul. Quatro cilindros de 1,1 m a 1,2 m de comprimento e 10 cm de diâmetro foram escavados --manualmente.
Na segunda-feira (29/12), o repórter sai na moto de neve com Ulisses Bremer, geógrafo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em 20 minutos a dupla está na encosta do último monte Patriot, que marca a entrada do vale da Universidade.
Bremer começa a coleta de amostras de rochas intemperizadas, ou seja, a caminho de se transformarem em solo sob a ação dos elementos. O trabalho é realizado numa crista batida pelo vento, que expõe uma faixa de rocha escarpada.
A vista na direção oposta é ampla, como tudo na Antártida. Além da entrada do vale de gelo azul, contempla-se a moraina Rivera, uma linha de pedras depositada pela geleira.
Mais adiante, em linha semicircular com a cadeia Independence, veem-se as montanhas Marble. Elas ajudam a compor o imenso vale da Ferradura, do qual Patriot é uma das paredes.
Às 14h30 a dupla está de volta. "Foi o local mais difícil de coleta", conta Bremer para os colegas de expedição na barraca da cozinha. É o centro de atividade do acampamento.
Perfuração até 16 m
Naquela altura já estava montada a barraca amarela em forma de domo que abriga a sonda perfuradora de cilindros ("testemunhos") de gelo. Ambas estavam como retornaram da vizinhança do monte Johns, o acampamento de perfuração montado durante 16 dias a cerca de 150 km de Patriot.
A montagem teve a função de demonstrar o funcionamento da sonda para os dois jornalistas e os quatro integrantes da missão que permaneceram o mês inteiro em Patriot. Além disso, a saída de Johns havia sido atribulada, com decolagem às pressas dos bimotores provocada por mau tempo. Era preciso arrumar a aparelhagem para o retorno ao Brasil.
O equipamento é fabricado na Suíça de modo quase artesanal, e custa US$ 80 mil. Única da América Latina, a sonda permite perfurações a até 200 m de profundidade. Nas três horas de demonstração, alcançam-se 15,8 m, sem atingir a camada de gelo azul subjacente.
Além da neve superficial, todos os testemunhos retirados eram compostos do estágio intermediário chamado de "firn". A palavra, de origem germânica, designa a neve a caminho de se compactar como gelo.
Em busca de fósseis
No dia seguinte, terça, o líder da expedição, Jefferson Simões, da UFRGS, convida a reportagem para tentar localizar um afloramento de fósseis.
O percurso de ida tem várias paradas, na busca de uma passagem até a elevação onde fica o afloramento. Nada feito. Não se encontram rampas que comportem a subida das motos.
O caminho de retorno é feito em linha reta até o acampamento. As motos cruzam aos solavancos um gigantesco campo de sástruguis, cristas afiadas de neve dura esculpidas pelo vento. Ao todo, foram 4h30 de trajeto enregelante.
Coisa pior aguardava o grupo acampado no dia posterior, quarta-feira (31/12). Durante a "madrugada", com sol brilhante, o Ilyushin ainda pousou e decolou. Meia centena de passageiros desembarcou, e duas dezenas embarcaram. A festa de Ano Novo seria movimentada.
Às 9h, o tempo fechou. Começou a nevar. O horizonte sumiu quase por completo. Impossível sair "para a rua".
(Por Marcelo Leite, Folha online, 04/01/2009)