Países elaboram documento com uma agenda Sul-americana para a conservação e uso sustentável das águas, cuja disponibilidade média equivale a 28% dos recursos hídricos renováveis do mundo.
Um documento publicado este mês pelo comitê organizador do Fórum de Águas das Américas, evento realizado entre os dias 23 e 25 de novembro em Foz do Iguaçu (PR), traz uma descrição detalhada sobre os desafios e as perspectivas da América do Sul na gestão de seus recursos hídricos.
O caminho para uma agenda comum a fim de implementar ações de preservação é longo e cheio de barreiras. Entre os obstáculos estão a grande diversidade climática, variado clima de precipitação, culturas e realidades sócio econômicas diferentes. A disponibilidade hídrica média equivalente a 28% dos recursos hídricos renováveis do mundo é um atrativo aos grandes empreendimentos, o que podem representar também um problema para as administrações públicas que estão compromissadas com o meio ambiente.
Formada por 13 países - Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Perú, Suriname, Uruguai, Venezuela e Guiana Francesa – a América do Sul possui aproximadamente 18 milhões de quilômetros quadrados de extensão e cerca de 385 milhões de habitantes.
O clima tropical úmido e quente no Centro e Norte do território difere do médio nas latitudes maiores e frio nos pontos mais elevados da região Andina e na Terra do Fogo – arquipélago no extremo sul do continente formado por ilhas pertencentes ao Chile e à Argentina
O regime de precipitação na AL é muito variado com totais anuais que somam entre 2.200 e 3.800 mm no alto Amazonas e nas regiões litorâneas do Perú e Norte do Chile, e pluviosidade moderada nos pampas da Argentina, Uruguai e Sul do Brasil.
Existem regiões áridas ou semi-áridas, como o semi-árido nordestino do Brasil, o Norte do Chile, zonas da Bolívia e mais da metade do território argentino, que cobrem 23% do continente. Suas principais bacias são a dos rios Amazonas, a maior do mundo; do Prata, a segunda maior da América do Sul; Orinoco, São Francisco e Madalena.
Sua população está heterogeneamente distribuída, com vazios demográficos em extensas áreas de selvas tropicais (Amazônia), no deserto de Atacama e em porções geladas da Patagônia. E regiões de alta densidade populacional, como as regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro e Buenos Aires, que superam os 10 milhões de habitantes, e as taxas de urbanização são superiores a 60% para 10 de seus países.
Os Índices de Desenvolvimento Humano (IDH), publicados em 2005, indicam que quatro países igualam ou superam a cifra de 0,800; sete chegam a 0,750 e só um registra um valor menor a 0,700. O Produto Interno Bruto (PIB) supera sete mil dólares per capita em seis países, quatro mil dólares em quatro e somente em um é menor que três mil. Em todas as periferias das grandes cidades se encontram numerosos nichos de pobreza.
Os desafios frente à demanda energética
A crise financeira internacional, as dificuldades dos países para pagamento da dívida externa e as condições de financiamento que podem restringir os investimentos em programas sociais como acesso à água potável e saneamento estão entre os desafios hídricos apontados pelas autoridades.
Há uma forte tendência em vários países da região à expansão das fronteiras agropecuárias por ter condições naturais favoráveis para a produção de alimentos e de biocombustíveis.
A crescente demanda energética está impactando fortemente a região com o desenvolvimento de projetos hidrelétricos sobre rios transfronteiriços. O mesmo ocorre com a crescente demanda por madeira e seus produtos derivados. As exigências e regras dos mercados mundiais podem ocasionar importantes impactos sobre as reservas naturais da América do Sul. Isso é resultado de intensos processos de desmatamento nos bosques naturais e de implantação de espécies exóticas, com o consequente efeito sobre o solo, sobre as águas e sobre a biodiversidade.
Existe também o perigo da instalação de indústrias que não reunam os requisitos ambientais exigidos em seus países de origem, ante a ausência ou as dificuldades de aplicação de controles adequados no continente, com os consequentes problemas potenciais de contaminação.
O incremento do preço dos metais tem ocasionado o desenvolvimento de novos projetos nos países com grande potencial. Existe uma grande preocupação com a localização de alguns projetos mineiros que podem afetar algumas fontes de água, como geleiras. A necessidade de água para a exploração e processamento dos minerais tem criado situações de competência com outros usos de água, em particular com irrigação de zonas agrícolas. E, por outra parte, tem levantado a possibilidade de venda de água de um país para o outro. Assim mesmo, a exploração mineral pode ser a causa dos impactos negativos sobre a qualidade dos recursos hídricos, durante os processo de separação dos metais e ao dispor dos resíduos da produção.
Há também uma profunda preocupação com as implicações dos acordos de livre comercio e a classificação deles sobre a água como uma mercadoria, aplicando diretamente as regras que devem reger qualquer mercadoria, sem considerar o valor social e ambiental da água, bem como o econômico.
Diante de tal quadro, faz-se necessário resguardar a produção de alimentos e a existência dos bosques naturais, diante do incremento da produção dos agrocombustíveis; fomentar pequenos e médios empreendimentos hidrelétricos; aplicar tecnologias adequadas nos novos projetos hidrelétricos para reduzir os impactos ambientais e sociais; recomendar ações para reduzir o impacto da mineração sobre a água; e promover o reconhecimento do acesso à água potável e ao saneamento como direito humano e garanti-lo por meio de um pacto internacional da água.
Êxodo rural pressiona urbanização
A América do Sul tem experimentado nas últimas décadas notáveis processos de crescimento das zonas urbanas pela migração da população rural de cada um dos países até suas cidades e o translado de contingentes migratórios de alguns países da região com maiores problemas sociais e econômicos até outros que oferecem melhores condições.
Surgem nas zonas urbanas sérios problemas relacionados com recursos hídricos. O crescimento da população e o aumento das zonas impermeáveis agravam o problema das inundações. Aumenta a demanda por serviços de água potável e saneamento, ainda deficitários na maioria dos países sul-americanos. Por outra parte, aparecem várias fontes contaminantes como resultado da disposição dos resíduos sólidos e efluentes industriais sem nenhum tratamento.
Expansão da fronteira agropecuária altera uso do solo
A expansão da fronteira agropecuária em vários dos países sul-americanos – pelo aumento da demanda por alimentos e o incremento na produção de biocombustíveis – tem levado a mudanças no uso do solo em extensas áreas para substituir a vegetação natural por cultivos.
Tais mudanças e a aplicação de técnicas agrícolas nem sempre apropriadas têm produzido um impacto direto sobre os solos e o comportamento hidrológico das bacias. A erosão, com a perda de solos de alto valor produtivo, as mudanças nos percursos, com a consequente transferência de sedimentos, a crescente utilização de fertilizantes e pesticidas, estão afetando a qualidade das águas superficiais e subterrâneas da região e criando problemas nos requerimentos de drenagem nas vias navegáveis.
A extensão da fronteira agropecuária até as zonas com menores valores de precipitação tem sido necessário recorrer a irrigação complementar , aparecendo eventuais conflitos com outros usos da água e perigos de sobre exploração de aquíferos, cujos volumes e capacidade de recarga não se conhecem adequadamente.
Dentre as ações necessárias à sustentabilidade dos recursos naturais estão a aprovação de políticas em relação ao ordenamento do território, o estabelecimento de planos de manejo de bacia para ganhar produtividade silvoagropecuária e a manutenção das funções dos distintos ecossistemas de acordo com suas capacidades.
Impactos das mudanças climáticas já atingem países
Dada a extensão e as características fisiográficas da região e a influência que exerce sobre elas os oceanos Pacífico e Atlântico, o aumento da temperatura está produzindo situações diferentes nos países sul-americanos como a evaporação e suas mudanças com o aumento ou diminuição das precipitações e o impacto sobre os fluxos.
Preocupa a diminuição de água nos reservatórios com a consequente diminuição da geração hidrelétrica e da disponibilidade de água para irrigação e outros usos e os fenômenos extremos de inundações e secas, tanto no que se refere a sua magnitude, como a sua frequência e duração e a seus impactos, como o aumento da desertificação. O aumento da temperatura afetará também as geleiras e seu papel como uma fonte de água.
É preciso melhorar a gestão dos recursos hídricos para enfrentar os impactos das mudanças climáticas; quantificar economicamente as consequências dos eventos extremos; restaurar áreas degradadas; integrar a mudança climática à gestão dos recursos hídricos e a todas as políticas públicas setoriais, como a saúde, agricultura e energia; e desenvolver programas de educação sobre as mudanças climáticas e seus impactos.
Governos despertam para os problemas presentes e futuros
Se antes os governos sul-americanos não demonstravam a mínima preocupação com as questões ambientais, as administrações recentes têm alguns avanços a apresentar, especialmente na gestão das águas. Exemplo é o fortalecimento institucional de alguns países: a atualização do Plano Nacional Federal de Recursos Hídricos e o fortalecimento do Conselho Hídrico Federal da Argentina; a conformação do Ministério da Água na Bolívia; a constituição de comitês de bacias e cobrança pelo uso da água no Brasil; a modificação no Código de Águas no Chile; a fixação de taxa redistributiva por contaminação dos corpos de água na Colômbia; a criação da Secretaria Nacional de Água no Equador; a aprovação do Plano para corporação da Água da Guiana; a sanção da Lei dos Recursos Hídricos e da autoridade Nacional da Água do Perú; o programa de atualização do Plano Diretor da Zona Costeira no Suriname; e as reformas constitucionais que declaram a água como direito humano no Uruguai e na Venezuela.
Quanto à participação da sociedade civil destaca-se a criação do Conselho Técnico Social na Bolívia, de onde se articula o Executivo com representantes da sociedade, e a criação de um novo organismo regulador do uso da água, com participação majoritária das organizações de irrigação.
No Uruguai, a Comissão Assessora de Águas e Saneamento reúne usuários e sociedade civil na gestão dos recursos hídricos. O Brasil, a adoção de um Sistema Nacional de Gestão de Recursos Hídricos (Singreh), composto por conselho nacional, conselhos provinciais, comitês locais de bacias e por suas respectivas agências de bacias.
Para se prevenir dos impactos das mudanças climáticas, o Perú está testando um projeto piloto de reúso da água em pequenas comunidades. A região Andina está compartilhando informações e experiências sobre geleiras e projetos pilotos de vulnerabilidade e impacto. O Uruguai realiza estudo de impacto das mudanças climáticas na agricultura e medidas de adaptação.
Participaram da elaboração do documento representantes dos 13 países agrupados no Consórcio Regional das Américas (CRA) e da Agência Nacional de Águas (ANA), entidades responsáveis pelo Fórum e por apresentar tais realidades e propostas no 5° Fórum Mundial da Água, previsto para março do próximo ano em Istambul, na Turquia.
(Por Cleber Dioni, AmbienteJÁ, 29/12/2008)