O bioma Cerrado está presente em 12 estados brasileiros, é o segundo maior do Brasil ocupando quase um quarto do território nacional. Até 1950 ele tinha sofrido alterações somente pelo garimpo, que transformou a paisagem através das inúmeras trilhas e canais abertos, recriando principalmente sua estrutura cultural ao trazer a tradição africana para a região.
A partir da construção de Brasília, o Cerrado sofreu mudanças mais devastadoras em sua paisagem natural. Durante os anos 70 e 80 a mineração causou o assoreamento de diversos rios além de poluir as águas com mercúrio. Recentemente, a agricultura e a pecuária vêm desfigurando profundamente o bioma porque além do desmatamento, há os agrotóxicos, que poluem os solos e a água e as queimadas que elevaram esse bioma ao topo das regiões brasileiras emissoras de gases de Efeito Estufa.
Para complementar esse cenário, no Cerrado há projetos de diversas hidrelétricas que alterarão a paisagem natural e cultural, já que em muitos lugares as populações terão que ser re-alojadas. O Rio dos Couros, no município de Alto Paraíso, um lugar com altíssimo potencial ecoturístico, é um dos pontos escolhidos para a construção de uma usina; apesar de estar na fronteira com o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, não tem proteção (menos de 2% da área total do Cerrado está protegida). Em 2000, o bioma Cerrado foi classificado pela Conservação Internacional como “hot spot”, ou seja, uma das áreas do mundo ricas em espécies que se encontra em estado crítico. Dos 204 milhões de hectares originais, 57% já foram completamente destruídos e a metade das áreas remanescentes está bastante alterada, podendo não mais servir à conservação da biodiversidade. A taxa anual de desmatamento nesse bioma é alarmante: 3 milhões de hectares/ano.
O município de Cavalcante, em Goiás, possui 7.000 km2 e está dentro da Reserva da Biosfera Goyaz, reconhecida pela UNESCO. Cavalcante possui também a maior parte do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros e sete RPPNs, o que faz a região ser mais preservada do que outros municípios do Cerrado. Alguns proprietários fundiários, preocupados com a destruição do bioma, transformaram suas terras em Reserva Particular do Patrimônio Natural. Atualmente as RPPNs formam um corredor ecológico que se conecta ao Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros garantindo a manutenção de enormes áreas de vegetação nativa de Cerrado.
Uma das RPPNs de Cavalcante, a Reserva Bacupari, uma Unidade de Exploração Agroturística Sustentável dos Recursos Naturais do Cerrado, vem desenvolvendo um projeto muito importante no que diz respeito às práticas ambiental e socialmente éticas. Fabio Padula, dono da RPPN, faz um trabalho através do aproveitamento dos frutos do Cerrado, da produção de mudas de espécies nativas, do incentivo ao artesanato que utiliza sementes, fibras e madeiras extraídas com responsabilidade ambiental. Ao perceber que o ecoturismo está crescendo na região e que se for implementado de forma sustentável pode propiciar a preservação do bioma, Fábio começou um investimento neste ramo da economia dentro da RPPN aliado ao trabalho sócio-ambiental. Dessa maneira há uma programação que o visitante pode fazer dentro e fora da RPPN. Uma das opções é o “passeio interativo” onde o turista entra em contato com algumas tecnologias sustentáveis empregadas na RPPN, (como a permacultura, já que há habitações ecológicas, energias renováveis, segurança alimentar, câmaras de tratamento de esgoto, cuidados com a água, exploração de frutas nativas do cerrado, manejo de rebanhos, compostagem, geração de renda e consumo sustentável) percorre uma trilha interpretativa e no final chega ao Rio São Bartolomeu onde pode se refrescar. Além disso, a RPPN oferece oficinas (biojóias, capim dourado, buriti...), palestras, cursos, observação de aves e vivências sempre estimulando os sentidos e a educação ambiental.
Outra opção muito atraente é o “brunch do Cerrado” um lanche que é produzido na reserva. São servidos bolos, pães, biscoitos, geléias, doces, sucos, chás e outras guloseimas todos feitos com ingredientes do cerrado, principalmente frutos, castanhas e ervas, o que faz o visitante passar por uma experiência única e sentir sabores muitas vezes nunca antes apreciados. Muitas das pessoas que querem conhecer a Reserva Bacupari se hospedam na Pousada Manacá, em Cavalcante que também oferece vários roteiros turísticos aos visitantes e possui um café da manhã especial.
São oferecidos pães, bolos e sucos, feitos em sua maioria com ingredientes do Cerrado. Além disso, pode-se almoçar ou jantar na pousada algum prato feito da mesma maneira, como o risoto de buriti, a moqueca de cajuí e de sobremesa um mouse de cagaita. Tudo colhido de maneira sustentável dentro da RPPN.
A fauna e a flora do Cerrado são insuficientemente conhecidas, ambas possuem números impressionantes. A flora catalogada possui mais de 12.000 espécies, no entanto, uma parte muito pequena de suas plantas medicinais é estudada: aproximadamente 5%. Boa parte desse conhecimento é transmitida através dos anos de pai pra filho e hoje, alguns pesquisadores da área estão com projetos que aliam a preservação cultural e ambiental buscando na sustentabilidade uma maneira de viver com qualidade.
A PhytoEssencial, por exemplo, retira óleos de plantas do Cerrado em parceria com comunidades locais como o quilombo Kalunga, do “Vão das Almas”. Ali, os participantes do empreendimento tiveram treinamento especial para adequar a extração dos óleos de maneira sustentável: apenas 40% dos frutos, folhas e matéria-prima das plantas são retirados.
Desse modo, a renda das comunidades locais cresce e a natureza passa a ser vista por outro ângulo, preservando-a muito mais, na medida em que deixam de cortar e queimar árvores para coletar os frutos e obter renda. A PhytoEssencial, utiliza principalmente os cocos do babaçu, do indaiá, e do buriti, a resina da almécegas, o óleo da arnica, da copaíba, da sucupira, da macela do campo, da aroeira, do tingui e o óleo essencial do pau-rosa.
Todas essas espécies possuem propriedades terapêuticas já conhecidas pelas comunidades locais, que as utilizam há anos no seu dia-a-dia. A parceria envolve empreendedores como a Pousada Manacá, que utiliza os produtos da PhytoEssencial para os hóspedes, como sabonetes, por exemplo. A Reserva Bacupari também participa como uma área de coleta, treinamento e comercialização dos produtos.
Os povos do Cerrado lidam com o bioma das mais diversas formas. Há os habitantes das áreas urbanas, os povos indígenas, pequenas comunidades agroextrativistas, trabalhadores rurais e comunidades remanescentes de quilombolas. Cada um desses grupos possui cultura própria e isso torna a preservação extremamente necessária não apenas pela fauna e pela flora, mas também pela preservação da identidade cultural desses povos.
O quilombo Kalunga, por exemplo, existe há aproximadamente 300 anos e abrange os municípios de Cavalcante, Teresina de Goiás e Monte Alegre. Kalunga, na língua banto, (língua do grupo nigero-congolês falada por grande parte dos africanos vindos ao Brasil) que dizer “lugar sagrado”, de proteção e é onde alguns dos descendentes dos escravos vivem até hoje.
Na comunidade Kalunga “Engenho 2”, no município de Cavalcante, o líder comunitário Cirilo dos Santos Rosa, conta que eles vivem da agricultura de subsistência, (arroz, feijão, abóbora, cana...) de um pequeno incentivo governamental (que constrói casas e trouxe a energia elétrica) e do ecoturismo já que o lugar possui uma das mais belas cachoeiras da região, a Santa Bárbara. Cirilo revela que a luta pelo reconhecimento da área quilombola é muito antiga, faz apenas 23 anos que ela recebeu o título de Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga. Observa também, que a luta continua já que os moradores do quilombo ainda não possuem regularização fundiária e que a estrutura para receber os turistas é muito precária, o que diminui a lucratividade. Além disso, a comunidade carece de postos de saúde e escolas que ofereçam o ensino médio.
Os municípios da Chapada dos Veadeiros promovem cada vez mais eventos com o objetivo de preservar a sua tradição e de mostrar para as novas gerações as diversas culturas populares do nosso país.
Há o Festival de Inverno de Alto Paraíso, a Mostra de Cinema Etnográfico de Cavalcante, o Encontro dos Povos da Chapada dos Veadeiros, o Festival de Gastronomia da Chapada dos Veadeiros, o Festival de Música Instrumental e Arte Popular de Cavalcante, o Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros e muitos outros que buscam passar conhecimentos e vivências sempre valorizando o Cerrado.
O Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros, que neste ano realizou a sua oitava edição, é um ótimo exemplo disso, além de ser gratuito. A Vila de São Jorge, no município de Alto Paraíso, é palco de artesanato, rodas de prosa, música, danças, oficinas, cinema, teatro, circo, diversas etnias, principalmente da Chapada dos Veadeiros, mas também de outros lugares do Brasil e do exterior. Exibem a riqueza das culturas populares para as populações locais, os turistas e tem visibilidade internacional, através da Internet. Visa o reconhecimento da região como Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO com a preservação das culturas e conservação do Cerrado.
(Por Ana Huara*, Eco21, 18/12/2008)
*Ambientalista, fotógrafa e estudante de Geografia e Meio Ambiente na PUC-RJ