O alerta de pesquisadores do Instituto Chico Mendes (ICMBio) é claro: “Cuidado para não te confundirem com o pessoal do Ibama”. Estamos no interior na Amazônia, na Vila de Santo Antônio do Matupi, mais conhecida pelo quilômetro da Transamazônica no qual ela se expandiu, o 180, a partir da cidade de Humaitá (AM). Sua história começa na década de 1990, quando o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), com sua política de assentamentos e fomento à ocupação a partir de suporte à alimentação e habitação, atraiu os primeiros moradores ao local.
Apesar disso, foi somente nos primeiros anos do século XXI que a região viveu o seu 'boom', com a chegada maciça de novos moradores, atraídos pela mata nativa do entorno da Vila. Um convite à exploração. A demora no crescimento de Matupi talvez possa ser explicada por um levantamento do histórico da população feito pelo ICMBio. Segundo o órgão, nos anos posteriores à sua criação, ela foi paulatinamente abandonada por muitos dos “beneficiários do Incra”. Eles venderam propriedades a fazendeiros que, ao comprar os pequenos lotes, formaram grandes latifúndios.
Hoje, a Vila dos 180 possui cerca de 4,8 mil habitantes, segundo censo realizado pela Comissão Pastoral da Terra. Mas este é apenas o número extra-oficial. Para o ICMBio, os moradores já chegam a 10 mil. A extração da madeira e a criação de gado continuam a ser o principal modo de sobrevivência no local. Na área relativamente pequena da vila, há cerca de 20 serrarias e outros empreendimentos correlatos, como oficinas de motosserra. O número de cabeças de gado, segundo moradores locais, chega a 70 mil.
Quem trabalha com madeira por lá anda com o discurso pronto de que o material provém de áreas legalizadas por “planos de manejo”, mas todos sabem que a maioria das serrarias atua à margem da lei. Fácil entender a antipatia pelos fiscais do Ibama.
No vilarejo, basta dar uma volta pelas ruas de terra batida para perceber que os moradores vieram de longe. Romildo Portela é um dos destes migrantes. Natural do Paraná, Portela chegou na Vila há sete anos, atraído pelo trabalho na construção civil, atividade então em expansão. Ele e sua esposa, Girlei, uma catarinense radicada em Rondônia, foram morar em uma das dez casas que havia no local, mas as atividades prosperaram e, hoje, o casal comanda hotel e restaurante.
Segundo Portela, vendedores de roupas e alimentos, fazendeiros em busca de terras e madeireiros são seus principais clientes. Amarildo Dias, sócio da AM Madeiras, de Ariquemes (RO), era um deles. Natural de Santa Catarina, chegou em Rondônia há cinco anos, para trabalhar com “secagem e beneficiamento de madeira”. Há dois o empresário comprou terras na Vila dos 180, também com o intuito da exploração madeireira. “Tudo certinho, com plano de manejo”, garante ele, que não se deixou ser fotografado “por precaução”.
Assim como outros empreendedores, Dias não precisou desembolsar muito dinheiro para adquirir as terras em Matupi. Lá, o hectare de floresta custa de 100 a 150 reais. Já o terreno transformado em pasto, segundo ele, vale 10 vezes mais. “O caro é manter a propriedade”, diz, enumerando os vários gastos que tem com segurança da área. Se não se cuidar, outro pode ligar a motosserra antes dele.
Fabrício Barthmann de Boné, 32 anos, é outro migrante que chegou à vila em busca de terras. Mas suas intenções são diferentes. Vindo de uma fazenda familiar de cana e arroz em Rio Claro, no interior de São Paulo, quer lucrar com a floresta em pé. “Desde o Tratado de Kioto, vimos que a geração de créditos de carbono era um mercado potencial. Nosso desejo é criar uma RPPN [Reserva Particular do Patrimônio Natural] ou uma RPDS [Reserva Particular de Desenvolvimento Sustentável]”, diz.
No entanto, o sonho de proteger seus três mil hectares de terra – ainda que com fins comerciais - está parado há um ano nos escaninhos dos órgãos ambientais do estado do Amazonas. Segundo Boné, nem os funcionários do Instituto de Proteção Ambiental do Estado do Amazonas (Ipaam) souberam orientá-lo sobre como criar uma reserva particular. “As pessoas ficam surpresas quando pergunto por isso. Procurei vários funcionários e nenhum soube me dizer como fazer isso. Aqui quem faz a lei é o povo e onde vale o ditado 'quem pode mais, chora menos'”, reclama.
Além da madeira, a vila sobrevive com o comércio de leite e derivados. Rinaldo “Queijeiro” chegou por lá em abril deste ano, após comprar 600 hectares de pasto para criação de gado. Depois de ver que não tinha tino para o negócio, resolveu tentar outra empreitada: acabou de se tornar sócio do laticínio da Vila, que recebe leite de 27 produtores. “A maioria dos produtores é de pequeno porte, até 50 litros por dia. O maior deles produz 300 litros”, diz. Segundo ele, são produzidos mensalmente sete mil quilos de queijo, mas o mercado da vila e das cidades da região conseguiria absorver até 10 mil quilos.
Para tentar melhorar a produção de Matupi, em 2000 o governo do estado implantou um programa de plantio de cupuaçu. No entanto, o poder público não deu continuidade ao projeto e negligenciou a necessidade de infra-estrutura para escoamento da produção, segundo moradores. “È difícil colocar na cabeça do povo que gado e madeira não dão dinheiro em longo prazo. Esse paradigma precisa ser quebrado, mas, para isso, precisava ter um tipo de Sebrae [Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas de São Paulo] aqui”, defende Fabrício Boné.
Há algumas semanas, o Ibama realizou uma grande operação em Santo Antônio do Matupi e todas as serrarias foram fechadas. Mas bastou os fiscais virarem as costas para que as máquinas voltassem a funcionar. A situação preocupa o Instituto Chico Mendes, já que as propriedades estão bem próximas aos limites do Parque Nacional dos Campos Amazônicos e, ainda hoje, cerca de 20 famílias moram dentro da unidade de conservação.
Para tentar minimizar as pressões sobre o parque, o órgão inseriu a vila como um dos pontos principais do plano de manejo que está sendo elaborado. O documento deve ficar pronto daqui a um ano, mas uma coisa eles já sabem: há muito trabalho pela frente. E a regularização de Matupi não depende só deles.
(Por Cristiane Prizibisczki, OEco, 17/12/2008)