Paulo César Quartiero é um agrônomo gaúcho que emigrou a meados dos anos 70 do extremo sul para o extremo norte do Brasil, do Rio Grande do Sul para Roraima, na fronteira com a Guiana e com a Venezuela, adquirindo fazendas por uma extensão total de cerca de dez mil hectares, situados na Raposa Serra do Sol (RSS), território indígena; um território desamparado frente a esse tipo de invasões.
Reconhecidos os direitos indígenas pela Constituição de 1988, demarcada e titulada a RSS provisoriamente em 1993 e de forma definitiva em 2005, e defendida durante os últimos anos a condição indígena desse território pelo governo federal, Quartiero se converte no líder da frente anti-indígena, preconizando a continuidade de uma ocupação que não só subtrai uma porção do território, mas que também o fragmenta em setores sem comunicação entre si. Em maio de 2008, foi preso sob a acusação de possuir explosivos e manter grupos armados que haviam assassinado pelo menos dez indígenas e destruído as propriedades de muitos outros. Também é acusado de corrupção política por recorrer à compra de votos para aceder a cargos públicos no Estado de Roraima. São casos que estão pendentes. Quartiero, após ter sido solto, não desiste; prossegue pelos meios de batalha cultural e pela frente jurídica.
Quartiero, com o respaldo incondicional do Estado de Roraima, consegue catalisar um forte lobby no qual participam pessoas ligadas ao jurídico, à universidade, à política e à polícia. Organizam-se conferências nas quais as autoridades de todas essas áreas explicam que a demarcação do território indígena atenta contra o direito do Brasil ao desenvolvimento e prejudica os próprios "índios" porque os separa da "civilização"; que um território indígena fronteiriço constitui um grave perigo à "soberania nacional", colocando em risco a integridade do Brasil; que tanto os antropólogos, quanto as organizações não governamentais converteram-se em outro perigo contra o direito e os interesses brasileiros; que a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas responde a uma conspiração internacional para debilitar os Estados emergentes da América Latina; que seria "traição à pátria" qualquer ação federal favorável a dita Declaração; que é sinal de falta de solidariedade e é antipatriótico que umas comunidades indígenas empenhem-se em tomar posse de mais terras do que as que necessitam para seu mero sustento material etc. A ofensiva cultural e política é forte em Brasília ante os poderes federais. Na Câmara dos Deputados formou-se uma Frente Parlamentar de Apoio às Forças Armadas na Amazônia, que não oculta os vínculos com os interesses dos fazendeiros invasores dos territórios indígenas.
A frente jurídica recorre também ao Supremo Tribunal Federal (STF), conseguindo a paralisação das iniciativas de organismos federais, como o Ministério de Justiça, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e da Fundação Nacional do Índio (Funai), para sanear a RSS de invasões e ocupações. A ação federal é suspensa por auto interlocutores pendentes então da resolução final de um caso que estava sob cargo do STF. Uma vez que a ofensiva contra os territórios indígenas está sendo produzida e se intensifica por outras zonas em outros Estados brasileiros, a RSS converte-se em um caso não somente emblemático, mas também de importância real para todos os povos acossados em todo o Brasil.
A parte indígena também opta pela via do direito e não pela da confrontação primariamente buscada por Quartiero e seu grupo. O STF se converte em um árbitro entre todas as partes, com aceitação também indígena. A questão torna-se fortemente polêmica para os onze membros do STF, provocando marcadas discrepâncias em seu seio. O ministro relator, o constitucionalista Carlos Augusto Ayres de Freitas Brito, assumiu o caso com tal interesse, paciência, dedicação e estudo que, contra prognóstico, vai conseguindo formar uma maioria favorável à parte indígena. Na audiência pública do dia 10 de dezembro manifestou-se a consistência dessa opinião que já pode, com segurança, ser considerada como a que será formalizada como sentença, que será ditada somente em 2009. E, por primeira vez na história, uma advogada indígena, Joênia Wapichana (Joênia Batista de Carvalho) atuou diante do STF.
A consequência imediata da sentença do STF, quando seja produzida, será a retomada das ações federais para o saneamento do território indígena da RSS, assunto ao que se atinha o caso. Porém, os membros do STF, a partir do mesmo, pronunciaram-se sobre limitações do direito territorial indígena, não sendo insensíveis às tentativas limitativas por motivos como o de umas atribuições públicas sobre território e, o mais sensível, recursos, incrementadas no caso pela posição fronteiriça da RSS. Preocupante: os votantes até agora têm evitado referir-se ao Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho, como se não o considerassem vigente no Brasil. Um ou outro referiu-se à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas; porém, para desqualificá-la seus efeitos jurídicos.
O alcance efetivo da extensão da matéria em juízo, desnecessária e inconclusa, impertinente para a resolução do caso, não se poderá com segurança até que a sentença seja ditada. Em todo caso, um tribunal sem participação indígena está cedendo à tentação de decidir por si só sobre o direito desses povos. O Brasil é parte de dito Convênio 169, um tratado multilateral que requer outros procedimentos em relação aos povos indígenas.
Quartiero, por seu lado, não se mostra disposto a tornar as coisas fáceis para a execução da sentença. Suas declarações imediatas: "Lutamos para que a questão da demarcação fosse julgada, mas o resultado não foi o que esperávamos". E apressou-se a manifestar que não aceita: "O voto dos magistrados foi um voto rancoroso contra os produtores, contra os proprietários agrários, contra o Estado de Roraima; foi um voto ideológico, mais preocupado pelo politicamente correto do que pelos fatos". Abriga, todavia, a esperança de uma mudança: "A crise econômica está alcançando o Brasil e isso vai desmascarar o desgoverno, o ambientalismo e a desnacionalização". E gira, finalmente, do descaramento para a ameaça: "Não podemos continuar com situações tão vexatórias como a de acudir ao Supremo Tribunal Federal para que ser tachado de invasor, assassino de índios e destruidor da natureza"; "digo aos produtores que os problemas nunca vão acabar se não reagirmos. Hoje, são os índios", como amanhã, agrega, "serão outros". Já se vê aonde apontam em primeiro lugar as ameaças. Amanhã, dá a entender que os índios não estarão. O impulso é claramente genocida.
Existem, portanto, reações de outro signo e não somente como é natural, pela parte ganhadora ante a justiça. O Relator Especial do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre a situação dos direitos humanos e liberdades fundamentais dos indígenas, James Anaya, congratulou-se imediatamente pela resolução do caso. Também expressou sua preocupação devido ao fato do STF não se ater ao assunto estrito, conforme as petições das partes, e se estendia a pronunciar-se sobre o conteúdo do direito indígena.
Entre as congratulações, não falta as da Funai. Seu diretor, o antropólogo Márcio Augusto de Meira, tem sido diligente em pronunciar-se ante a resolução judicial do caso RSS. Manifesta que os argumentos extensivos dos ministros da Corte "demonstram a necessidade do fortalecimento do poder público nas terras indígenas", sublinhando em seguida que a própria Funai "já vem trabalhando em tal sentido, com o incremento de seu orçamento". Márcio Meira não expressa preocupação sobre os pronunciamentos do STF limitativos do direito territorial indígena. Assim, a Funai não pede o fortalecimento dos povos indígenas e nem que o orçamento público seja incrementado para a evicção sem demora dos indígenas com compensação a cargo do Estado, no caso de que tivessem título originalmente obtido de boa fé.
E, diante de atitudes de compulsão genocida, tampouco nos esqueçamos de que existem responsabilidades penais pendentes, inclusive por assassinatos, cuja depuração, com todos os meios públicos precisos, é igualmente mais importante e urgente do que a ascensão de posição da Funai. Uma vez mais, a organização indigenista rende ao Estado o serviço de solapar os povos indígenas.
(POr Bartolomé Clavero *,
Adital, 15/12/2008)
* Membro do Fórum Permanente das Nações Unidas para as Questões Indígenas