Pelo visto, as chuvas voltaram ao normal em Santa Catarina. Quem continua a se comportar de maneira estranha é o governador Luís Henrique da Silveira. Não lhe basta ser o tricampeão nacional de derrubada da mata atlântica. Ou mesmo o propagandista de um Código Ambiental para revogar todas as disposições contrárias a suas idéias, como transformar Florianópolis em Marbela. Ele agora patrocina na Assembléia Legislativa a liquidação do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro.
O parque é o melhor remédio da farmacopéia política catarinense para evitar o desmanche de seus morros, quando os céus desabam sobre a imprevidência humana aqui na terra. Tem 90 mil hectares. Cobre um por cento do estado. Quem não o reconhece pelo nome, mas andou um dia pelo litoral do estado, mesmo distraído há de ter percebido sua existência.
É dele a paisagem que liga o mar ao planalto, com mata atlântica, restingas verdes, florestas de araucária e campos de altitude. E engloba os mananciais que abastecem Florianópolis, canalizando para as torneiras de um milhão de pessoas, em perfeitas condições de uso, a água serrana dos rios Vargem do Braço e Cubatão. É nisso que o governador resolveu mexer, para estragar.
Loteamento informal
O parque está ali desde 1975. Vive há 33 anos sob ataque. O resto ficou sendo de quem pegou primeiro. Como a Baixada do Maciambu, vítima do decreto que lhe amputou uma faixa de 500 metros da costa, em Palhoça, para dar ao município um balneário.
Alegou-se, na ocasião, a urgência de regularizar seis mil lotes situados dentro de seu território – todos eles generosamente distribuídos pela prefeitura em área pública, confiada à administração local desde 1904 e ainda por cima protegida contra todo tipo de ocupação pelo Código Florestal de 1965. Isso foi em 1979, quando o parque tinha apenas quatro anos. Abriu o atalho político para desmembrá-lo. E não parou mais, segundo o geógrafo Leonardo Carvalho, que viu a pressão contra aintegridade do parque subir como gerente de Unidades de Conservação da Fundação de Meio Ambiente de Santa Catarina e diretor de Estudos Ambientais de Palhoça.
Segundo Carvalho, a história ambiental da Serra do Tabuleiro é mais longe até que a do parque. “Mesmo antes da criação de tal área especialmente protegida, o Padre Raulino Reitz e o Botânico Roberto Miguel Klein, que à época detinham o maior conhecimento de campo sobre a biodiversidade Catarinense, já haviam vislumbrado a importância estratégica de se proteger, para benefício das gerações futuras, toda a região que atualmente compõe o parque, tanto devido às características hídricas, geológicas, geomorfológicas, florísticas e faunísticas de tal área, bem como por suas potencialidades paisagísticas e turísticas”.
Mosaico de Apas
Isso não impediu que, a partir dos seis mil lotes desafetados em 1979, houvesse 12 mil propriedades na Baixada do Maciambu, quatro anos atrás. A prefeitura de Palhoça os reconhecia informalmente, cobrando-lhes IPTU em dobro, inclusive de lotes que ficavam dentro de outros, ou mesmo em ruas e rios. É essa multiplicação de direitos nulos que se pretende arrumar às custas do parque.
Tudo isso às custas de uma paisagem rara. No Maciambu, lembra Carvalho, “os cordões arenosos semi-circulares da restinga formam um monumento geológico, que representa uma aula viva da formação das planícies quaternárias”. E sua preservação foi recomendada pelo I Simpósio Internacional de Geomorfologia, que ocorreu em Florianópolis em 1975.
Mas o parque nasceu emparedado entre nove municípios. E enfrenta, desde que o Decreto Estadual nº 1.260/75 declarou de utilidade pública suas terras, reservando-as à desapropriação, a má vontade da especulação imobiliária no litoral e da agricultura no interior. Sob o cerco de nove municípios, ele recebeu no começo da década um alento, em forma de créditos externos para programas de salvação da mata atlântica. A Serra do Tabuleiro é seu maior fragmento no Sul do Brasil. E o parque ganhou por isso financiamento para o plano de manejo e a avaliação técnica de seu passivo fundiário.
O resultado foi uma proposta que tirava de suas bordas cerca de mil hectares “irremediavelmente comprometidos” e encaminhava aos deputados estaduais uma proposta de regularização defintiva. Nada a ver com o projeto que tramita a toque de caixa na Assmbléia Legislativa. Esse correu por fora, tangido por políticos e proprietários, via gabinete do governador.
Ele propõe, sem tirar nem pôr, o desmonte do parque, dissolvendo-o no Mosaico de Unidades de Conservação na Serra do Tabuleiro e no Maciambu. Muda-o de categoria, rebaixano-o a Áreas de Proteção Ambiental – e as APAs, como se sabe, são o regime mais frouxo previsto pelas leis ambientais. Cabem até favelas, fábricas e eucaliptais nessas áreas. Enfim, entraga-o aos cuidados das prefeituras que tradicionalmente lhe são hostis.
Em outras palavras, o projeto é para acabar com o parque, mesmo. Isso numa hora em que o governador se queixa da “tragédia ambiental” que se abateu sobre Santa Catarina. Se pelo menos ele usasse “tragédia ambiental” para fazer uma autocrítica.
(Por Marcos Sá Corrêa, OEco, 15/12/2008)