Grupos que passaram a viver no interior da Raposa/Serra do Sol, longe de fazendeiros, se dizem felizes com isolamento étnicoSegundo comunidades, a vida "melhorou quase 100%" após início da debandada de produtores no início de 98, com demarcação da reserva
No interior dos 1,7 milhão de hectares da terra indígena Raposa/Serra do Sol (RR), onde o STF (Supremo Tribunal Federal) deve decidir no ano que vem pela retirada da população não-índia, índios macuxis que já passaram a viver em isolamento aprovam a experiência.
A polêmica sobre a retirada dos não-índios se concentra na Vila Surumu, onde estão as propriedades de rizicultores como Paulo César Quartiero. Mas em quase todo o resto da Raposa/Serra do Sol o "homem branco" já foi embora -debandada que começou com a demarcação da terra, em 1998 .
E, nas comunidades por onde a Folha passou, algumas a cerca de 200 km de estradas de terras de Pacaraima (RR), aqueles que os índios chamam de "invasores" não deixaram boas lembranças.
Mesmo morando nos casebres que sobraram dos antigos fazendeiros, com suas vias de acesso em péssimo estado e apenas com o atendimento mais básico de saúde, todos os índios entrevistados (sem a mediação de líderes envolvidos na disputa) se disseram felizes com o isolamento étnico.
Eles vivem da mandioca e do milho que plantam, do gado que criam -já são cerca de 40 mil cabeças, segundo a Funai- e do diamante e do ouro que conseguem garimpar ilegalmente (leia texto nesta página).
Segundo disseram, só vendem o boi para fora quando precisam pagar dívidas.
"Ah, melhorou quase 100%", disse Danilo de Souza, 38, morador da Vila Socó, na região próxima à fronteira com a Guiana. "Antes, eles [os não-índios] não deixavam a gente ter nossa roça, batiam na gente. Foram passando cercas, tirando a gente da nossa terra."
Marcado a ferro
Outras pessoas também relataram agressões na época da presença de não-índios. De acordo com um agente da Funai na região, há até um homem ainda vivo que, antes da demarcação, foi marcado a ferro por um proprietário rural.
Segundo Souza, os índios eram empregados pelos fazendeiros. Mas recebiam muito pouco ou eram pagos com cachaça, popularizada pelas dezenas de garimpeiros que atuavam ali na década de 1980. "Trabalhei dois anos para eles e ganhei só um bezerrinho."
O processo de saída do "homem branco", afirmou Souza, só foi possível quando os índios da vila criaram um grupo apelidado de "Vai ou Racha", com apoio de missionários católicos que atuam na reserva.
Eles impediram os índios de beber e forçaram os fazendeiros a aceitar suas criações e lavouras. Até hoje o álcool está banido da comunidade.
Arco e flechaEm direção ao norte, encontram-se índios com pouco contato com outras culturas, que falam suas línguas originais e ainda caçam e pescam com arco e flecha, algo impensável quando se vê os moradores da Surumu, onde muitos usam celular, tocadores de MP3 e roupas de marca -falsificadas.
"Comecei a aprender a atirar flecha há 11 anos", afirmou Maique José, 28, da comunidade Caxirimã, enquanto manejava seu arco. Quando adolescente, ele chegou a trabalhar em fazenda, só para aprender a criar gado sozinho.
Mas a retomada das tradições produtivas indígenas, que incluem o trabalho e o consumo coletivo, ainda sofre alguma resistência dentro das comunidades. "Tem pessoa que fica com frescura, não quer participar", disse Nunes da Silva, 24, também morador da Vila Socó.
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Folha de São Paulo, 14/12/2008)