É comum que se peça, em discursos e reivindicações em geral, que a universidade – em especial a pública – se aproxime mais da sociedade. De nada adianta a produção do saber se este não for transformado em utilidade pública; e de nada adianta o recurso que cada cidadão, por meio de impostos, passa a uma universidade se esta não demonstra os resultados práticos de suas realizações.
A USP mantém uma série de atividades de extensão – o nome que se dá, justamente, a esse retorno à sociedade. Cursos livres, projetos de saúde, atividades esportivas, museus e tantas outras. Uma das mais tangíveis atividades desse sentido, desenvolvida por pesquisadores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), acaba de receber um prêmio de US$ 100 mil, por conta de sua relevância, tanto para os estudantes envolvidos como, principalmente, aos seus beneficiários diretos.
O prêmio em questão é o Deutsche Bank Urban Age Award São Paulo 2008. E o trabalho do qual se fala é um projeto para revitalização do cortiço da Rua Sólon – agora devidamente renomeado para Edifício União, localizado na região central de São Paulo – coordenado pela professora Maria Ruth Amaral de Sampaio.
Início
Embora professora de uma faculdade que ensina arquitetura e urbanismo, Maria Ruth é socióloga. Seu trabalho na FAU foca questões como habitação popular, favelas, e temas correlatos. Ela havia realizado uma série de pesquisas em comunidades com esse perfil – mas ainda não em cortiços, que ela própria aponta como sendo “a forma mais antiga das populações de baixa renda morarem no centro de São Paulo”.
A vontade de atuar nesse campo tornou-se real quando Maria Ruth notou o edifício da Rua Sólon. Não que notá-lo fosse algo restrito aos observadores mais atentos – com oito andares e tudo o que se espera de um cortiço, o prédio era tudo, menos discreto. Levou então a idéia para a FAU, não sem antes conversar com as lideranças dos moradores do local, e aí se iniciava o trabalho, que no início envolvia alunos do terceiro ano da graduação em arquitetura. O ano era 2002.
Demolição do telhadoO que se viu a partir dali foi o nascimento de uma forte relação entre os moradores do prédio – cerca de 70, no início do projeto – e a USP. Que se estabeleceu com a presença de estudantes e professores que percorriam toda a extensão do edifício para realizar um diagnóstico preciso de seus problemas e, principalmente, apontar soluções. A ponto de, em uma determinada época, os alunos chegarem a passar mais de 10 horas dentro do edifício, desenhando e projetando lá mesmo as iniciativas que tencionavam colocar em prática.
O problema mais chamativo, inicialmente, dizia respeito à rede elétrica. Toda a luz do edifício era obtida por meio de ligações irregulares, os populares ‘gatos’. Mais do que representarem um roubo de energia, essas ligações são verdadeiras bombas-relógio, prontas para serem detonadas e colocarem em risco a vida de quem estiver perto. O que se acentua no caso do União. Outras necessidades como rede de água, gás, e até mesmo a demolição de trechos do edifício entraram em pauta, e foram devidamente abordadas por pesquisadores e moradores.
Fachada restauradaUma reivindicação que acabou por se tornar primordial para os moradores foi o redesenho da fachada do edifício. Se à primeira vista soa uma medida puramente estética, Maria Ruth acrescenta que ela representa também outros anseios dos moradores: “eles acompanhavam o fortalecimento do bairro e se sentiam excluídos. A reforma da fachada deu uma nova cara ao prédio e aumentou sensivelmente a auto-estima dos moradores. Eles passaram a se sentir ‘notados’, palavra usada por um deles”, explica a professora. O processo de reforma da fachada foi concluído no final de 2006.
O resultado de todo esse trabalho, como não poderia deixar de ser, foi o fortalecimento dos laços entre os moradores. De lá para cá o número de habitantes se reduziu – hoje, são cerca de 40 – mas indiscutivelmente trata-se de um contingente mais forte, mais unido. Não à toa que o novo nome do prédio é Edifício União, aliás. Com o apoio de entidades de direitos humanos, os moradores entraram com um pedido de usucapião coletivo, que tramita na justiça.
Conseqüências
Pode-se dizer que os moradores são os principais beneficiários do projeto, mas não os únicos. Os estudantes que lá pesquisaram tiveram ali um perfeito ‘laboratório’ para verem ações sendo colocadas em práticas. Os frutos se colhem: um estudo derivado do projeto maior foi o vencedor, anos atrás, do Prêmio Caixa-IAB, um dos principais do ramo da arquitetura no Brasil.
E agora veio a condecoração dos US$ 100 mil, decorrentes do Deutsche Bank Urban Age Award São Paulo 2008. Que serão aplicados em iniciativas no próprio edifício – a consolidação da rede de água e esgoto e a reforma das outras três fachadas são prioridades.
Para a professora Maria Ruth, fica além de tudo como ensinamento o exemplo de que a revitalização de edifícios pode ser feita sem sua demolição e também sem a retirada de moradores. “Não se usa em nenhum lugar do mundo a demolição de prédios não condenados, e tem gente que ainda insiste nisso. O que nós mostramos é um caminho novo para a revitalização, muito mais sustentável e essencialmente disciplinar”, conclui.
(Por Olavo Soares,
Agência USP, 11/12/2008)