Mas pedido de vista adia decisão do julgamento, que só deve ser sair em 2009Ministros indicam condições aos índios, que poderiam fazer uso da terra, mas sem poder de vetar a instalação de bases militares na área
A maioria dos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) votou ontem pela manutenção da demarcação contínua da reserva indígena Raposa/Serra do Sol, em Roraima, e pela retirada dos produtores de arroz que ocupam a área.
Mas em 7 dos 8 votos que seguiram essa linha foram incluídas 18 condições sobre as quais a própria Funai (Fundação Nacional do Índio) afirmou ainda não ter idéia do impacto que isso pode representar nas áreas indígenas do país. O órgão disse que buscará um entendimento jurídico, pois as regras que foram sugeridas ontem deverão servir como parâmetro para as demarcações em curso no país.
A desocupação da reserva somente deverá ser oficializada no início de 2009, por conta de um pedido de vista do ministro Marco Aurélio Mello. Ele disse estar preocupado com a informação que leu em reportagem da Folha de ontem de que o resultado do julgamento poderia ameaçar 227 áreas indígenas que ainda estão sob análise.
Oito dos 11 ministros votaram ontem, sendo que 6 deles o fizeram mesmo após o pedido de vista de Marco Aurélio. Todos os que votaram decidiram seguir o relator, ministro Carlos Ayres Britto, mas indicaram algumas "condições", sugeridas por Carlos Alberto Direito. Ele foi o primeiro a pedir vista, em agosto deste ano.
Entre as ressalvas está a limitação da entrada de índios em reserva ambiental no interior da terra indígena, que deverá se adequar a regras estabelecidas pelo Instituto Chico Mendes, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente.
Os ministros também afirmaram que o usufruto da terra pelos índios não abrange os seguintes pontos: a exploração de recursos hídricos e potenciais energéticos -"que dependerá sempre da autorização do Congresso"- e a garimpagem.
Adversário da demarcação contínua, o governador de Roraima, José de Anchieta Júnior (PSDB), disse que as condições propostas pelos ministros são um avanço, pois abrem a possibilidade de o Estado investir em projetos na área com autorização do Congresso.
O uso da terra pelos índios também fica condicionado ao "interesse da Política de Defesa Nacional". "A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa, Conselho de Defesa Nacional) serão implementados independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai", afirmou Direito.
Ele também deixou claro que a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área fica garantida independentemente de consulta aos índios.
O voto de Direito foi acompanhado por Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Cezar Peluso e Ellen Gracie. O próprio Ayres Britto mudou o seu voto e acompanhou as ressalvas explicitadas por Direito. O ministro Joaquim Barbosa, por sua vez, seguiu o voto inicial do relator.
Durante o julgamento, quando grande parte dos ministros já havia se manifestado a favor da manutenção da área contínua, Ayres Britto propôs cassar uma liminar concedida em abril pelo próprio STF, que suspendeu a operação da Polícia Federal de retirada dos arrozeiros da reserva indígena.
Seis ministros acataram a idéia do relator, mas Marco Aurélio novamente pediu vista e acabou se desentendendo com Britto. O relator afirmou que já havia maioria para cassar a decisão e que o pedido de vista do colega não teria efeito.
Marco Aurélio rebateu: "Eu pergunto se o plenário ainda é um colegiado? Seria o caso de cassar o pedido de vista? Vossa excelência chega a esse ponto, a essa teratologia [estudo de monstruosidades]?".
Britto respondeu que não seria certo pedir vista em questão liminar, ao afirmar que a antecipação já era "irreversível". Ele recebeu o apoio do ministro Lewandowski. O presidente Gilmar Mendes, porém, aceitou o pedido de vista de Marco Aurélio Mello e afirmou que a liminar só será derrubada com o pronunciamento final do Supremo. Se a liminar fosse cassada ontem, os arrozeiros deveriam sair agora da região.
Os ministros também afirmaram que a expulsão de não-índios só vale para aqueles que de alguma forma exploram a região ou mantêm conflitos com a população indígena. Ou seja, somente os arrozeiros serão retirados da reserva.
Em tese, os ministros poderão voltar atrás, a depender dos argumentos do voto-vista de Marco Aurélio, que abertamente se opõe à forma contínua de demarcação e faz críticas ao "aculturamento" dos indígenas lá presentes.
Tal hipótese, no entanto, tem pouca probabilidade de se concretizar, já que a maioria dos ministros decidiu não esperar pelo voto do colega e adiantou sua posição. Os únicos que não votaram, além de Marco Aurélio, foram Celso de Mello e Gilmar Mendes, os dois que votariam depois do colega.
Apesar de criar ressalvas, os ministros afirmaram que não existiram vícios legais no processo demarcatório da reserva e defenderam o "usufruto exclusivo" das terras pelos índios. Também rechaçaram os argumentos de que sua localização -fronteira do Brasil com Venezuela e Guiana- colocaria em risco a soberania nacional.
(Por FELIPE SELIGMAN, HUDSON CORRÊA,
Folha de S. Paulo, 11/12/2008)