No próximo dia 10 de dezembro muitos olhos se voltarão para o Supremo Tribunal Federal (STF) para assistir mais um capítulo da saga "Raposa Serra do Sol". Ali, em 27 de agosto, uma página de história já foi escrita. Pela primeira vez a Suprema Corte do País ouviu a defesa do direito humano à diferença pela voz da advogada Joênia wapichana, filha da diversidade etno-cultural do povo brasileiro, encarnação de seu maior patrimônio nacional e dádiva para a família humana. Viu-se quanto o Brasil ganha com sua diversidade, "se encontrando consigo mesmo", nas palavras da Marina Silva.
Em 108 páginas de análise iluminada pelos princípios da Carta Magna de 1988, o Ministro Carlos Ayres Britto deixou clara a inconsistência das teses dos impetrantes, e votou "para assentar a condição indígena da área demarcada como Raposa/Serra do Sol, em sua totalidade". A análise do Ministro não deixou dúvidas quanto à situação de direito. Apesar do contexto mediático poluído pela desinformação, ela limpou o passado.
O que agora falta è traçar o futuro, e isso compete aos índios. "É falso o antagonismo entre a questão indígena e o desenvolvimento": o relator contesta a idéia do caminho único para um moderno processo emancipatório individual e coletivo. A sustentabilidade, que hoje se impõe nos aspectos ecológicos, sócio-culturais e éticos da construção de "nosso futuro comum", ganha com a diversidade dos caminhos, pois nas diferenças de uns podem estar as soluções dos impasses de outros. A diversidade dos pactos sociais de desenvolvimento aumenta a resiliência da sociedade frente às incertezas do futuro, como a crise financeira internacional veio nos lembrar. É isso que o Ministro Britto aponta ao defender o direito do indígena "demonstrar que o seu tradicional habitat é formador de um patrimônio imaterial (…) componente da mais atualizada idéia de desenvolvimento (…) um crescer humanizado", não só "categoria econômica ou material" mas permeado de outros valores.
O que ainda está em aberto, na Raposa Serra do Sol e nos diversos espaços da imensa sócio-bio-diversidade do Brasil, é o direito de escolher o desenvolvimento futuro. Dois grandes modelos se enfrentam: ecologismo popular e desenvolvimentismo predatório.
Na análise do economista ecológico e ecologista político Joan Martinez Alier [1], o ecologismo popular, ou "ecologismo dos pobres", é a chave de leitura de inúmeros conflitos sócio-ambientais, onde populações "pobres", ao defender o acesso a recursos naturais chave para sua sobrevivência, preservam serviços ecológicos de importância vital para todos. Na Raposa Serra do Sol, a luta pela terra contínua "de rio a rio", é o exemplo vivo da dádiva ambiental dos povos Macuxi, Wapichana, Ingarikó, Taurepang e Patamona para o resto da comunidade nacional. Pois a área contínua, entre rios e divisor de águas, é o único modelo que preserve a integridade ecológica e as águas que, desde os montes Roraima e Caburaí, abastecem o Rio Branco para todos os usuários a jusante. Os pescadores do Baixo Rio Branco, mais de 500 km rio abaixo, percebem que hoje, como na época do garimpo, a "água suja pelos agrotóxicos dos arrozais não deixa o peixe subir na piracema".
O senador Augusto Botelho e o governo estadual nos dizem que o povo de Roraima trocaria o valor sócioambiental do etno-desenvolvimento indígena por um prato de arroz apenas mais barato, pago por isenções fiscais até 2018. Lucrando às custas dos cofres públicos e da ilegalidade ambiental, o desenvolvimentismo predatório é cego frente às dádivas ecológicas dos índios para o bem estar da sociedade toda. Para Quartiero, arrozeiro e prefeito de Pacaraima, FUNAI, IBAMA e INCRA, órgãos que buscam fazer o desenvolvimento menos predatório, são o "tridente do diabo". Mas o povo de RR já não renovou seu mandato.
O Brasil de Chico Mendes, um dos primeiros ecologistas populares mundialmente reconhecidos, se orgulha das "reservas extrativistas", prova viva da criatividade de seus povos da floresta na busca sócio-cultural da sustentabilidade. Ao garantir o direito de existência de diversos possíveis caminhos de desenvolvimento, a Constituição preserva o espaço da política, arena na qual legitimamente se confrontam e se constroem os futuros rumos da sociedade. A 20 anos da morte do líder seringueiro, os culpados ainda andam impunes, como desde 2003 os assassinos do Aldo da Silva Mota Macuxi, e mais 20 índios de Roraima, mártires pela "Anná Patá, Anna Yan" (Nossa Terra, Nossa Mãe). Alem da impunidade contra o homem e a natureza, o Brasil não pode enterrar o ideal de Chico Mendes, rasgando a Terra Indígena Raposa Serra do Sol e a Carta Magna. O povo brasileiro perderia a liberdade de criar inéditos caminhos de reconciliação entre os irmãos homens e sua comum terra mãe. Confiamos que os Ministros do STF saberão preservá-la.
Nota:
[1] Martinez Alier, J., O ecologismo dos pobres, São Paulo, Contexto, 2007.
(Por Vicenzo Lauriola *, Adital, 09/12/2008)
* Sócio-economista ecológico, Pesquisador, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA)