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terras indígenas passivos do agronegócio raposa
2008-12-10

Eterna pauta dos movimentos sociais, a questão da terra indígena volta à tona através do filme Terra Vermelha, dirigido pelo cineasta chileno Marco Bechis. Uma co-produção Brasil-Itália que estréia nos cinemas brasileiros no dia 29 de novembro.

Exibido na 32ª Mostra de Cinema de São Paulo, o filme aborda a luta dos índios kaiowas, para reconquistar espaços ocupados pelo agronegócio, além da expansão de usinas de álcool, que, na opinião do roteirista Luis Bolognesi, “é um epicentro do terremoto do apocalipse”.

Além de Bechis e Bolognesi, Caros Amigos conversou com o indigenista e advogado Nereu Schneider, além de integrantes da tribo guarani-kaiowa que participaram das gravações: Ambrósio, Eliane, Alicélia e Ademilson.

Recebidos com entusiasmo no Festival de Veneza, os índios impressionam com sua serenidade e sinceridade ao falar de sua luta. Mesmo após horas de entrevistas (Caros Amigos foi recebida ao final da tarde, após outros veículos), eles ainda tinham paciência para dar sua versão da história e comentar sobre a importância em participar do filme.

Confira a entrevista e depois vá ver o filme!

Felipe Larsen - Como surgiu a idéia de fazer o filme, abordando esse tema?
Marco Bechis
- A questão do outro, que é fundamental em todo o mundo. Todas as civilizações que perderam a curiosidade pelos outros morreram. Estou falando das civilizações antigas. E a questão do outro, na América Latina, é o indígena, e no Brasil, também os negros que vieram da África. Eu sou sul-americano, morei no Chile, na Argentina e no Brasil também. Quando era menino, sempre fiquei pensando quem era essa gente. Eu via nas cidades, nas metrópoles, nos bairros, e qual era a história deles, a história que eles viveram. A escola não falava disso.

Felipe Larsen - Tal como no Brasil, a história manipulada...
Bechis
- Começava em 1500, com Cabral. Eu queria fazer uma coisa nova. Queria encontrar um caminho especial. Fui buscando até que encontrei os kaiowas. A seleção de elenco foi muito simples. Nós fizemos base na cidade de Dourados. Tínhamos dúvidas se fazíamos o filme lá, mais perto dos atores, porque eles falavam “lá é o centro do conflito. Como você vai fazer o filme lá?” Eu falei: “não vou fazer o filme no estado de São Paulo, com atores com cara de indígenas. Isso não interessa, vou fazer outro filme, então. Uma história de aventura. Para fazer o que eu quero fazer, é com eles”. Também pensei em fazer o filme na Argentina, também tem guarani, e não kaiowa. Mas era outro contexto, outra história, e complicava muito. Então, depois de pensar muito, chegamos à conclusão de que era possível em Dourados. Lá decidimos fazer um estudo de logística. Eu não queria que os atores desarraigados de suas casas por todo o tempo do filme. Eu queria que eles voltassem para casa... Então a seleção foi feita com base em critérios subjetivos, naturalmente, mas também em função da vontade deles de fazer o filme. A vontade deles era em alguns mais forte que outros.

Ambrósio - Porque isso é uma arma. Sempre repito para vários jornalistas. Hoje está havendo índio no filme, no cinema. É uma arma que nós não sabemos usar, então pedimos ajuda. Podemos usar as nossas armas. Sempre temos armas. E todo mundo tá ficando de cabeça erguida. Aqui no Brasil, a admiração deles, a primeira coisa que eles me perguntam, por que a gente sai daqui, lá para o outro lado do rio. Eu falei “Do outro lado do rio tem a pessoa que mostra o pau e a cobra. Que serpente que matou, que serpente que é. E o pau também, que pau que é, se é cabo de vassoura” Então, onde é que tá a arma? Nós usamos, tiramos debaixo do tapete, botamos em cima da mesa o que está claro hoje. Não sei se eu respondi, mas...Só isso.

Felipe Larsen - Agora, a questão dos fazendeiros, que em meio ao set de filmagem ficavam ali, meio ressabiados. Em nenhum momento passou pela cabeça de vocês que não seria uma boa idéia participar do filme? Em algum momento vocês tiveram receio em participar por causa do ambiente?
Ambrósio
- É o que eu retorno a dizer. Eu to colocando uma touca na cabeça do fazendeiro agora. Vai aprender por ali. Porque não sou eu, não é o Marco, não é o Luis, e isso que nós estamos chegando aqui nesse momento, essas ferramentas estão na mão, mas essas ferramentas que ele tem que enxergar. O fazendeiro vai fazer porque é muito ignorante. Você sabe que hora de morte ninguém vê, ninguém avisa. Quando é morte é morte. Mas pelo contrário ele tem que entender. Ele não é daquelas pessoas burocráticas? É claro que ele tem que entender. Porque se ele for fazer aquilo... Índio, pra dizer que ele tem medo, se o índio tivesse medo vivia na cidade... Porque o índio no mato, ele entra na noite, passa que nem bicho, sem medo nenhum e atravessa pro outro lado. Você sabe que tem bicho no mato. E nem você mexe, nem o bicho. Agora vai ter medo de um ser humano por ser humano? Se fosse dos ancestrais, mas hoje?!

Fernando Lavieri - Ambrósio, comenta aquela cena da terra.
Ambrósio
- É porque o branco fala coisas de setenta anos atrás. E o índio é da terra, a terra é do índio. A terra é um alimento. Porque o índio, quando vai dormir, não escolhe lugar nenhum. Agora veja um doutor: pega um barro no sapato, ele vai tirar o sapato, manda lavar e anda descalço dentro da casa. Então quer dizer que ele não gosta da terra. Como é que ele vai dizer que a terra é dele? Eu falo minha terra porque é como é. Essa é minha terra. Agora um empresário, tem milhões de terras. Ele tá vivendo no que é dos outros. Tá usando o que é prato do índio, e vivendo na sombra do índio, porque é o índio que tem a riqueza. Minérios, rio, floresta, tudo. E ainda o índio é discriminado. Esse é o problema.

Sobre a questão da aculturação dos índios na atualidade Bechis corta logo a idéia comum que passa pela nossa cabeça

Bechis - Se o branco muda seus costumes, isso não implica uma modificação da própria identidade. Ficamos sendo brancos de São Paulo. Agora, se o índio modifica algum de seus hábitos, a primeira coisa que nós dizemos é dizer que ele está perdendo a sua cultura. Eu acho isso errado. Eu fiz esse filme com eles porque eu os conheci e entendi que eles eram os índios que estavam precisando fazer esse filme. São índios verdadeiros, mesmo que não se vistam com as plumas. É o nosso imaginário National Geographic que nos leva a imaginá-los com plumas. Além disso, tem a questão antropológica. Na nossa cabeça, a evolução é só nossa. A única evolução que nós somos capazes de compreender é a evolução técnica. A nossa evolução é passar do cavalo ao carro, do carro ao avião, do avião ao edifício, e agora a bomba atômica e blábláblá. Mas tem outra evolução: do pensamento, das maneiras. Como imaginar uma comunidade indígena que nunca teve contato com brancos, e passou mil anos em total isolamento, e sai da floresta com arco e flecha, não são os mesmo de mil anos atrás. Ninguém pode dizer que isso é a mesma coisa. Então estamos errando nosso juízo sobre eles. Então a aculturação, que é uma termologia que eu contesto, é uma terminologia ambígua, acho que seria mais interessante buscar uma nova definição da identidade indígena hoje no Brasil, mas também na literatura. E acho que o indígena tem todo o direito de se sentir indígena, de manter sua identidade, mesmo utilizando as brincadeiras dos brancos, o celular, o carro, a motocicleta. Ele não vai deixar de ser índio. Por exemplo, as cabanas, mesmo com materiais que são diferentes dos originais, têm a mesma estrutura de sempre. Você vê que tem um momento em que cortam uma madeira e faz a forma da casinha. Ou seja, é uma estrutura cultural que se mantém. A casa, a reza. Quando falamos com eles sobre nhanderú, eles falaram “não, há rezas que não podemos falar”. E então, qual a solução? Vamos inventar rezas. Vamos fazer rezas diferentes que não são aquelas. Então tudo isso está repetindo a todo tempo. Eles têm os seus instrumentos culturais, a sua visão de mundo, além da aparência que pode ser mais ou menos moderna.

E completa explicando sua relação com a Funai na produção do filme

Bechis - Eu não queria entrar, fazer um filme em uma área indígena, justamente para não ter que lidar com a burocracia da Funai. A Funai naturalmente foi informada, e também ajudou de algum jeito com logística, carros, mas não tivemos uma relação de dependência.

Nereu Schneider - Desde o início a Funai é sabedora do projeto, assim como os kaiowas, que foram os primeiros, porque é com eles que foi feita a história. No momento que eles falaram “nós queremos fazer isso”, como ele mesmo diz, uma arma, aí a gente também foi nos órgãos do governo que ajudaram nesse sentido. Mas não é uma visão “só se faz se o governo permitir”. Mas teve intensa parceria, não só com a Funai, mas a prefeitura de Dourados. Não foi feito às escondidas. Nem dos fazendeiros da região. Ninguém fez nada por debaixo do pano. Sobretudo com eles (os índios).

Fernando Lavieri - Dá pra projetar algum tipo de mudança na vida dos índios?
Ambrósio
- Para os kaiowas, hoje pode ajudar, mas muitos caminhos podem ajudar. O que? Os jovens, as empresas também têm que ter respeito por esse lado. Levam para trabalhar os meninos indígenas para o canavial, que voltam sem nada. A parte da justiça também vai ter que respeitar. Não pegar mais a s crianças indígenas, e abandonar pra lá. Você sabe que isso acontece muito no Mato Grosso do Sul. Devolve as crianças pra o pai, pra mãe, pra isso tem a Funai, tem o cacique. Vai ter que devolver tudo que foi levado. E aprender a deixar a porta aberta, pra qualquer um de nós que chegar poder entrar. Então esse cinema representa o que pode ajudar nesse direito, e a justiça também. Porque eu sempre falo: o pobre, sempre anda embaixo da mesa. E hoje essa mesa...Ou racha, ou queima ou joga. Essa é a ajuda do filme que eu to vendo. Os guaranis-kaiowas, eles tratam do jeito que querem. E aí vai parar no que? Vai parar no suicídio. E tem muita discussão da parte da justiça. Eu estive em Caiapó por causa do meu filho, sabe? Cheguei falei diretamente para o juiz. Um dia, não sei quando, eu vou procurar de onde o juiz traz essa burocracia. Se tratar a gente aqui atrás, aí nós vamos descobrir mais ainda. A justiça enxerga só o do outro, mas o deles ela não ta vendo. Eu acredito em mim, porque onde eu vou, eu passo. Não vou e volto pela porta da cozinha, não. Entro pela porta da frente e saio pela porta da frente. Eu sempre tive esse sonho, e eu espero que se dê essa oportunidade para as famílias indígenas.   

Felipe Larsen - O que vocês acham da Funai?
Ambrósio
- Eu tenho certeza que ela ta esperando um bom resultado, é uma arma que vai estar na mão também. Com certeza vão saber usar muito bem, para as famílias.

Felipe Larsen - E dentro dos guaranis-kaiowas, como vocês lidam com a questão do fazendeiro chegar chamando os índios para trabalhar nas usinas?
Ambrósio
- Dez, vinte por cento é puxa saco dos fazendeiros de lá. Dentro das aldeias, enquanto trabalham na usina, fica mulher sem mercadoria, criança sem assistência. Quando volta de lá pra cá, pergunta se o marido tem alguns reais pra comprar alguma coisa. Tem pra comprar pra uns, mas pra outros não tem. E isso, essa matança, é boa pra eles. Então, não é que ele entra lá e contrata. Ele põe um funcionário lá, pra contratar os parentes, e tirar de lá pouco a pouco.

Felipe Larsen - Tá um pouco cedo, o que vocês acham da repercussão na imprensa?
Bolognes
i - Olha, a repercussão que teve na Europa foi muito forte. O filme foi destacado com um dos melhores do festival de Veneza, e saiu nos jornais do mundo inteiro. Saiu no Japão, Estados Unidos, Inglaterra, Espanha. Matérias sobre o filme, e das que eu li, todas positivas. E no Brasil tá começando agora, na mostra, que vai ter o lançamento, vi só Estadão e Folha, numa cobertura bastante interessante. O importante é a gente conseguir fazer a cobertura sair do caderno de cultura para que ela figure no caderno de política. Porque é a hora da onça beber água. O STF vai ter que se manifestar nos próximos seis, oito meses, no caso da Raposa Serra do Sol, e dos pataxós da Bahia. São decisões que quase criam jurisprudência. O que nada mais é do que respeitar a constituição, porque a constituição no Brasil já decidiu isso. A questão das terras indígenas já foi discutida em 88. A Assembléia Constituinte, instância máxima da lei no Brasil, do estado de direito, já se reuniu e disse que a terra é deles e que nada pode ser feito sem o consentimento deles. Então esse negócio que aconteceu agora, que os índios quebraram o pátio de uma usina hidrelétrica e jogaram fogo nos caminhões, que alguns jornais deram como um bando de arruaceiros...Dentro da terra indígena, o estado de direito diz que eles têm razão. Começaram a construir um pátio sem o consentimento deles, isso é ilegal! Se a lei está do lado deles, por que não se cumpre a lei? Eles têm que ir lá e tocar fogo no caminhão pra exigir isso. Então, nesse momento histórico que a gente ta vivendo, 500 anos de história estão nas mãos do STF. O primeiro relator do caso Raposa Serra do Sol, o primeiro juiz que leu todos os autos, foi favorável aos índios. O que ele disse deixou todo mundo – o capital, os fazendeiros, todo mundo ali na hora “que é isso? Chega no STF, que é o lugar da gente liquidar a fatura, vem aqui um juiz e diz ‘estamos aqui para fazer valer a lei. A constituição é clara’. Isso aqui é uma terra indígena, não se discute. Todos os autos comprovam que é uma terra indígena”. Então se trata de uma invasão. Quando ele falou isso, o outro falou “quero rever os autos, pára o julgamento”. Que decisão os caras do STF vão ter diante dessa questão? A lei é clara! Agora, na hora que ele dá isso, a tensão surge. É quase uma coisa inédita, você ter uma instância da justiça fazendo valer a lei a favor dos indígenas. Então a gente está num momento muito importante. Vê o lado deles. Porque a antropóloga que fez um debate com a gente outro dia, ela falou uma coisa. Num debate de um canal rural, ela estava num programa que podia fazer perguntas por telefone e veio a seguinte pergunta: mas índio é gente? Ela ficou em estado choque com a pergunta. Então o filme ainda tem a importância de colocar não só a questão política, mas de você conhecer a condição que eles vivem, as dificuldades. Humanizar. Porque não é só a elite. A própria classe média baixa é muito preconceituosa. É um contato que precisa reverter essa imagem desse preconceito muito grande que se construiu no Brasil.

Felipe Larsen - Você falou desse preconceito meio generalizado até mesmo na classe média. No exterior, como o pessoal vê essa questão da América Latina?
Bolognesi
- São super solidários, majoritariamente. Pra eles é fácil, porque nós aqui no Brasil estamos diretamente ligados. Dar terra significa botar eles ali. Para os europeus é uma coisa super distante, e é evidente que qualquer pessoa que olha a coisa de longe, é evidente que a terra é dos índios. A pressão de lá de fora é totalmente a favor das terras indígenas, e isso gera pressão ao governo brasileiro, tratando dessa maneira, expõe. Que país é esse? Mas eles têm aliados muito forte lá fora, uma série de entidades, só que estão longe, né? No dia a dia...

Felipe Larsen - Eu acho que já deu tempo dos fazendeiros ficarem sabendo que foi rodado um filme. Falando o português claro, já teve alguma encheção de saco?
Schneider
- Por um lado sim. “Mais um filme, mais gente falando”. Mas o que eu percebo também é que o filme repercutiu bem, indo ao festival de Veneza, e até na região lá também. No começo “um filme sobre índios do Brasil”. Depois, kaiowas. Opa! Um filme sobre índios de Dourados. Então você percebe que é uma reação na minha maneira de ver. Então eles estão vendo que ta vindo uma onda aí. Antes você tinha perguntado se os índios tiveram medo. Mas acho que não, quem teve mais medo foi o outro lado.

Felipe Larsen - Dá um freio nos fazendeiros?
Schneider -
Eu acredito que sim. O filme é importante pra mostrar o drama que tá aí. O que eu vejo é que não é todo dia que se faz um filme, longa metragem, e eles são os protagonistas. O filme mostra o drama de uma relação.

Participaram da entrevista diversos jornalistas, inclusive Lucas Bueno (Fotografia) da Caros Amigos.

(Por Felipe Larsen e Fernando Lavieri, Caros Amigos, 09/12/2008)


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