A criaturinha é preta, não cresce mais do que sete milímetros, tem forma cilíndrica e um nome científico que lhe cai muito bem: Dendroctonus (matador de árvores) ponderosae. Conhecido como besouro do pinheiro, já aniquilou um milhão e 200 mil hectares de florestas de coníferas no oeste dos Estados Unidos. O Serviço Florestal americano estima que, só no estado do Colorado, o inseto destruirá outros 5 milhões de hectares de matas nativas nos próximos anos. Os números são espantosos, mas não chegam nem perto das estatísticas apocalípticas que o bichinho produziu no Canadá.
Na Colúmbia Britânica, província mais oriental daquele país, ele se espalhou por 13,5 milhões de hectares, matou 600 milhões de metros cúbicos em volume de árvores e, de acordo com projeções do governo local, devastará pelo menos outros 400 milhões de metros cúbicos até 2020. Só aí, pela absoluta falta de pinheiros para destruir, a praga finalmente estará controlada. Mas, por enquanto, segue fazendo estragos. “E chegando onde nunca tinha estado antes”, conta Doug Konkin, vice-ministro de Florestas da província, que passou pelo Brasil há três semanas.
Um desses lugares é a província vizinha de Alberta e o estado americano de Montana, no centro do continente. Ele aportou por lá no ano passado, depois de pular, com uma mãozinha dos ventos, uma barreira até então considerada instransponível: as Montanhas Rochosas. Sua chegada em lugares onde nunca tinha estado deixa os serviços florestais do Canadá e dos Estados Unidos com os nervos à flor da pele diante da possibilidade de que os insetos sigam consumindo pinheiros até esbarrarem no Oceano Atlântico. O besouro se transformou em desastre ambiental em meados da década de 1990.
Antes disso, não passava de um incômodo comum aos ciclos naturais das florestas do oeste norte-americano e para os milhares de turistas que as visitam no Verão. O besouro aparecia sempre nessa época e penetrava na casca dos pinheiros, escavando canais na membrana que recobre o miolo dos troncos para depositar seus ovos. Uma queda súbita dos termômetros no outono, abaixo de -25º centígrados, ou dias seguidos de frio intenso no Inverno, em torno de -40º, bastava para congelar a maior parte dos futuros besouros até a morte. Na primavera, os ovos sobreviventes viravam larvas que dividiam com as árvores os nutrientes que ambos consomem para crescer.
No verão, besouros maduros saiam voando para se acasalar, deixando para trás um ou outro pinheiro morto. Em 1997, os Dentroctonus repetiram esse ritual nas coníferas Parque Provincial de Tweedsmuir, ao norte de Vancouver. Mas o frio habitual não veio – nem no outono e nem no inverno. Na primavera, em abril do ano seguinte, nasceu uma quantidade nunca vista de larvas, que algumas semanas depois, já besouros adultos, bateram asas em busca de parceiros para reproduzir deixando para trás uma grande quantidade de árvores mortas. “O frio era fundamental para manter sob controle a população do besouro”, conta Konkin. Ao contrário dos insetos, desde então o frio não voltou.
Ironias da infestação
Na Colúmbia Britânica, as temperaturas médias subiram entre 1º e 1, 7º Celsius nos últimos dez anos e a precipitação de chuva e neve caiu. Nessas condições, o número de insetos explodiu. Estima-se que há em média 10 bilhões deles consumindo as árvores da província. A oscilação para cima dos termômetros não demorou muito a ser associada pelos técnicos às mudanças climáticas. Os governos provincial e federal, no entanto, se recusavam a reconhecer o problema oficialmente. “Estávamos proibidos de dizer isso”, conta Konkin.
A postura era reconhecer a infestação, mas considerá-la passageira. Há cinco anos, com os invernos continuando quentes e a incidência dos besouros aumentando, a política foi abandonada. “Tem uma hora que não dá mais para ir contra os fatos”, diz. O problema é que essa atitude impediu que medidas para mitigar a infestação fossem adotadas mais cedo. À subida gradual da temperatura em zonas de altitude e nas latitudes mais ao Norte e a negação dos políticos de que a situação podia ser mais grave, juntaram-se outros fatores que também ajudaram no processo de transformação do inseto em praga.
Ironicamente, boa parte deles é resultado da aplicação de políticas de conservação nos últimos 50 anos nas florestas locais, como o controle de incêndios. “Nós ficamos muito eficientes no combate ao fogo”, lembra Konkin. Tão eficientes que as chamas provocadas por eventos naturais deixaram de ter papel relevante na renovação desses ecossistemas florestais. Na época em que os termômetros desabavam no inverno, isso era um mérito. Quando a situação mudou, virou um problema.
A supressão de incêndios deixou os ecossistemas do oeste norte-americano homogêneos, com predominância de coníferas entre 80 e 90 anos, a idade perfeita para uma árvore virar vítima dos besouros. “Eles adoram os pinheiros maduros. Não conseguem entrar nos troncos das árvores jovens, com menos de 15 centímetros de diâmetro”, explica Konkin. Diante da primeira infestação no Tweedsmuir, os técnicos recomendaram o abate em massa de árvores no local. “Mas as florestas têm um apelo político enorme na província e o governo proibiu os cortes”, recorda.
Nos dois anos seguintes, a infestação se espalhou com tamanha rapidez que a única opção para combatê-la era incendiar vastas áreas de floresta. O governo até topou. “Ao contrário do corte, a população é mais tolerante à idéia do fogo, porque ele lhe parece natural”, diz Konkin. Mas o clima não ajudou. “Ou chovia demais, impedindo o uso do fogo, ou ficava seco demais, o que trazia o risco das chamas fugirem do controle”. Ele conta que, de todo modo, conseguiram queimar algumas áreas e, pelo menos nelas, a população do besouro recuou.
Tiros pela culatra
“Fiquei com a impressão de que iríamos derrotar o inseto”, comentou Konkin. Ledo engano. Em 2002, a área de árvores infectadas já era extensa demais para domar o besouro com fogo. Aventou-se então a heresia de defender os pinheiros com inseticida. A opção, no entanto, não era muito prática. E era cara. Para funcionar, o veneno não podia ser aspergido do alto, com o auxílio de aviões. Tinha que ser aplicado individualmente, começando por baixo, na base do tronco e indo até a copa da árvore. A alternativa que sobrou foi aumentar o volume anual de derrubada de árvores.
Novamente, a política falou mais alto. A população ficou contra e o governo não quis se arriscar a enfrentar sua ira nas urnas. Coube às árvores a tarefa de lutar sozinhas contra os insetos. Mas nas condições de invernos brandos e excesso de besouros no ar, suas defesas naturais viraram tiros pela culatra. Ao se sentirem ameaçados pelas armas da conífera – sua seiva para afogar larvas e sua resina para encapsular os besouros e impedir sua reprodução – os inimigos reagiram com uma força incomum. Ameaçados pela resina, os besouros liberam um feromônio que atrai mais companheiros para atacar os pinheiros.
O pedido de ajuda trazia hordas de insetos, numerosas demais para uma árvore solitária suportar. Sua tentativa de matá-los, na verdade, só fazia crescer a infestação. A outra linha de defesa disparada contra as larvas, na primavera, padecia do mesmo problema. Ante a ameaça do afogamento, elas produzem um fungo para ressecar o tronco, que deixa seu miolo com uma cor azulada. Para uma árvore severamente infectada, isso significava ter que enfrentar uma superprodução de fungos, o que basicamente destruía sua capacidade de resistência e acelerava sua morte.
A devastação trazida pelos besouros mudou as cores das florestas no oeste norte-americano. O verde predominante foi substituído por um vermelho-ferrugem, o sinal externo de que os pinheiros morreram. A mudança demora um ano para acontecer. A partir daí, os galhos começam a perder as agulhas, os troncos racham, adquirem uma cor acinzentada e ficam suscetíveis a tombar diante de qualquer vento mais forte. O ataque dos besouros, no entanto, têm conseqüências que vão muito além da morte das árvores.
Mudando as florestas de lugar
A infestação alterou radicalmente a natureza da região. Sem os pinheiros para mantê-los em seus cursos, rios e riachos da Colúmbia Britânica ficaram vulneráveis às enxurradas. A freqüência de trombas-d’água está devastando ecossistemas fluviais importantes para a reprodução de castores e de salmões. A queda em massa de árvores deixou também vastas extensões de terra sem a devida cobertura vegetal para segurar a água das chuvas no solo. “A seca aumentou e o acúmulo de material combustível fêz crescer a intensidade dos incêndios florestais”, conta Konkin.
“Hoje, a maioria deles é de classe cinco, a mais violenta. Se você não conseguir chegar aos focos em dez minutos, fogem totalmente do controle”, afirma ele. A gravidade da situação é tamanha que as derrubadas, tão rejeitadas por políticos e população, terão que ser ampliadas. Não necessariamente para matar os besouros, mas para controlar a virulência do fogo. “Hoje cortamos 70 milhões de metros cúbicos por ano. É provável que isso seja ampliado para 90 milhões de metros cúbicos”, diz. Para aplacar o público, Konkin conta que os técnicos estudam maneiras de fazer com que a paisagem das áreas que sofrerão cortes fique mais heterogênea, com uma ou outra árvore de pé, semelhante ao visual de zonas que passaram por incêndios. “O fogo é politicamente mais palatável que a motosserra”, justifica.
Com um ar meio resignado, de quem perdeu uma guerra e agora corre atrás para apenas diminuir o prejuízo, ele deposita suas esperanças de recuperação na própria natureza. Trinta por cento das árvores mortas na Colúmbia Britânica têm mudas jovens crescendo próximas aos seus troncos. Elas são saudáveis e estão produzindo sementes em quantidade adequada. Mas essa regeneração, por si só, não é garantia de regeneração para as florestas. A seca prolongada e o aumento da temperatura significam menos água para assegurar a sobrevivência dos pinheirinhos. “Eles não terão como se ajustar sozinhos a esse novo contexto”, diz Konkin.
Por conta disso, o ministério de Florestas da Colúmbia Britânica está estocando sementes e estudando como plantá-las em latitudes mais frias, ao Norte, para reconstituir suas florestas em condições semelhantes as que existiam na sua área geográfica original. “O grande problema desse plano não é necessariamente fazer a floresta andar, mas quando fazê-lo”, diz Konkin. “Se a mudança acontecer cedo demais, elas correm o risco de morrer pelo excesso de frio. Se for tarde demais, o calor talvez já tenha comprometido as mudas de tal forma que não teremos mais o que mudar”.
(Por Manoel Francisco Brito, OEco, 04/12/2008)