Em meio à destruição e à morte provocadas pela enchente em Santa Catarina relatos de vidas despedaçadas se combinam num painel de afeto dor e solidariedade
Um estrondo interrompe a última conversa de Jussara com a mãe. São 12h20min de domingo, 23 de novembro.
– Oi, mãe, como estão as coisas? – pergunta Jussara, ao celular.
– Estamos bem, filha. Só vamos mudar de casa porque a água está subindo – responde Maria.
– A senhora vai de bateira (pequena embarcação de madeira)? – continua Jussara.
Maria não tem tempo de responder. A ligação é interrompida por um ruído que lembra uma explosão.
– Mãe? Mãe? Mãe? – pergunta Jussara.
Naquele momento, a lama que se desprende do morro, arrastando pedras e troncos de árvores, engole a mãe de Jussara, Maria Marlene Mendonça, 49 anos. Com ela, estão as filhas Débora Mendonça, 26, Franciele Mendonça, 17, os netos Elenai, nove, e Ester, quatro, a sobrinha Géssica Cavalheiro, 14, e o amigo Charles de Lima Ramos, 18. Moradores de Sertão Verde, zona rural de Gaspar, no Vale do Itajaí, eles haviam deixado sua moradia, num ponto mais baixo, e buscado refúgio numa casa de alvenaria, com 63 metros quadrados, no sopé do monte. Temiam a água, sucumbiram ao lodo.
Depois da primeira avalanche, outras duas, também intensas, sepultam as chances de que alguém escape com vida do local. Cerca de 20 casas são destruídas e outras 30 atingidas e condenadas.
O vigilante Paulo Cezar Ribas Figueira, 23 anos, concluiu o curso de bombeiro voluntário na véspera. É o primeiro a prestar socorro às vítimas. Encontra mulheres e crianças aos gritos, prensadas por um muro. De um lado, temor por novos desabamentos. De outro, a possibilidade de afogamentos, com ruas transformadas em rios e águas superando 1m80cm de profundidade.
– Quebramos o muro a golpes de madeira – recorda Figueira, disposto a abrir uma rota de fuga para os desesperados.
Nem todos têm força para ir adiante. Com mulheres e crianças nos ombros, Figueira também clama por socorro:
– Meu Deus, me ajuda!
Até as 13h20min, meia centena de pessoas são retiradas por voluntários do inferno de Sertão Verde.
Na região, acossada pelos humores do Rio Itajaí-Açu, Maria sabia quando residências devem ser desocupadas e quando barcos têm de virar táxis. O drama se repete todos os anos, com intensidade variável. O que os cerca de 2,5 mil moradores desconheciam – até o último fim de semana – eram os riscos oferecidos pelos morros dominados pela Mata Atlântica.
Sem saber, moradores de Gaspar como Maria e seus familiares foram apanhados no miolo de uma tragédia que matou mais de uma centena de pessoas em Santa Catarina, levou à decretação de estado de calamidade em 14 municípios, destruiu pontes e estradas, interrompeu o abastecimento de gás natural até o Rio Grande do Sul e produziu prejuízos sociais e econômicos ainda incalculáveis.
Ao longo das próximas páginas, por meio de histórias como a dos Mendonça, Zero Hora recompõe a teia de dor e desespero que conectou o Brasil à catástrofe catarinense.
Na sexta-feira, a Secretaria Nacional de Defesa Civil do Ministério da Integração Nacional, em Brasília, enviou um de seus alertas regulares aos órgãos congêneres nos Estados. O texto previa chuva forte em 16 dos 26 Estados e no Distrito Federal. Mais ao sul, Santa Catarina encabeçava a lista.
O alerta foi publicado no site do ministério e enviado a secretarias estaduais e meios de comunicação, mas produziu pouco efeito prático. Até a meia-noite de sábado, o Centro de Operações do Sistema de Alerta da Bacia Hidrográfica do Rio Itajaí-Açu (Ceops) continuaria descartando o risco de enchente. Exatas oito horas e oito minutos depois, o rio transbordou.
Quase ao mesmo tempo em que a nota da Defesa Civil aterrissava em computadores Brasil afora, em Blumenau Janete Echeli, 38 anos, insistia com o marido, Luiz Antonio Ferreira, 45, que era hora de ir ao mercado para as compras destinadas ao final de semana de folga. Ferreira concordou, e os dois saíram. Na volta, foram interceptados por vizinhos:
– Nem adianta ir lá. Vocês perderam tudo.
Um desmoronamento havia engolido a casa de dois pisos do casal. Refrigerador, três televisores, dois aparelhos de som, microondas, máquinas de lavar e de secar, tudo estava perdido. Ferreira disse à mulher:
– Não adianta ficar aqui chorando. Vamos para o quartel. Vamos trabalhar.
Ferreira é cabo do Corpo de Bombeiros. Entre ser vítima e prestar socorro, preferiu prestar socorro.
Em Florianópolis, o jornalista Leandro Puchalski, da Central de Meteorologia da RBS, passou a sexta-feira preocupado com uma combinação temível: um longo período de chuva, iniciado em setembro, e a previsão de precipitação pesada no fim de semana. Seu colega Glauco Freitas, em férias na praia, liga para oferecer ajuda:
– Vou voltar e te dar uma mão.
– Espera, vamos ver como será o sábado
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Soledad Yaconi Urrutia de Sousa, 25 anos, não tinha dúvida sobre como seria seu sábado em Florianópolis: aproveitaria o primeiro dia de férias para preparar a reforma do apartamento e uma viagem de visita à família, no Chile, onde nascera. Na véspera, último dia de trabalho, a gerente de Apoio Logístico da Defesa Civil Estadual havia encerrado o expediente apenas à noite. A partir do final da tarde, pequenos deslizamentos e a elevação do nível de rios tinham-na prendido ao serviço. Três municípios haviam decretado emergência na sexta-feira. Com eles, já eram 43 no Estado, vítimas da chuva prolongada.
Ao acordar na manhã de sábado, Soledad encontra oito chamadas no celular. São do diretor da Defesa Civil. Como todos os seus colegas de folga, ela é convocada para fazer frente à enxurrada. No dia em que começariam suas férias, Soledad enfrentará uma jornada de trabalho que terminará apenas 20 horas depois.
Na reunião com a equipe da Defesa Civil, os dados de precipitação da noite são apresentados. As quantidades impressionam. Em Itapoá, apenas da meia-noite às 2h, havia chovido 193 milímetros – mais do que a média para todo o mês.
– Ali tive certeza de que não iria embora tão cedo. Dava para perceber que era um desastre, mas ainda imaginávamos que seria algo como no Carnaval, quando houve uma morte – conta Soledad.
O quadro branco onde são registrados à caneta hidrocor as ocorrências pelo Estado ainda está com poucos rabiscos naquele momento. Mas começa a se encher rapidamente, com informações de alagamentos, deslizamentos, resgates. No meio da tarde, a informação mais temida: é registrada a primeira morte, em Brusque.
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Seguidor da Assembléia de Deus, o vigilante Francisco Mendonça, 49 anos, liga para casa às 3h de sábado. Quer saber como a família se prepara para enfrentar inundações inevitáveis causadas pelo aguaceiro que desaba sobre o Vale do Itajaí. Na residência de madeira e dois pisos, Maria está com duas filhas do casal, dois genros e dois netos. Eles ocupam a parte de cima, distante dois metros e meio do chão. Embaixo, onde moram Débora, os filhos, Elenai e Ester, e o marido, móveis são retirados.
– Estamos todos bem aqui. Mas se continuar subindo a água, vamos ter de sair – diz Maria, que toma café com biscoitos.
Morador de Sertão Verde desde 17 de dezembro de 1997, Francisco permanece tranqüilo. Inundações não afetam o ânimo da família, que vive um dos momentos mais felizes na última década. Após 10 meses, todos têm emprego fixo: as três filhas prestam serviço às fábricas de roupas. Maria supera crises de hipertensão, e um quarto neto, no ventre de Débora, é esperado para junho. O clima é de euforia entre os Mendonça.
– Fiquem com Deus. Ligo mais tarde para ver como as coisas estão. Vamos rezar para que a chuva diminua – diz Francisco, desde um posto de combustível onde trabalha.
Às 13h de sábado, um capitão pergunta ao sargento Dirceu Gonçalves, 44 anos, se é necessário aplicar o plano de chamada. Bombeiro há duas décadas e meia e desde as 8h nas funções de chefe de socorro do quartel em Blumenau, Gonçalves tem 16 militares e mais alguns voluntários de serviço para combater os estragos da chuva. Se acionar o plano, todos os bombeiros do efetivo, mais de 80, serão chamados. O sargento decide que ainda não é necessário:
– Naquele momento, a situação era de chuva forte, alagamentos, quedas de árvore. As guarnições não paravam no quartel, mas não havia chamados pendentes.
Um dos 80 que serão chamados, o líder do governo na Câmara de Blumenau, Marcelo Schrubbe (DEM), passa o sábado obcecado por uma medida: oito metros. Quando o Rio Itajaí-Açu, que corta a cidade, atinge essa altura, a água cobre a Rua 1º de Janeiro e os blumenauenses sabem que estão diante de mais uma enchente.
– A situação não me pareceu assustadora. Chovia forte há tempo, tinham sido registrados deslizamentos – relembra Schrubbe.
Às 16h, em Florianópolis, o governador Luiz Henrique (PMDB) começa uma reunião para discutir a crise. Responsável por divulgar alertas e informações da Defesa Civil, Soledad é uma das presentes. Para ela, o encontro marca o momento em que o quadro aparece em toda a gravidade.
– As informações de situações graves chegavam de todos os municípios o tempo inteiro – conta Soledad.
Ainda assim, a chilena não imaginava que, apenas sete horas e 20 minutos mais tarde, divulgaria um boletim com a contabilidade macabra de três mortos e 3.708 desaparecidos. Seria a maior tragédia da história de Santa Catarina.
À noite, a bordo de um barco que navega pelas ruas de Blumenau, o sargento Gonçalves se dedica a retirar pessoas de telhados de casas já cobertas pela água. Três casas desmoronaram no município. Gonçalves passará dois dias encharcado:
– O desespero das pessoas era impressionante. Tirei 50, 60, 70 pessoas. Mas, em muitas situações, não consegui chegar aos locais, não consegui atender aos pedidos de socorro. Não sei o que aconteceu com essas pessoas.
Às 6h de domingo, Francisco Mendonça liga mais uma vez para casa. Maria o desencoraja a voltar:
– Nem vem porque não tem como chegar. Está tudo alagado e vais te sujar.
Antes de desligar, ela avisa:
– Vamos para a casa do Ezequiel, porque lá não inunda.
Cunhado de Francisco, o talhador Ezequiel Ribas Figueira, 28 anos, é um privilegiado em Sertão Verde. Em meio à intempérie, sua casa torna-se refúgio. Às 7h15min de domingo, Maria, as filhas, os dois netos, e um genro caminham 50 metros, com água pelos joelhos, até o bunker de Ezequiel.
No posto de combustível, distante cerca de um quilômetro, Francisco despede-se dos colegas e sai. À espera de que a água baixe, vai visitar um amigo. Enquanto isso, seu neto, Elenai, nove anos, estudante da 3ª série da Escola Municipal Angélica Costa, e Ester, quatro anos, brincam e cantam músicas evangélicas na sala – num ensaio do que será a terceira geração de evangélicos dos Mendonça, que há 31 anos freqüentam a Assembléia de Deus.
Nem uma fratura no dedão esquerdo, contraída em meio a uma pelada, é capaz de abalar o humor do pequeno torcedor palmeirense. Ester, matriculada em uma escola infantil para o próximo ano letivo, é meio metro de pura alegria.
– Ela passou a manhã repetindo que ia para o colégio como gente grande – recorda Ezequiel.
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No momento em que Maria aconselha o marido a não voltar para casa em Sertão Verde, Soledad sai do banho, veste-se e volta para a Defesa Civil em Florianópolis. Ela pôde fazer o que o vigilante não consegue: voltou para casa às 4h de domingo, embora não tenha conseguido pegar no sono. A situação que, durante todo o dia, emergira dos telefonemas e relatos tinha lhe parecido desesperadora. Em vez de manter a rotina de preparar relatórios e boletins de hora em hora, Soledad atualizara os dados a cada minuto. Os três celulares que maneja não pararam de tocar: veículos de comunicação solicitavam mais informações, cidadãos buscavam orientação.
Ao meio-dia, 45 embarcações novas em folha conhecem a água pela primeira vez em condições desfavoráveis em Itajaí. A inundação no município portuário atingiu a fábrica da Fibrafort, empresa que se orgulha de ser um dos maiores estaleiros do continente. A água subiu um metro e meio dentro da indústria. Barcos recém-construídos foram atirados uns contra os outros, contra as paredes, contra o maquinário.
As instalações continuarão debaixo d’água por 24 horas. Só na segunda-feira os diretores conseguirão entrar – de barco. A empresa seguirá fechada por pelo menos uma semana.
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Enquanto morros do Vale do Itajaí derretem e ruas e avenidas se inundam, os moradores de Sertão Verde permanecem imunes à tragédia. Mesmo com as águas invadindo residências, nada indica a iminência de uma catástrofe.
Em um bairro afastado, Jussara liga pela primeira vez para Maria Mendonça. São 10h24min.
– Como vocês estão, mãe?
– Estamos bem, filha. Só com a roupa do corpo, mas bem – responde.
Embora ilhados, ninguém corre risco no meio da manhã. Bem-humorada, Maria, arredia aos botes incorporados ao cotidiano de Sertão Verde em dias de chuva, brinca:
– Olha o pessoal nas bateiras. Daqui a pouco vai ser nós!
Todos riem. Ezequiel complementa:
– Nossa casa é a mais valorizada porque o mar passa na frente.
Às 11h, Maria aproveita a carne moída existente na geladeira e prepara uma de suas especialidades: macarrão à bolonhesa.
Percebendo o aumento do nível da água nas ruas e com todos já alimentados, a descontração dá lugar à tensão. Um plano alternativo começa a ser gestado para a possibilidade de que as águas inundem o refúgio.
Da casa ao lado, Géssica Cavalheiro, uma adolescente de 14 anos, que sonha em ser modelo, e o namorado dela, o jovem Charles de Lima Ramos, 18 anos, cortador de mato, assistem ao trabalho dos primeiros bombeiros voluntários transportando moradores pelas ruas que se assemelham a riachos. A chuva, equivalente a um mês de precipitações, continua castigando. Em busca de uma vista privilegiada, Géssica e Ramos alcançam a varanda da casa de Ezequiel, somando-se a Maria e aos demais hóspedes.
Nas residências próximas, sem-teto são socorridos. Um intenso fluxo migratório da periferia em direção ao centro das cidades, em busca das dezenas de abrigos abertos ao público, começa a ser notado. Como em uma guerra civil, uma multidão humilhada, desamparada e maltrapilha é vista afundando pés na lama. Levam fogões, televisores, geladeiras nos ombros. Mulheres, crianças e adolescentes carregam roupas e utensílios frágeis. Fogem da tempestade – mas o inimigo, escondido em meio à vegetação de uma das regiões mais belas do país, permanecia oculto até aquele momento.
– Preparem-se porque vamos começar a retirar vocês – avisa Ezequiel, que está acompanhado de bombeiros voluntários.
Dentro de casa, todos se organizam. Maria, as filhas Débora e Franciele, e os netos Elenai e Ester estão na sala. Silvania Mendonça Figueira, 26 anos, mulher de Ezequiel e cunhada de Maria, e os dois filhos dela permanecem próximos à porta.
O telefone toca, e Maria atende. É Jussara. A conversa, como se sabe, não se encerra. Um minuto depois, um estrondo é ouvido. Do alto do morro coberto por vegetação nativa desloca-se uma montanha de árvores e troncos de madeira, levando o que encontra pela frente. Movido pelo reflexo, Ezequiel alcança os dois filhos pelos braços e os arremessa para fora. Tem tempo, ainda, de esticar a mão direita para a mulher, que consegue escapar da arapuca de alvenaria. Nada mais é possível fazer.
– Se eu fico um segundo mais, morria junto – conta Ezequiel.
Em um tempo que ele estima em cinco segundos, a avalanche destrói a casa. Quatro minutos depois, outra onda gigantesca e destruidora. E, dentro de outros 10 minutos, uma terceira, e ainda mais violenta, sepulta o que encontra pela frente.
– É como se uma piscina com água e lama arrebentasse e descesse – recorda.
(Por Carlos Etchichury e Itamar Melo, ZH, 30/11/2008)