Marcio Schittini e Luiz Felipe Pereira ainda são jovens, na casa dos trinta anos, mas já podem mudar o futuro. Sócios na empresa Acesa, os dois tocam um amplo projeto piloto que a Coppe, centro de pesquisas da Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ) implantou na Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) Alegria, no Bairro do Caju (RJ), zona norte da capital. A idéia é transformar esgoto urbano em energia. Caso o modelo dê certo, será exemplo para a instalação de redes de saneamento básico em todas as cidades do país, já que seu custo de operação passará a ser praticamente zero: a energia gerada pelos resíduos é usada no próprio funcionamento da usina.
Formado em Economia e Negócios Internacionais nos Estados Unidos, Felipe trabalhou durante três anos na Avina daquele país. A entidade é uma das principais organizações não-governamentais do mundo a apoiar projetos de sustentabilidade ecológica. Ele foi responsável pela análise de riscos de praticamente todos os projetos mantidos pela ong na América Latina e ajudou a construir uma base de dados que se transformou no coração da entidade. Depois, passou um ano no Panamá, onde abriu um escritório da Avina. “Mas achei que estava na hora de levantar a vela do próprio barco, voltei para o Brasil e reencontrei o Schittini, que já estava trabalhando com eficiência energética”, diz.
Marcio, que também se graduou em Relações Internacionais e Economia nos Estados Unidos, fez uma pós-graduação em Marketing no Brasil e trabalhou na área comercial de algumas empresas do mercado de rádio e de telefonia. Foi quando o Protocolo de Kyoto ganhou fama, assim como o seu Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, e Schittini se encantou pelo mundo oferecido no mercado de créditos de carbono.
Na última sexta (21), os sócios receberam a reportagem de O Eco no belo escritório que a Acesa mantém no centro do Rio de Janeiro, com vista para a Baía de Guanabara. Em pauta, o projeto de reaproveitamento do biogás produzido na ETE-Alegria a partir de lodo de esgotos. Por enquanto, o gás é queimado e seus resíduos acabam no ar que se respira. E, se hoje o lodo é descarregado na mesma baía que emoldurou a entrevista, pode virar eletricidade ou combustível até o fim de 2009.
Confira a entrevista completa abaixo.
O Eco - Qual o principal objetivo do projeto que vocês mantém na ETE-Alegria, uma Estação de Tratamento de Esgoto da Cedae, no Rio de Janeiro?
Marcio Schittini - O objetivo é demonstrar a viabilidade econômica de se produzir biocombustíveis a partir do esgoto urbano. Uma das metas primárias é mostrar que a gestão do esgoto urbano pode ser uma atividade auto-suficiente em termos de energia. Queremos quebrar o paradigma que hoje ainda reina no Brasil, de que 20% do esgoto é devidamente tratado, 80% não. Isso porque existe um consenso na sociedade de que uma rede de esgoto é cara para montar e cara para operar. O que estamos tentando provar com esse projeto é que, sim, tratar esgoto é caro para montar, mas é de graça para operar. O segundo maior custo que tem uma empresa de gestão de esgoto é energia. O primeiro é pessoal. Pretendemos provar que esse segundo custo passa a ser zero, porque, com o esgoto que essa empresa recebe, existe a possibilidade de produzir energia e usar essa energia dentro da operação da ETE para minimizar esses custos. Isso pode levar soluções de tratamento de esgoto para o Brasil inteiro. Queremos multiplicar os benefícios de um lugar, sejam sociais, de saúde, econômicos ou ambientais, quando ele trata o seu esgoto. O aumento de qualidade de vida é o objetivo subliminar.
Qual a função da Coppe (centro de pesquisas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro) nessa iniciativa?
Schittini - A Coppe estruturou o projeto, que é de pesquisa, não tem objetivos econômicos, por enquanto. A replicação dele, naturalmente, terá repercussão econômica, mas este é um projeto de estudo de viabilidade. Ele é dividido em três fases. A primeira delas contempla o aproveitamento da gordura, que é produzida no tratamento primário do esgoto e é transformada em biodiesel. Esta é uma das usinas que estão sendo construídas dentro da ETE-Alegria. A responsabilidade é de uma outra empresa. A segunda etapa é: uma vez que essa gordura é retirada, o lodo vai para baixo da bacia de sedimentação e é jogado em um biodigestor. Ele, naturalmente, produz o biogás. A nossa responsabilidade é fazer o aproveitamento energético desse gás. A terceira etapa é que, depois de passar pelo digestor, sai um lodo, que será convertido em um bio-óleo. Essa responsabilidade do projeto é de uma empresa incubada na Universidade Federal Fluminense. O projeto propõe, primeiro, essas usinas de produção de energia. Segundo, a sinergia de uso dessas energias dentro da operação da ETE. Vamos fazer uma avaliação do impacto que teria produzir biodiesel lá na estação de Alegria, produzir energia elétrica e também o bio-óleo. Caso fosse usar na ETE, o que significa para ela? Tem redução de dinheiro, pode começar a vender energia? É o que vamos descobrir.
Ou seja, a idéia é reaproveitar o potencial que existe lá dentro desde que a estação foi aberta, assim como em todas as outras redes de esgoto?
Luiz Felipe Pereira - Sim. A gordura sempre esteve lá. O biogás está lá, queimando, ninguém usa isso. Hoje, o lodo sai dali e vai para a Baía de Guanabara. Os benefícios ambientais disso são incríveis, deixa de poluir a Baía, deixa de consumir combustíveis fósseis, já que a Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos) consome eletricidade para operar a ETE e diesel para o caminhão, que ela precisa comprar, mas poderia produzir lá dentro.
Em que se consiste o trabalho da Acesa com o biogás da ETE-Alegria?
Schittini - Nosso trabalho é dividido em três fases. A primeira, que será concluída este mês, é medir e qualificar o gás que sai de lá. Instalamos medidores e hoje temos noção de que são produzidos 900 metros cúbicos de biogás por hora.
Pereira - Isso significa, em outras palavras, 25 mil metros cúbicos de biogás por dia. Dá para abastecer, com gás natural, cerca de mil carros por dia. Além disso, em conversão para eletricidade, a ETE-Alegria pode produzir, atualmente, cerca de 60 MW diários. Hoje, isso está parcialmente queimando e outra parte de metano vai direto para a atmosfera.
Schittini - Concluímos que temos 25 mil metros cúbicos de gás na ETE e 70% dele é composto de metano. Hoje, a ETE-Alegria trabalha com 1/3 da capacidade de recebimento de esgoto que tem. Potencialmente, portanto, estamos falando de produzir 75 mil metros cúbicos de gás por dia. É algo interessante. A Cedae, a Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Parlo) e a Copasa (Companhia de Saneamento de Minas Gerais) têm, hoje, poços de gás natural nas mãos e não fazem nada com eles.
Pereira - É óbvio que a economia energética destas companhias seria interessante. O mais interessante, no entanto, é que como o tratamento de efluentes em geral pressupõe um investimento bem alto no começo e um custo operacional relativamente alto, por causa da energia, se a gente consegue reduzir esse custo, começa a viabilizar o saneamento básico em locais onde hoje é mais difícil. Vários municípios de menor porte que poderiam ter um tratamento de efluentes, hoje não têm porque é muito caro.
E a segunda fase será testes?
Schittini - Somos responsáveis por testar diferentes formas de utilização desse gás para entender qual, economicamente, faz mais sentido. O primeiro caminho é instalar na ETE um filtro de purificação de metano. Vamos pegar o biogás, que será filtrado e sairá na forma de um gás natural equivalente. Nós o chamamos de GNR (Gás Natural Renovável).
Pereira - Esse filtro purifica o metano até um nível de 97% e que, portanto, atende à portaria da ANP (Agência Nacional do Petróleo) que regulamenta o que seria um gás natural. É óbvio que ele não vem de um poço, não vem de um buraco na terra, e sim do esgoto. Mas no que diz respeito às especificações do gás, ele atenderia ao que as normas entendem ser gás natural. Depois, vamos testar um gerador fabricado por uma empresa incubada na Coppe, que é bi-combustível: funciona a biogás e a gás natural. Vamos checar e avaliar a performance desses equipamentos, usando tanto o biogás direto da ETE, já devidamente sem os oxidantes, quanto o GNR que produziremos. Esses motores pressupõem, além da instalação desse equipamento, o monitoramento e operação desses sistemas por, pelo menos, um ano. O outro gerador que vamos colocar é desenvolvido pelo ITUC (Instituto de Tecnologia da PUC-RJ), basicamente movido a diesel e com cerca de 90% do combustível substituído por gás natural, simultaneamente. Diferente do seu carro, onde você escolhe gasolina ou GNV (Gás Natural veicular), esse motor sempre funciona com os dois combustíveis, em variadas proporções, desde que você tenha biogás. Quando acaba, pode funcionar 100% diesel e é tudo automático. Teremos um bom sistema de monitoramento, que nos dará informações a respeito da eficiência do processo etc.
Qual a intenção com este alto número de experimentos?
Schittini - A idéia de testar diferentes motores é porque cada um deles, funcione a biogás, a gás natural, ou a diesel-gás, tem um custo inicial de aquisição, um custo operacional e uma eficiência diferente. Queremos calcular. Temos biogás, temos possibilidade de fazê-lo virar gás natural, usar como gás puro ou misturá-lo com diesel. Qual das três possibilidades faz mais sentido econômico para começar a criar um modelo de replicação? Esse é o objetivo desta segunda fase.
A terceira fase, então, é avaliar tudo isso na prática e ver o quanto a ETE consegue economizar e quais os impactos positivos no meio ambiente?
Schittini - A terceira fase é ficar tocando esse assunto por doze meses. E avaliar, em cima de metodologias de controle, monitoramento, para chegar no final de 2009 com uma conclusão de como fazermos isso acontecer em outras unidades da Cedae, em outras unidades de saneamento urbano no Brasil, e, se tudo der certo, em unidades que não existem ainda e que, em virtude dessa descoberta de aproveitamento do esgoto para o combustível, podem surgir.
Então, nesse período, vão usar a energia dentro da ETE e ver os resultados?
Schittini - Isso. Mas, como é um projeto piloto, eu não vou usar toda a energia potencial que tenho lá dentro. Estamos colocando equipamentos de médio porte. Quando chegarmos no melhor modelo, pretendemos instruir a Cedae para comprar equipamentos de grande porte, usar 100% do gás que ela tem e, aí sim, ter os seus benefícios econômicos.
Pereira - Na verdade, o gás que é produzido ali é muito maior do que a demanda de energia da própria ETE. Teoricamente, no futuro, com esses equipamentos de grande porte, poderia também usar a energia para abastecer o escritório da Cedae, substituir a energia que ela compra da distribuidora. Ou, por exemplo, fazer o GNR para colocar na frota de caminhões da Cedae que passam nos restaurantes para recolher gordura.
Schittini - Assim, criam-se modelos interessantes de reduzir a sua dependência de combustíveis fósseis. Potencialmente, cria uma realidade de que a Cedae, além de ser uma empresa que recebe e trata esgoto, também produz energia. Isso muda o modelo de negócios do saneamento urbano.
Vocês têm idéia do volume de esgoto que chega na ETE-Alegria hoje?
Schittini - 1.700 litros por segundo (O rio Tietê, em São Paulo, recebe cerca de 35 mil litros de esgoto in natura por segundo).
E quanto de energia o biogás pode gerar?
Schittini - Mais de 100% do consumo da ETE-Alegria, e só com 1/3 de sua capacidade. Apenas usando gás, sem contar o diesel ou o óleo. Só o gás te dá mais do que 100% de eficiência energética. Ou seja, a Cedae pára de pagar a Light, e ainda vende energia para ela. Esse é o fato. Hoje, isso é possível. Ainda não está acontecendo, mas é o projeto.
Logo, o custo de instalação será grande, mas o de operação será zero. É isso?
Pereira - Claro. Porque uma coisa é você ter um programa do governo, um PAC do saneamento. Aí, por exemplo, a Dilma Roussef (Chefe da Casa Civil da Presidência da República) decide fazer uma Estação de Tratamento de Esgoto para a cidade de Pindamonhangaba (SP). Coloca a ETE lá, linda, primeiro mundo. Tem dinheiro do PAC para construir essa unidade. Mas quem disse que Pindamonhangaba do Norte tem dinheiro para operar esse negócio? Aí que entra o valor agregado. Agora é possível receber este investimento para qualquer ETE e viabilizá-la com sustentabilidade no longo prazo.
Schittini - O Brasil tem dinheiro para construir ETE para tudo quanto é lado. Uma vez que você incorpora essa noção de aproveitamento do combustível que produz na ETE, para suprir o custo operacional disso, o modelo de implantar ETEs pelo Brasil virou sustentável. Quem se dá bem com isso é o consumidor brasileiro.
Como vocês abriram a Acesa e qual a motivação?
Schittini - Meu pai vinha do setor de energia, então eu já tinha uma estrutura nesse ramo. Depois de um tempo, descobri uma legislação que obrigava as empresas elétricas a investirem em pesquisa e desenvolvimento. Essa mesma legislação previa que uma consultoria externa podia fazer a gestão desses investimentos perante a academia. Então, a gente abriu uma empresa que tinha como objetivo fazer a união entre a demanda do setor elétrico e o que estava sendo estudado no mundo acadêmico. Abrimos a empresa entre 2003 e 2004, fiz alguns contatos e conheci o biogás - o que era, o que fazia, como a coisa acontecia. E a equação, que na época não fechou na minha cabeça e que fez transformar a Acesa numa empresa focada em biogás era que, em muitos países da Europa e Ásia, já existia muita tecnologia desenvolvida para o aproveitamento energético desse combustível. Para se ter uma idéia, 30% da matriz energética da Dinamarca vem do biogás. Então, eu pensei: como o Brasil, que é o maior produtor de biomassa no mundo, tem um problema energético? Não fazia sentido. Se a teoria funcionasse, o país deveria ser um grande gerador de energia, com tanta biomassa. Não o contrário, como era o caso, pois isso foi um ou dois anos depois do Apagão (2001). O setor agropecuário, sem saber o que fazer com todo aquela biomassa, o setor ambiental pressionando os produtores porque eles estavam tratando mal os dejetos; então abrimos a empresa pela oportunidade de transformar o desperdício em ativo energético.
Pereira - E nessa época já existia um desenvolvimento grande, mesmo no setor de suínos, queimando e destruindo gás metano. Mas o lema é não destruir, e sim aproveitar o metano.
Márcio, você diz que o Protocolo de Kyoto foi responsável por criar um interesse em energias renováveis. Como assim?
Schittini - Quando eu me formei, nos Estados Unidos, fiz uma pós-graduação no Brasil e comecei a trabalhar na área comercial de algumas empresas, como rádio e telefonia. Mas o Protocolo de Kyoto deu o start para o meu interesse quando vi o mundo de oportunidades criado pelos créditos de carbono. Mas ele também tem um lado “evil” (mau), pois prega a destruição do metano. Em nosso contexto econômico, isso não faz sentido. Reclamamos que o Evo Morales não manda metano para a gente, e temos, em Santa Catarina, 500 digestores (máquinas que transformam o lodo em biogás) simplesmente queimando esse combustível.
Então, vocês só produzem biogás?
Pereira - O “só” produz biogás precisa ser clarificado. Na verdade, produzimos e também vamos a lugares onde ele já existe. A ETE-Alegria, da Cedae é um exemplo de lugar onde existe um biodigestor que faz o biogás, mas ele é queimado. Sequer o destróem..
Schittini - Há diversas indústrias que têm estações de tratamento de efluentes e muitas fazem biogás. O problema é que, em 90% dos casos, elas o queimam. Nós, ao contrário, tanto achamos biomassa e a transformamos em biogás, quanto chegamos em algum lugar que já o tenha e compramos para transformar em energia. Se o cara tem gás, eu compro. Se o cara tem biomassa, eu também compro.
(Por Felipe Lobo, OEco, 26/11/2008)