O campo onde as crianças jogam futebol hoje já esteve embaixo d’água. Em abril, no fim do festejado período das chuvas no Ceará, a Lagoa da Precabura cobria uma extensão a perder de vista, nos limites da capital, Fortaleza. Nove meses depois, as traves estão fincadas na terra esturricada e bois e vacas procuram o capim que ainda teima em ficar verde em meio ao mato seco e amarelado. Os pescadores da região estão acostumados a torcer pelas chuvas, que começam em janeiro e repõem a água que evapora sob o sol inclemente do Ceará. Contam com São José, padroeiro do Estado, para dar uma ajuda. Prega a crença popular que um 19 de março chuvoso, quando se comemora o dia de São José, garante água abundante no resto do ano. E olha que no último 19 de março o aguaceiro foi dos bons.
O cenário, que mais parece o do sertão do Ceará, está a poucos quilômetros do centro de Fortaleza, na rota de uma das principais atrações turísticas, o parque aquático Beach Park. Uma amostra para turista ver dos caprichos do clima do Nordeste brasileiro. E um alerta de como a ação humana pode agravar os rigores do clima. Com desmatamento da vegetação ao redor da lagoa, a terra exposta ao sol e ao vento é carregada pela erosão e se acumula no fundo da água, junto com o esgoto jogado de forma irregular. O resultado é a diminuição da profundidade da lagoa e da quantidade de água que ela pode armazenar. Com as mudanças climáticas, conseqüências como essa da combinaçãodos efeitos do clima com os da atividade humana prometem se intensificar.
Pela primeira vez, um grupo de cientistas conseguiu calcular em detalhes o que deve acontecer com a região Nordeste se a temperatura aumentar no planeta. Para antecipar os impactos das mudanças climáticas, os pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais e da Fundação Oswaldo Cruz se basearam em um dos cenários previstos pelo Painel Internacional de Mudanças Climáticas, a cúpula de cientistas das Nações Unidas que estuda o aquecimento global. De acordo com o estudo brasileiro, um acréscimo de 4 graus Celsius até 2070 pode causar a perda de 80% das terras propícias à agricultura no Ceará. Em Pernambuco, o segundo Estado mais afetado da região, a redução das áreas agriculturáveis chegará a 65%. A diminuição das terras férteis desencadearia a migração da população mais pobre. O fluxo de pessoas em direção às cidades pode chegar a 247 mil pessoas entre 2035 e 2045 e a 236 mil pessoas entre 2045 e 2050. A perda da capacidade produtiva e o aumento da migração para cidades (que contribuiu para o colapso do sistema de saúde) custarão 11,4% de toda a riqueza produzida no Nordeste – o equivalente a dois anos de crescimento econômico.
Esses dados fazem parte de um estudo inédito que será divulgado hoje durante a I Conferência Regional Sobre Mudanças Climáticas, em Fortaleza. Junto com as considerações de outros especialistas reunidos desde segunda-feira, o estudo servirá como base para uma carta de recomendações aos governos estaduais e ao governo federal, pedindo medidas para minimizar os impactos das mudanças climáticas no Nordeste. A presença de governadores da região e do Ministro do Meio Ambiente Carlos Minc durante a assinatura do documento promete reforçar o pedido de ajuda.
Como o clima vai mudar
No Nordeste, nos últimos 30 anos, a temperatura já aumentou entre 0.2 graus e 0.4 graus Celsius por década. A cidade de Vitória de Santo Antão, em Pernambuco, é o exemplo mais marcante. A temperatura subiu de 30 graus para 34 graus nos últimos 40 anos - 1 grau por década. Os pesquisadores ainda estão pesquisando a causa desse aumento anormal da temperatura, mas acreditam que o desmatamento seja uma das principais razões. “A vegetação da região é muito usada como lenha nos fornos da indústria gesseira”, afirma Paulo Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) . “É provável que essa cidade já esteja apresentando os efeitos da desertificação.”
A desertificação é um processo que assombra o Nordeste há séculos. Não causa a formação de desertos, mas sim o empobrecimento do solo e a perda da capacidade produtiva. A vegetação, que morre castigada pelas secas, deixa o solo exposto à ação da erosão. Ela leva embora os nutrientes e torna as terras improdutivas. E o aquecimento global só deve contribuir para agravar o processo de desertificação. “Ele modifica as correntes de vento e o padrão de circulação do oceano, fazendo com que chova mais ou menos em uma determinada região”, diz Nobre. A alteração das chuvas afeta a vegetação local, que pode morrer durante as secas, deixando o solo exposto e sujeito à erosão. Além disso, contribui para as emissões de carbono para a atmosfera, realimentando o ciclo do aquecimento global.
Os modelos computacionais que prevêem o que acontecerá no futuro com o clima já indicam que os períodos sem chuva no Nordeste, conhecidos como veranicos, devem aumentar. “Esse aumento de temperatura é completamente chocante para agricultura”, afirma Nobre, do Inpe. Com o clima mais quente, as plantas perderão mais água e precisarão de mais água para repô-la. Mas, com períodos mais longos de seca, esse será um recurso ainda mais escasso na região. Se hoje já difícil prever quando vai chover no Nordeste, no futuro será ainda pior. “O maior problema é que as chuvas serão erráticas. A quantidade de chuva variará muito de ano para ano. Até mesmo os períodos chuvosos durante o ano serão muito instáveis”, diz Everardo Sampaio, pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Um cenário tão incerto é desastroso para agricultura. Como calcular em que época plantar e qual cultivo escolher sem se saber quando virão as chuvas e quanto? O resultado é que áreas do Nordeste em que os agricultores conseguem produzir, como a faixa de terra entre a costa e o sertão, conhecida como Zona da Mata, poderá se tornar parte do semi-árido – o tipo de clima mais seco do país, onde as secas são sistemáticas. “As matas secas poderão avançar do Ceará à Bahia”, diz Sampaio. “Entrarão pelo cerrado do Piauí e da Bahia, onde está a área mais produtiva do Estado, conhecida pelo cultivo de soja.” Projeções da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, a Embrapa, confirmam o aumento da extensão seca no Nordeste. Até 2070, as áreas de cultivo de cana-de-açúcar, milho e algodão só deverá diminuir. Até a produção de mandioca, característica da região, também se tornará inviável, enquanto aumentará no resto do país em razão do aumento da temperatura.
A população sofrerá os efeitos mais devastadores da desertificação. Os pequenos agricultores, que correspondem a 70% dos proprietários do semi-árido, serão expulsos de sua terra. Nesse tipo de propriedade, não há espaço para fugir das terras improdutivas e tentar novos cultivos. Com a redução na produção, a tendência é que esses produtores partam para a periferia de zonas urbanas, agravando problemas sociais. Sem a educação exigida nos grandes centros, acabam de fora do mercado de trabalho, sem acesso a moradias adequadas e ao sistema de saúde. “Um dos efeitos da migração dessa população é o aumento da criminalidade”, diz Antonio Rocha Magalhães, economista e membro do Painel Internacional de Mudanças Climáticas.
A redução da produtividade já está ocorrendo. “Um produtor consegue uma renda máxima por ano de R$ 300 por hectare”, afirma Sampaio, da UFPE. “Essa média de produtividade é bem menor do que a do restante do país e nem a tecnologia tem adiantado para melhorá-la.” Com a saída dos pequenos produtores, haveria a aglutinação de propriedades. A concentração de terras nesse caso não seria necessariamente ruim. “Com propriedades maiores, seria possível reservar espaços para tentar a recuperação da terra”, diz Magalhães.
Planejamento e adaptação
Um dos caminhos para reduzir os impactos das mudanças climáticas no Nordeste é o mesmo para frear o aquecimento global: parar o desmatamento. Ele é um dos principais responsáveis pelo processo de desertificação porque deixa o solo exposto e sujeito à erosão. Hoje, estima-se que restem menos de 40% da cobertura nativa da caatinga, a vegetação típica do semi-árido. O resto deu lugar a pastos, plantações ou virou lenha para mover fornos de olarias no sertão. “A cada ano, 1 mm de solo é levado embora. São necessários centenas ou milhares de anos para esse solo se recuperar”, diz Sampaio, da UFPE. “Com décadas de agricultura, já foram embora 30 cm, em uma região que tem apenas 50 cm de profundidade de um solo raso e pedregoso.” As áreas mais devastadas e, portanto mais sujeitas à desertificação, estão nos vales do semi-árido, justamente os mais propícios à agricultura.
A recuperação das matas ciliares, que estão em torno dos rios e das nascentes, poderia funcionar até como fonte de renda para os agricultores. Projetos de reflorestamento, que seqüestram gás carbônico da atmosfera, poderiam receber financiamento em troca de créditos de carbono. Países poluidores que precisam diminuir suas emissões para cumprir o Protocolo de Kyoto poderiam comprar o carbono capturado por essas novas árvores financiando seu plantio. É o que se chama de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo. “O Nordeste pode se aproveitar das oportunidades de mitigação dos efeitos do aquecimento global para gerar renda”, afirma Magalhães.
O mais importante é que os governos estejam preparados para lidar com as conseqüências das mudanças que virão. Os Estados do Nordeste começaram este ano a fazer seus planos para lidar com os impactos da desertificação. Mas só devem tê-los prontos em meados do ano que vem. Entre as medidas que podem ajudar na adaptação estão o aprimoramento de espécies da vegetação nativa para suportarem ambientes com menos água. E usar o calor do sol como aliado: placas solares no sertão poderiam mover mecanismos para bombear água. Os modelos climáticos também oferecem a oportunidade de planejar o futuro. “É o momento de repensarmos as atividades que dependem de água”, diz Paulo Nobre, do Inpe. “Será que a inviabilidade de plantar milho não pode gerar a oportunidade de o Nordeste começar a exportar softwares?”.
(Blog do Planeta, 25/11/2008)