A decisão do governo de Cristina Fernández de vetar uma lei de proteção das reservas de água doce das geleiras da Argentina causa profunda preocupação em cientistas e ambientalistas que participaram da elaboração do projeto. “Trabalhamos muito com os legisladores para que essa lei fosse promulgada”, disse pesaroso ao Terramérica o doutor em Geociências Ricardo Villalba, diretor do estatal Instituto Argentino de Nivologia, Glaciologia e Ciências Ambientais (Ianigla). “É difícil entender o que ocorreu. A comunidade científica não quer deter o desenvolvimento, mas preservar fontes de água doce em uma região onde as províncias dependem dessas reservas para seu consumo e irrigação”, acrescentou Villalba, membro do Grupo Intergovernamental de Especialistas sobre Mudança Climática (IPCC).
O projeto de Lei de Orçamentos Mínimos para a Proteção das Geleiras e do Ambiente Periglacial, aprovado em 22 de outubro com folgada maioria nas duas câmaras legislativas, estabelece normas básicas para “preservá-los como reservas estratégicas de recursos hídricos e fornecedores de água”. Também proíbe atividades que afetem as funções de fornecedores de água das geleiras e do ambiente periglacial, definido no projeto como “área de alta montanha com solos congelados que atua como regulador do recurso hídrico”. O artigo segundo do texto afirma que uma geleira é uma “massa de gelo perene, estável ou que flui lentamente, com ou sem água intersticial, formada pela recristalização da neve, localizada em diferentes ecossistemas, qualquer que seja sua forma, dimensão e estado de conservação”. Entre as atividades proibidas nesses lugares consta a exploração e prospecção de minérios ou petróleo, construção de obras de arquitetura ou infra-estrutura e a liberação de substâncias poluentes, produtos químicos ou resíduos de qualquer tipo.
Assessorada pela Secretaria de Mineração, Fernández vetou toda a lei no dia 11 desse mês, alegando que “a proibição é excessiva” e outorga “preeminência aos aspectos ambientais acima das atividades que poderiam ser desenvolvidas com perfeito cuidado do meio ambiente”. No fundamento do veto, a presidente admite que os governadores das províncias afetadas “expressaram sua preocupação” pela lei porque “repercutiria negativamente no desenvolvimento econômico e nos investimentos que nelas são feitos”.
A lei teria afetado projetos como o de Pascua Lama, que a corporação mineira canadense Barrick Gold pretende iniciar na Cordilheira dos Andes, em uma área limítrofe entre a província argentina de San Juan e a região chilena de Atacama, para extrair ouro, prata e cobre por cerca de 20 anos. O investimento da Barrick para essa mina é de US$ 2,4 bilhões, segundo as últimas estimativas, e permitirá extrair anualmente 615 mil onças de ouro e 30 milhões onças de prata, mais cinco mil toneladas de concentrado de cobre por meio do método de lixiviação com cianureto para separar o metal da rocha.
Embora o projeto da Barrick prejudique geleiras localizadas do lado chileno e já tenha sido aprovado pelos dois países, desperta forte resistência dos moradores dos dois lados da fronteira, que fizeram campanha por anos contra a exploração mineral e a favor da preservação das reservas de água doce. Algo semelhante ocorre com moradores da província de La Rioja, contrários aos planos de mineração da Barrick na cadeia montanhosa da Serra de Famatina, onde nascem vários cursos de água. Entretanto, os projetos, apesar dos entraves, avançam lentamente.
Diante desse cenário, a sanção da lei seria comemorada como uma vitória entre os que trabalham na preservação da água doce. Mas a festa durou menos de um mês, até chegar o veto total. “A Cordilheira é gigante e há lugar para todos”, alegou Villalba. “A lei não dizia que não podia haver nenhum projeto. Indicava que se devia limitar áreas. Para isso se ordenava a realização de um inventário de geleiras e periglaciais para seu controle e proteção que deveria estar a cargo da Ianigla. O que não deveria ser tocado eram as áreas fornecedoras de água”.
O vice-presidente da Associação Amigos dos Parques Nacionais da Argentina, Norberto Ovando, disse ao Terramérica que mesmo “com a mineração realizada em zona periglacial, suas explosões provocam a liberação e dispersão de substâncias que, além de contaminantes, aquecem muito mais rápido a superfície das geleiras”. As “atividades que a lei vetada proibia iriam acelerar esse derretimento”, disse Ovando, membro da Rede Mundial de Áreas Protegidas.
Segundo a Ianiglia, na Patagônia (sul do país) as geleiras retrocederam entre 10% e 14% nos últimos 20 anos, por causa do aumento da temperatura global. “Para nós, a água é mais valiosa do que o ouro e não tem substituto”, enfatizou Ovando. Embora executivos da Barrick tivesem que voltar atrás com seu plano inicial de trasladar três geleiras do lado chileno e se comprometer a não fazê-lo, “os cientistas não acreditam muito na companhia”, disse Ovando. A lei era uma ferramenta para que esse compromisso fosse cumprido.
O biólogo Raúl Montenegro, da Fundação para a Defesa do Meio Ambiente, disse ao Terramérica que foi “um erro” vetar uma lei “sensata e inteligente” que também protegia as altas bacias hídricas em geral e as economias semi-áridas que existem graças à água das geleiras. Na Argentina, as ocidentais províncias de San Juan, Mendoza e La Rioja dependem do fornecimento dessas fontes para consumo humano, agricultura e pecuária.
(Por Marcela Valente*, Terramérica, Envolverde, 24/11/2008)
* A autora é correspondente da IPS.