Por José Tadeu Jorge*
No rastro das más notícias trazidas pela crise mundial dos mercados -escassez do crédito, redução dos investimentos e aumento das taxas de desemprego-, começa a emergir, para além do pessimismo generalizado, uma onda de discussões sobre a sustentabilidade das economias e as alternativas existentes para os pontos de colapso.
Janelas de oportunidades podem surgir, portanto, para países que detêm tecnologias alternativas, como o Brasil. Ao se tornar mais evidente, por exemplo, a necessidade dos países centrais de resolver sua dependência do petróleo árabe e venezuelano -sem contar a tendência mundial de redução do consumo de petróleo pelo uso de alternativas limpas-, não são desprezíveis as chances de que a solução venha dos biocombustíveis, cenário em que ninguém estaria melhor situado que o Brasil. É nesse contexto que continua a se desenrolar o debate, a meu ver equivocado, que contrapõe o etanol à produção de alimentos. Partidários do crescimento econômico, como se só eles defendessem o progresso, postam-se de um lado e bradam números escolhidos para a defesa de seus argumentos. Defensores do equilíbrio social, como se fossem os únicos defensores da justiça, posicionam-se na outra trincheira munidos de suposições e deduções teóricas.
A onda de discussões sobre a sustentabilidade das economias é uma janela de oportunidades para quem tem tecnologias alternativas
Para que a questão seja compreendida em sua inteireza, é imprescindível que alguns fatos sejam levados em conta. O primeiro é que há muito o agronegócio brasileiro sustenta o país. Não por acaso o Brasil é o maior exportador mundial de café, soja, açúcar, suco de laranja, carne bovina e carne de aves. Possui a maior área agricultável do mundo. É o maior, se não o único, produtor de álcool a partir da cana e desenvolveu tecnologia própria para isso.
O centro da polêmica está no risco de que áreas hoje plantadas com alimentos sejam destinadas à produção de cana. Há indícios de que isso já ocorra em pequena escala no Estado de São Paulo. Contudo, essa constatação não deveria servir para satanizar o etanol e transformar em queda-de-braço o debate em torno da cana, mas, sim, para ampliar o espectro da discussão e forçar a emergência de uma política agrícola que seja capaz de evitar tal ocorrência e equacionar as variáveis da oportunidade histórica que se apresenta. A agricultura brasileira ocupa atualmente uma área plantada de cerca de 60 milhões de hectares. Além dessa área já em uso, o país possui ainda 90 milhões de hectares agricultáveis. Com tamanha disponibilidade para a expansão da produção agrícola em geral, é perfeitamente possível que o país se organize para evitar qualquer obstáculo à produção de alimentos como decorrência do aumento da área destinada à cana.
A oportunidade histórica do etanol pode e deve incluir, como condição básica, a adoção de medidas reguladoras e, mais que isso, a existência de um instrumento organizador que atenda pelo nome de política agrícola -o que, a rigor, o país nunca teve. Quando muito, episodicamente, aplicou-se esta ou aquela política econômica para a agricultura.
Para permitir o avanço tanto da produção de alimentos como da produção de cana, o país precisa fixar objetivos de médio e longo prazo tendo como base conceitual os fundamentos da agropecuária e fazendo dos recursos financeiros o instrumento indutor para o alcance das metas.
O que começa a acontecer em São Paulo no âmbito da cana pode ser evitado, desde que o governo estimule o plantio de cana em regiões amplas que justamente buscam novas frentes de desenvolvimento -por exemplo, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul-, cuidando para que São Paulo preserve sua área agricultável, em boa medida já ocupada, prioritariamente para a produção de alimentos.
Não se trata de proibir ou impor, mas de oferecer garantias, propiciar níveis de produtividade e, sobretudo, ter um projeto abrangente para a agropecuária, em que temas como zoneamento, cadeia do frio, armazenagem, secagem e infra-estrutura da cadeia produtiva saiam das referências técnicas e acadêmicas para a realidade da produção e do abastecimento. Ao longo da história, nenhum país logrou a supremacia, ao mesmo tempo, da produção de alimentos e da produção de energia. O Brasil está diante dessa oportunidade. Não convém desperdiçá-la. Para além da crise dos mercados, ela significará, mais do que o desenvolvimento econômico em si, um passo adiante na solução de desigualdades históricas, tanto geográficas quanto sociais.
*Engenheiro de alimentos, é reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
(Jornal da Unicamp, 24/11/2008)