ONGs e movimentos sociais com atuação na região amazônica divulgam carta com princípios que devem guiar o processo administrativo de regularização fundiária em terras públicas. Documento enviado na sexta-feira (21/11) à Presidência da República e ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), marca posição diante das recentes propostas do governo de acelerar o processo por meio da criação de um novo órgão e da flexibilização das regras atuais.
A carta enviada ao governo federal com princípios norteadores para o processo administrativo de regularização fundiária na Amazônia, foi assinada por nove organizações da sociedade civil. Leia abaixo.
Regularização fundiária na Amazônia: princípios para evitar a repetição do caos
A Amazônia é uma terra de paradoxos. Ao mesmo tempo em que é a região com a menor densidade demográfica do país é onde há os mais graves e intensos conflitos pela posse da terra. As disputas decorrem da falta de definição dos direitos de propriedade em áreas ocupadas e da corrida para ocupar áreas públicas ricas em recursos naturais. Esses conflitos e incertezas geram insegurança, afrontam os direitos humanos, incentivam desmatamento desnecessário para demonstração do controle de terras e desincentivam investimentos em uma economia rural sustentável. A causa desses conflitos todos conhecem também: o caos fundiário que subsiste há séculos. A receita para superar essa situação, que consta inclusive de programas governamentais, como o Plano Amazônia Sustentável e o Programa Territórios da Cidadania, é regularizar a situação fundiária, regularizando as terras públicas devolutas, anulando títulos de propriedade falsos, legitimando posses legítimas sobre terras públicas, cadastrando os imóveis existentes, criando infra-estrutura para viabilizar as cadeias produtivas, dentre outros.
Recentemente o Governo Federal tem prometido “acelerar” a regularização fundiária na Amazônia. Em 2008, editou e transformou em lei a Medida Provisória 422, que permite a regularização, sem necessidade de concorrência pública, de posses de até 15 módulos fiscais, que em algumas regiões significa até 1.500 hectares. O ministro Mangabeira Unger anunciou a intenção de criar uma nova instituição especialmente para tratar da regularização fundiária na Amazônia, a qual, com a simplificação das leis hoje existentes, poderia em muito menos tempo fazer o trabalho hoje realizado pelo INCRA. O Ministério do Desenvolvimento Agrário, por sua vez, também apresentou uma proposta de como acelerar a regularização de terras públicas na Amazônia, simplificando procedimentos e diminuindo o tempo e os custos do processo administrativo. A doação de terras para pequenos posseiros tem sido discutida pelo governo federal.
A regularização fundiária é de fato essencial para um desenvolvimento pacífico e sustentável da Amazônia. Entretanto, dado o histórico de caos e ilegalidade das ocupações até o momento, a aceleração, sem maiores critérios, da regularização das áreas já ocupadas poderá estimular novas ocupações de terras públicas, na medida em que cria nos particulares a esperança de que novas exceções poderão ser criadas no futuro (por exemplo, dispensa de licitação para regularização).
Entendemos que, embora a regularização fundiária seja importante, ela não é um objetivo em si. Ela deve ser uma ferramenta a serviço de uma estratégia de ordenamento fundiário para a região, a qual deve levar em consideração sua história, suas vocações, necessidades e limitações. Não conseguimos, no entanto, enxergar qual a estratégia que vem norteando as propostas apresentadas pelo Governo Federal. Todas falam em simplificar leis para diminuir prazos e aumentar o número de hectares “regularizados” a cada ano, mas nenhuma fala sobre o que fazer com as terras assim “regularizadas”. Para evitar a repetição do caos em novas fronteiras, a regularização deverá seguir os princípios abaixo elencados:
Incorporar ao patrimônio da União e dar destinação às terras públicas devolutas, com um prazo definido;
Reconhecer e assegurar prioritariamente os direitos territoriais coletivos de populações indígenas, quilombolas e extrativistas em geral, evitando outorgar títulos individuais em áreas onde vivam essas populações e exista demanda pelo reconhecimento do uso coletivo;
Ser executada em total consonância com a Política Nacional de Áreas Protegidas e em articulação com os órgãos federais e estaduais responsáveis pela identificação e criação de unidades de conservação, dando prioridade a essa destinação;
Ser orientada por planos de ordenamento territorial, como o são os Zoneamentos Ecológicos Econômicos (ZEEs) estaduais. Assim, seria evitada a ocupação privada de áreas de interesse para conservação ou outras finalidades públicas;
Eliminar subsídios, cobrando de todos a aquisição de terras públicas. O pagamento pela terra incentivaria o investimento para aumentar a produtividade do uso do solo nas áreas já desmatadas. A doação de terras, ao contrário, continuaria estimulando o desmatamento para expandir a produção em terras baratas;
Respeitar os princípios e objetivos da Lei de Gestão de Florestas Públicas (Lei Federal 11.284/06), evitando a destinação de terras para uso agropecuário onde seja identificada a vocação para atividades florestais;
Contribuir para diminuir o desmatamento e aumentar a capacidade de controle e monitoramento das florestas situadas em imóveis particulares, facilitando a sua regularização ambiental;
Evitar a concentração de terras e o estímulo para novas ocupações de terras públicas, punindo os grileiros e as ocupações de má-fé;
Assinam:
Amigos da Terra Amazônia
Conservação Internacional
Conselho Nacional de Seringueiros – CNS
Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional - FASE
Grupo de Trabalho Amazônico - GTA
Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia - IMAZON
Instituto Socioambiental – ISA
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
WWF Brasil
(ISA, 21/11/2008)