Na década de 60 havia no mundo 80 milhões de pessoas que passavam fome todos os dias. Estávamos no auge do capitalismo industrial e do avanço das empresas transnacionais que se expandiam por toda parte para dominar mercado, controlar matérias-primas e explorar a mão-de-obra barata nos países periféricos. Nesse contexto, propuseram a "revolução verde". Prometeram acabar com a fome. E até deram o premio Nobel da Paz a seu maior propagandista. Seu verdadeiro objetivo era, no entanto, introduzir uma nova matriz produtiva na agricultura, baseada no uso intensivo de insumos industriais, como máquinas, fertilizantes químicos e agrotóxicos. A produtividade por hectare se multiplicou. A produção total aumentou quatro vezes no mundo. Mas a fome não acabou! E os famintos passaram de 80 para 800 milhões de pessoas. Agora, cerca de 70 países dependem das importações para alimentar seu povo. Na verdade, esse modelo serviu apenas para concentrar o controle da produção e do comercio agrícola mundial em torno de não mais de 30 grandes empresas transnacionais, como a Bungue, Cargill, ADM, Dreyfuss, Monsanto, Syngenta,Bayer, Basf, Nestlé, etc.
Durante a década de 90, com o domínio do capital financeiro, essas empresas cresceram ainda mais, porque o capital financeiro sobrante injetou nelas muito dinheiro de fora da agricultura. E assim, elas compraram outras empresas, dominaram mais os mercados, e se concentraram em numero ainda menor.
Mais recentemente, o mundo foi avisado de outras noticias ruins. O petróleo como fonte de energia dominante no século XX, estava com os dias contados. Suas reservas finitas e não devem alcançar a 30 anos. E os cientistas alertaram de que estava em curso um processo de aquecimento global, fruto da forma consumista e irresponsável do uso dos bens naturais, que colocava em risco a sobrevivência da humanidade.
Diante dessas denuncias, o grande capital internacional moveu-se. Formou-se uma aliança diabólica entre as empresas petroleiras, automobilísticas e as transnacionais do agro, para irem aos países do hemisfério sul, com abundancia de terra, sol e água, para propor a produção dos agro-combustíveis. Que eles chamam enganadoramente de biocombustíveis. Assim, nos últimos cinco anos, milhões de hectares antes cultivados para alimentos ou controlados por camponeses, passaram para as mãos de grandes fazendeiros e empresas para implantar monocultivos de cana, soja,milho, palma africana, girassol. Tudo para produzir etanol ou óleo vegetal.
Repete-se a manipulação da revolução verde. As melhores terras e mais próximas dos portos deixaram de ter alimentos, para produzir energia para os automóveis da classe média dos Estados Unidos, China e Japão. Como o preço do etanol tem como parâmetro os elevados preços do petróleo, a taxa media de lucro na agricultura subiu de patamar e puxou consigo o preço médio de todos os produtos alimentícios. Ou seja, a população em geral consumidora de alimentos, teve que ajudar a pagar a taxa media de lucro que os capitalistas e fazendeiros impuseram em função da produção do etanol.
E mesmo assim, não será resolvido o problema do petróleo nem do aquecimento global. Os cientistas nos advertem de que o problema do aquecimento e da poluição está diretamente relacionado com o grande número de veículos utilizados no transporte individual. E que para substituir apenas 20% de todo petróleo ora consumido, teríamos que utilizar todas as terras férteis do planeta.
Já estávamos vivendo uma situação anômala na produção e preços dos alimentos, quando eclodiu a crise do capital financeiro. Muitos desses capitalistas, detentores de volumosas somas de capital financeiro, na forma de dinheiro, ou na forma de capital fictício (títulos do tesouro, debêntures, cartas de hipotecas...) com medo de perderem tudo, correram para aplica-lo nas bolsas de mercadorias a futuro. E para os países periféricos comprar bens de natureza, terra, energia, água, etc.
As conseqüências em todo mundo, desse movimento do capital é que hoje os preços dos produtos agrícolas não estão mais relacionados com os custos de produção, nem com os volumes de oferta e demanda. Agora, os preços dos alimentos oscilam rapidamente para cima ou para baixo, sob a força exclusiva da especulação praticada pelos capitalistas nas bolsas de mercadorias. Ou pela força do controle oligopólico que as empresas transnacionais exercem sobre o mercado mundial de produtos agrícolas. Ou seja, a humanidade está nas mãos de meia dúzia de empresas transnacionais e de grandes especuladores. Resultado: segundo a FAO, os famintos passaram de 800 para 925 milhões em apenas dois anos! E milhões de camponeses da Ásia, África e América Latina, estão perdendo suas terras, e migrando.
Diante disso a Via campesina, que reúne dezenas de organizações camponesas de todo mundo, propõem uma mudança radical na ordem econômica da produção e comercio dos alimentos. Defendemos a tese da soberania alimentar. Ou seja, que em cada região, país, os governos apliquem políticas públicas que estimulem e garantam a produção de todos os alimentos necessários pela população que ali vive. Não há nenhuma região do mundo, impossibilitada de produzir seus próprios alimentos por condições climáticas. Como já explicou o saudoso Josué de Castro na década de 50, a fome e a falta de alimentos não é uma condição geográfica ou edafoclimática, mas sim resultante de relações sociais de produção.
Defendemos de que a humanidade precisa encarar os alimentos como um direito de todo ser humano. E deixar de tratá-los como mercadoria, para dar lucro às empresas transnacionais. E estimular em todos os paises o fortalecimento da produção camponesa, única forma de fixas as pessoas no interior, e produzir alimentos sadios sem agrotóxicos.
Podemos pregar governantes surdos. Mas sem as mudanças radicais, as contradições e os problemas sociais só aumentarão e, algum dia, explodirão.
(Por João Pedro Stedile *, IPS, Adital, 18/11/2008)
* Membro da coordenação nacional do MST e da Via campesina Brasil