Encomendado pelo governo britânico, o estudo coordenado pelo economista Nicholas Stern mudou o tom do debate sobre as mudanças climáticas decorrentes da ação humana ao ser publicado em 2006. Ao lado do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, da Organização das Nações Unidas (ONU), e do documentário do ex-vice-presidente dos EUA Al Gore, ganhadores do Nobel da Paz em 2007, a pesquisa serviu de alerta definitivo à opinião pública mundial sobre as perspectivas tenebrosas do aquecimento global.
Em visita recente a São Paulo, Stern subiu ainda mais o tom de seus alertas: a situação é mais grave do que os cenários projetados anteriormente, e a geopolítica do clima será especialmente perversa com os mais pobres, países e populações. Serão afetados com maior freqüência e intensidade pelas secas, inundações, furacões e tufões, decorrentes do aquecimento das águas oceânicas. A produção mundial de alimentos tenderá a cair nas principais regiões produtoras do mundo, o Brasil incluído, elevando os preços internacionais. O derretimento das placas polares elevará o nível dos oceanos, colocando em risco as populações litorâneas. Caso prevaleça a postura adotada até aqui de regras frouxas para os países desenvolvidos e sem metas a cumprir para os em desenvolvimento, afirma o economista, o século XXI entrará para a história como o século das “ondas migratórias massivas” e das disputas nacionais e regionais por água e alimentos.
Se a situação era grave há dois anos, agora ela é gravíssima. “Os cenários traçados em 2006 subestimaram o ritmo de crescimento das emissões, especialmente nos países em desenvolvimento, como China e Índia. Os perigos agora são maiores”, afirmou Stern, que hoje estima o “prejuízo global” decorrente da inação em até 30% do PIB mundial. Na análise anterior, a conta chegaria, pelo pior cenário, a 20% das riquezas produzidas internacionalmente ao longo de um ano. O economista estima que é preciso gastar anualmente entre 1% e 2% do PIB mundial, algo entre 600 bilhões e 1,2 trilhão de dólares, para reduzir as emissões a níveis toleráveis. “Os países desenvolvidos precisam mostrar aos em desenvolvimento que o crescimento econômico com baixa emissão de carbono é possível”, diz Stern. Na avaliação do economista, os emergentes, por sua vez, terão de encarar metas a cumprir, como ocorre hoje com os mais ricos.
Essa conta terá de ser paga na sua maior parte pelos países mais poluentes, EUA, Europa e Japão à frente. Hoje, a emissão anual per capita nessas nações chega a 24 toneladas de CO2 – a meta defendida por Stern é baixar esse número para cerca de 2 toneladas até 2050, pouco menos do que o Brasil emite hoje, principalmente por conta das queimadas na Amazônia e no Cerrado. Para os desenvolvidos, abraçar a “saída Stern” representará um corte de até 80% nas emissões.
Apesar de as perspectivas serem críticas, há algumas boas novas no debate internacional sobre o tema. A saída de George W. Bush e seus aliados da Casa Branca em janeiro próximo é a principal. Sem os neocons no comando, o lobby da indústria automobilística e do petróleo perderá força e espera-se uma mudança de orientação dos EUA em relação às negociações internacionais, marcada até aqui por uma desabrida resistência em aderir ao Protocolo de Kyoto. Além de desqualificar os estudos que relacionam a atividade humana ao aumento das temperaturas globais, Bush atrapalhou o debate internacional ao defender a utilização de tecnologias bizarras – e milionárias, bem ao gosto do proponente – para lidar com a questão. Coisas como instalar espelhos gigantescos em “pontos estratégicos” do espaço, de modo a reduzir a incidência dos raios solares. Ou poluir a estratosfera com partículas de enxofre, de modo a esfriar a Terra. Para o bem da humanidade, essas idéias mirabolantes sairão da agenda norte-americana.
Barack Obama, em seu lugar, traz consigo um plano que está sendo chamado de um “New Deal Verde”, em referência ao plano de Roosevelt para reerguer a economia dos EUA após a crise de 1929. Como antes, o principal objetivo será criar o maior número de empregos. O plano, afirma Obama, inclui a reconversão energética para reduzir a dependência dos combustíveis fósseis, a principal fonte de emissões nos países desenvolvidos. “Investiremos 15 bilhões de dólares ao ano na próxima década em energias renováveis, criando 5 milhões de empregos verdes”, afirmou.
A proposta de Obama conta com o apoio crescente de economistas de renome. Jeffrey Sachs, do Instituto da Terra da Universidade Colúmbia, considera fundamental a saída ambiental. “É necessária uma gigantesca reengenharia da indústria automobilística norte-americana, que pode ir à falência antes de ter a chance de recuperação, a menos que uma consistente estratégia público-privada seja colocada em prática”, afirmou Sachs, em referência à crise que atingiu em cheio a General Motors, a Chrysler e a Ford. “A estratégia deverá incluir o apoio federal em troca de uma grandiosa, histórica e decisiva reconversão para veículos energeticamente eficientes.”
A análise de Stern segue a mesma direção. O economista inglês considera que os países do G-20 deveriam usar políticas fiscais de aumento dos gastos públicos, ora em discussão, no sentido de privilegiar os projetos econômicos “sustentáveis” do ponto de vista ambiental. “A crise pode ser boa para os investimentos de longo prazo em infra-estrutura, com juro baixo e queda dos custos. É preciso aproveitar os projetos com potencial para transformar a economia com baixa emissão de carbono”, afirma.
A segunda boa notícia vem da China, que nas últimas semanas deu sinais de que pretende mudar a direção de sua política ambiental, marcada até aqui pela permissividade em nome do crescimento econômico acelerado. Nos últimos anos, o gigante asiático aproveitou a posição brasileira nos foros internacionais para escapar das metas obrigatórias de redução de emissão.
Alguns especialistas, como o físico brasileiro José Goldemberg e mesmo o economista Stern, defendem que, a partir de 2009, todos os países sejam forçados a reduzir suas emissões. Lançado em junho, o primeiro plano chinês pretende reduzir em 20% o volume de emissões, mediante o acréscimo de fontes renováveis de energia. Para os críticos, como Goldemberg, o plano não passa de uma “carta de intenções”. Assim como seria também o plano apresentado pelo governo brasileiro em setembro. No evento em que participou ao lado de Stern, Goldemberg defendeu que os países desenvolvidos considerem os biocombustíveis inclusive para gerar empregos. O etanol criaria 700 postos de trabalho para cada função da indústria do petróleo, calcula o físico. A postura mais amena de atores importantes em relação aos acordos internacionais não mascara o fato de a conjuntura internacional ser extremamente desfavorável ao meio ambiente. A começar pelo fato de muitos países, a exemplo dos EUA, simplesmente ignorarem as prescrições de Kyoto. Recentemente, algumas nações européias, como a Itália e a Polônia, se manifestaram publicamente contra a redução impositiva das emissões de gás carbônico.
No caso brasileiro, a queda da atividade econômica tende a reduzir o fôlego financeiro das empresas para arcar com políticas ambientais. Ao mesmo tempo, a crise internacional começou a afetar o apetite de grandes empresas localizadas em comprar créditos de carbono das regiões emergentes, a principal ferramenta de Kyoto para enfrentar o aquecimento. Por esse instrumento financeiro, as empresas poluidoras “compram” o direito de emitir CO2, contribuindo, por exemplo, com milhões de dólares em projetos de reflorestamento capazes de captar da atmosfera gás carbônico. Os créditos valem enquanto as empresas investem para se tornarem menos poluentes. Ao menos um efeito colateral da crise poderá ser benéfico ao meio ambiente, a um custo humano nada desprezível. À medida que as economias dos países desenvolvidos desacelerem ou entrem em recessão, como é o caso da Inglaterra desde a semana passada, cairá a emissão de gases de efeito-estufa. Fenômeno semelhante ocorreu com a Rússia nos anos 90, quando o país enfrentou o “lado B” da globalização, uma forte crise econômica decorrente da turbulência iniciada na Ásia.
Marcada para dezembro do próximo ano, a 15ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança Climática, reunirá os países signatários do protocolo para discutir as metas da segunda fase do acordo. As primeiras metas estabeleceram o porcentual de redução para os países desenvolvidos em 2012: cerca de 5% em relação a 1990.
Um dos principais especialistas em clima, Carlos Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), integrante do painel da ONU, chamou a atenção recentemente para os riscos decorrentes da turbulência financeira na conferência agendada. “A recessão reduzirá o consumo de petróleo e carvão e poderá criar uma falsa sensação de tranqüilidade”, afirmou o cientista. Para Nobre, o Brasil deve se concentrar na redução do desmatamento da Amazônia, responsável por 55% das emissões brasileiras de CO2. Trata-se de uma vantagem considerável em relação a outros países, especialmente os desenvolvidos. “Reduzir o desmatamento na Amazônia não terá nenhum impacto no ritmo da economia brasileira”, avalia.
(Por Luiz Antonio Cintra, Carta Capital, 19/11/2008)