Qual a disponibilidade de terras para ampliar a produção de alimentos e energia, para a reforma agrária, para o crescimento das cidades e a instalação de obras de infra-estrutura no Brasil? Para o cidadão comum, o país tem muita área disponível. Na realidade, não. Segundo pesquisa realizada pela Embrapa Monitoramento por Satélite, a rigor, em termos legais, apenas 7% do bioma Amazônia e 33% do país seriam passíveis de ocupação agrícola. Talvez menos.
Áreas protegidas pela legislação ambiental e indigenista
Em primeiro lugar, a pesquisa mapeou e quantificou o alcance territorial da legislação ambiental e indigenista com base em dados do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) do Ministério do Meio Ambiente (MMA), da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). A pesquisa considerou todas as Unidades de Conservação (UCs) federais e estaduais criadas até Junho de 2008. As UCs e Terras Indígenas (TIs) somam cerca de 1.950.000 km2, ou 46% do bioma Amazônia. No país, elas totalizam hoje cerca de 2.294.000 km2, ou seja, pelo menos 27% do Brasil. Apenas 11 países (Rússia, Canadá, Estados Unidos, China, Austrália, Índia, Argentina, Cazaquistão, Sudão, Argélia e Congo) possuem área territorial superior a das UCs e TIs do Brasil. Se fosse um país, esse território protegido teria área superior à superfície individual de mais de 180 países do mundo.
As áreas protegidas já representam mais da metade dos Estados do Pará (55%), Amapá (54,5%) e Roraima (52%). Em valores absolutos, as maiores áreas estão no Amazonas (750.482 km2) e Pará (683.123 km2) e as menores no Rio Grande do Norte (16 km2) e Sergipe (201 km2). Todos esses números estão subestimados, pois não se incluíram as RPPNs, as quase 2.000 áreas militares, as UCs municipais e outras categorias de áreas protegidas.
Áreas de Preservação Permanente
A pesquisa da Embrapa considerou parte das duas principais categorias de Áreas de Preservação Permanente (APPs): as associadas ao relevo e à hidrografia. Existem superposições de limites entre UCs e TIs e entre elas e as diversas categorias de APPs. Um sistema de informações geográficas buscou estimá-las. Foram descontadas rigorosamente todas as superposições de categorias e restou como área disponível para ocupação “legal” no bioma Amazônia cerca de 1.455.000 km2 (35%). Os outros 65% estão destinados às UCs, TIs e APPs. No Brasil, APPs e áreas protegidas ocupam pelo menos 4.748.000 km2, cerca de 56% do território nacional.
No bioma Amazônia, a área total a ser destinada à reserva legal seria da ordem de 1.165.000 km2, cerca de 28%. O conjunto do alcance das legislações ambientais e territoriais coloca na ilegalidade boa parte das atividades econômicas regionais. Ou seja, dos 4.240.605 km2 do bioma Amazônia, menos de 7%, cerca de 291.000 km2, estariam legalmente disponíveis para uma ocupação intensiva agrícola. Para um uso intensivo, o Pará, por exemplo, dos seus cerca de 1.236.000 km2, dispõe legalmente de menos de 70.000 km2, cerca de 5,5% de seu território, os outros 94,5% estão sob o alcance da legislação ambiental e territorial. Amapá e Roraima dispõem de menos de 6% e Amazonas, Acre e Rondônia na faixa dos 7%. No país, isso representa uma “reserva legal” teórica de cerca de 1.900.000 km2, um pouco mais de 22% do território nacional. A área disponível para ocupação no Brasil é, então, de cerca de 2.800.000 km2. Isso corresponde à área já ocupada apenas por pastagens. O alcance da legislação ambiental e territorial é de pelo menos, 67% do Brasil.
Agravamento dos conflitos territoriais
Do lado ambiental existem propostas de criação de novas UCs. O mapa das Áreas Prioritárias para a Conservação da Biodiversidade concluído em 2.000, depois de dois anos de pesquisas e consultas coordenadas pelo Ministério do Meio Ambiente com o apoio de ONGs nacionais e internacionais.
As áreas consideradas como alta, muito alta e extremamente alta para conservação prioritária da biodiversidade somam mais de 3.000.000 de km2 ou 36% do Brasil. Caso essa demanda fosse atendida no sentido de criação de mais unidades de conservação de diversas categorias ou de outras formas de ocupação e restauração ambiental, esse conjunto, somado às áreas protegidas existentes e descontadas as superposições, ocuparia cerca de 5.222.000 km2 ou 61% do território nacional, sem contar as APPs e a reserva legal que incidem sobre o restante.
Há propostas de criação e ampliação de terras indígenas. Segundo a FUNAI, além das 488 terras indígenas aqui consideradas, outras 123 ainda estão por serem identificadas, não havendo estimativa de suas áreas. Além disso, a FUNAI registra várias referências “a terras presumivelmente ocupadas por índios e que estão por serem pesquisadas.”
Soma-se a essas expectativas, toda demanda recente de áreas a serem destinadas a quilombolas. Segundo a Fundação Cultural Palmares existem 1170 comunidades registradas, num total de cerca de 3 mil mapeadas. A área reivindicada tem sido estimada em 250.000 km2.
Enfim, existe a necessidade crônica de terras para assentamentos rurais, regularização fundiária, colonização e reforma agrária, sob responsabilidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e do Ministério do Desenvolvimento Agrário, superiores a 700.000 km2.
A soma dessas demandas provavelmente ultrapassa as dimensões do território nacional, sem considerar-se a ocupação já existente.
Ao mesmo tempo, a expansão das fronteiras econômicas prossegue e será ampliada pelas demandas crescentes das cidades, pela expansão da agricultura para a agroenergia e a produção de alimentos, pela integração rodoviária e energética com países amazônicos e pela implementação das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do Governo Federal.
Legalidade versus legitimidade
Embora várias leis, decretos e resoluções e iniciativas visassem a proteção ambiental, elas não contemplaram as realidades sócio-econômicas existentes, nem a história da ocupação do Brasil. O impasse entre legalidade e legitimidade no uso e ocupação das terras deve se agravar face as demandas e expectativas por mais terras por parte de ambientalistas, indigenistas, movimentos sociais, agricultores etc. Questões de governança territorial e impasses na gestão desses conflitos já chegam ao Supremo Tribunal Federal.
Para o ordenamento territorial, a impressão é de que o Brasil acabou. A prosseguir o atual alcance e desencontros da legislação territorial, o quadro de “ilegalidade” e o confronto entre a legitimidade de demandas sociais e econômicas e a legalidade, todos perdem. Perde-se também, sobretudo, a perspectiva de qualquer tipo de desenvolvimento sustentável.
(Por Evaristo Eduardo de Miranda*, Eco21, 18/11/2008)
* Doutor em Ecologia, Chefe-Geral da Embrapa Monitoramento por Satélite