No intuito de promover o etanol brasileiro, vendendo a imagem de sua imaculada sustentabilidade, o Ministério brasileiro das Relações Exteriores convocou para os dias 17 a 21 de novembro uma Conferência Internacional intitulada “Biocombustíveis como vetor do Desenvolvimento Sustentável”. Na oportunidade, o subsecretário-geral de Energia e Alta Tecnologia do Itamaraty, coordenador do evento, embaixador André Amado, acaba de rejeitar em bloco qualquer alegação de existência de trabalho escravo no setor de produção de açúcar e álcool. Disse-se “um pouco indignado” pela campanha de “denegrimento” (sic) que visaria o setor com base em denúncias infundadas e confusões conceituais cuja origem não chegou a detalhar.
Conforme dados do Ministério do Trabalho, de janeiro de 2003 a outubro de 2008, 25 operações do Grupo Móvel de Fiscalização, integrado por inspetores do trabalho, procuradores do trabalho e policiais federais, resgataram de condição análoga à de escravo 6.779 trabalhadores em canaviais dos estados de Goiás (6 casos), São Paulo (4), Alagoas, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul (3 em cada), Rio de janeiro (2), além de Ceará, Minas Gerais, Paraná e Pará (1 em cada).
O Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho é instrumento capital no enfrentamento ao trabalho escravo; tem merecido desde sua criação, em 1995, os elogios de inúmeros especialistas, entre outros da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Sua atuação independente já resultou na libertação de mais de 32.500 brasileiros, a maioria deles a partir de 2003 (82% do total) quando a fiscalização foi intensificada.
A mudança crucial nestes anos foi o crescimento brutal das ocorrências flagradas no setor sucro-alcooleiro: a proporção de trabalhadores libertados de situação análoga à de escravo passou de 10% do total no período 2003-2006 (1.605 resgatados) para 51% em 2007 (3.060) e já está em 52% nos primeiros 10 meses de 2008 (2.114). Para os mesmos períodos, os flagrantes no setor passaram de 1% do total a 5% e 9%. No acumulado do período 2003-2008, as ocorrências comprovadas na cana-de-açúcar – atividade geralmente concentrada em extensas plantações - representaram 26% dos libertados e 3% dos casos flagrados, enquanto chegavam a 33% dos libertados e 60% dos casos na pecuária. Lavouras de grãos e carvão vegetal somaram outros 22% dos libertados e 22% dos casos.
120 anos após a Lei Áurea ninguém se orgulha por tais números. A preocupação é com a erradicação efetiva de uma prática que, contraditoriamente, o MRE reconhece no seu website[i], qualificando-a como “residual”’, ao aludir à libertação de “apenas” 289 cortadores de cana em canaviais paulistas. Passos significativos foram dados nos últimos anos, particularmente a partir da divulgação da conhecida ‘lista suja’ (atualmente com 4 integrantes do setor sucro-alcooleiro) com seus dissuasivos desdobramentos práticos: cortes de financiamentos, vedação de contratos, suspensão de negócios ao longo das cadeias produtivas envolvidas. Um Pacto Nacional contra o trabalho escravo, com mais de 200 empresas e instituições signatárias, bem como a adoção recente de vários Planos e leis estaduais corroboram o esforço nacional para a erradicação do trabalho escravo, também reafirmado no 2° Plano Nacional preparado pela Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE) e lançado há pouco pelo Governo Federal.
Sem surpresa - se considerados os interesses em jogo - as tentativas para desacreditar e derrotar a política nacional de combate ao trabalho escravo não faltaram nestes anos: Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a 'Lista Suja', bloqueio de mais de 13 anos contra a aprovação da PEC 438/2001 ‘do confisco das terras’, ataque virulento, porém fracassado de um grupo de senadores após a fiscalização da Usina Pagrisa (PA).
O escândalo é o Ministério das Relações Exteriores juntar sua voz a um restrito coro formado por setores da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA) e seus representantes na bancada ruralista do Congresso.
O escândalo é um Ministério (MRE) desmerecer a ação corajosa e isenta conduzida por outros membros do mesmo Governo (MTE, MJ, SEDH) e o Ministério Público do Trabalho e não provocar nenhuma reação oficial.
Ao contrário das afirmações do embaixador Amado, a política nacional de erradicação do trabalho escravo, inclusive no setor canavieiro, se baseia em fatos, não em alegações. E o conceito de trabalho escravo orientando a qualificação destes fatos não é nem confuso, nem vago. É definido pela Lei 10.803/2003 e amparado em Convenções internacionais ratificadas pelo Brasil, particularmente junto à OIT. E está sendo fiscalizado por servidores preparados e isentos. Conforme esclarece o procurador do trabalho Luis Camargo, na formulação atual do Art. 149 do Código Penal, a condição análoga à de escravo é o gênero, sendo suas espécies o trabalho forçado e o trabalho degradante. Com isso, claramente, o legislador brasileiro enfatiza não apenas a supressão da liberdade individual do trabalhador, mas, sobretudo, a garantia da dignidade deste mesmo trabalhador.
Não há argumento para mitigar a caracterização de situações em que, transportados e alojados pior que animais, pressionados pelo pagamento por produção e pela corrida desenfreada por produtividade, cortadores de cana são obrigados a trabalhar até à exaustão, em jornadas ilimitadas, com registro de várias mortes. Sem levar em conta este custo, não há como dissertar sobre as vantagens comparativas do açúcar e do etanol brasileiro no mercado global.
A Comissão Pastoral da Terra recusa a opção enganosa que querem nos impor entre produzir a contento ou lutar por dignidade, e denuncia a perversa manobra em curso. Voltamos a questionar: será que, em nome dos imediatos interesses do setor dos agro-combustíveis, a ele tudo deve ser permitido? Baixar a guarda neste momento no combate à escravidão, por mero oportunismo mercantil, não prepara dificuldades bem piores para o país? Qual é a palavra do Governo sobre isso?
Não deveria o Brasil buscar nas oportunidades de que dispõe no mercado mundial um “vetor” para corrigir de vez as conhecidas mazelas de um modelo de desenvolvimento incompatível com as universais exigências de dignidade no trabalho (bem como de sustentabilidade ambiental)? Ou, por teimosa cegueira, preferimos que concorrentes se valham contra nós da arma que lhes oferecemos?
Maiores informações:
Xavier Plassat – CPT Araguaia/Tocantins e coordenação da Campanha Nacional da CPT de Combate ao Trabalho Escravo – (63) 3412-3200 / 9221-9957
José Batista Afonso – CPT Marabá – (94) 3321-2229 / 9141-8484
Marluce Melo – CPT Nordeste II – (81) 8893-4176
Carlos Lima – CPT Alagoas – (82) 9127-5773
Cristiane Passos ou Marília Almeida – Assessoria de Comunicação da Secretaria Nacional da CPT - (62) 4008-6406
(Coordenação Nacional da Comissão Pastoral da Terra, 17/11/2008)