Seres geneticamente modificados possuem uma ampla gama de aplicação científica. O aumento da produtividade e o controle mais eficaz de pragas no setor agrícola já são uma realidade. Há mais de 10 anos são produzidos clones animais e, atualmente, muito se fala sobre o poder de cura das células-tronco. No entanto, pouco se comenta sobre o potencial de elaboração de vacinas inteligentes que essas técnicas possuem. Nesta área, pesquisadores do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp desenvolvem vacinas baseadas em bactérias com DNA remodelado.
O projeto, coordenado pelo professor Marcelo Brocchi, do Departamento Microbiologia e Imunologia, é ambicioso. Seu grupo desenvolve microorganismos geneticamente modificados capazes de induzir respostas imunológicas no hospedeiro. Um animal que recebe a linhagem mutante desenvolvida no IB se torna apto a combater futuras ações de bactérias patogênicas daquela espécie, protegendo-o dessa doença. Vale dizer que todo esse processo se dá sem que o hospedeiro sofra com a virulência da bactéria modificada, já que trechos apagados do DNA dela atenuam tal característica.
Vacinas como essa trabalhada no IB diferem bastante das feitas com antígenos purificados. São várias as situações em que microrganismos vivos atenuados têm a capacidade de induzir uma resposta imune protetora mais efetiva do que a administração de um único antígeno purificado”, comenta o biólogo. “As exceções são as doenças nas quais a virulência do microrganismo é determinada por um fator de patogenicidade principal, como no caso do tétano”.
Isso acontece porque a maioria dos microorganismos causadores de doenças apresenta múltiplos fatores de patogenicidade e a indução de proteção está diretamente relacionada à resposta imune contra diferentes antígenos. Além disso, microrganismos atenuados são geralmente mais efetivos na indução do sistema imune associado às mucosas. Este aspecto é importante, uma vez que muitos patógenos iniciam a infecção do hospedeiro por esta via.
Esclarecido isso, parte-se para a escolha da equipe de Brocchi pela Salmonella enterica como base de seus estudos. Isso se deu devido às características biológicas desse microorganismo. Essa bactéria é capaz de invadir e proliferar no interior de células do sistema imunológico, justamente as responsáveis pelo desencadeamento da resposta imune.
Além da ação direta da salmonela sobre o sistema imunológico, o fato do genoma de várias linhagens desse microorganismo já ter sido seqüenciado também pesou na sua escolha, já que isso faz com que genes potencialmente envolvidos na sua patogenicidade sejam conhecidos pelos pesquisadores.
A novidade da pesquisa de Brocchi não está no uso da salmonela como carreadora de antígenos, mas na escolha dos genes alvo que atenuarão a virulência bacteriana. Esse passo é essencial no desenvolvimento de linhagens vacinais, uma vez que o desafio maior deste tipo de estudo é encontrar um equilíbrio ideal no grau de atenuação da virulência.
Uma linhagem mutante não deve apresentar riscos à saúde do hospedeiro após a infecção. Mas, por outro lado, sua estrutura interna precisa se manter estável ao ponto do sistema imunológico do organismo atacado ainda a reconhecer enquanto agente estranho e induzir uma resposta imune. “Este desafio tem sido o grande motor de nosso projeto”, revela Brocchi.
O início de tudo
Depois de selecionar o microorganismo que terá o genoma modificado, os biólogos da Unicamp tiveram que escolher e dominar uma técnica de recombinação genética, no caso deles o sistema Lambda Red. “A otimização desta tecnologia para uso com salmonela levou nove meses para ser concluída em nosso laboratório e foi parte do tema da dissertação de mestrado do pesquisador Guilherme M. T. Mendes”, lembra Brocchi.
Uma vez feito isso, a etapa seguinte foi selecionar seqüências alvo no genoma de salmonela que, uma vez deletadas, poderiam atenuar a virulência do microorganismo. Através do uso do sistema de recombinação Lambda Red, trechos de DNA foram “deletados”, abolindo os potenciais riscos à saúde do hospedeiro durante a colonização pelas linhagens atenuadas de Salmonella enterica.
O próximo passo foi confirmar a ocorrência das deleções por PCR e seqüenciamento gênico. Uma vez que o seqüenciamento tenha confirmado a deleção, pôde-se partir para testes em camundongos. Nesses testes, as bactérias mutantes foram inoculadas em animais para verificar a atenuação da virulência. “Percebemos que os animais permaneciam saudáveis ao longo do experimento. As linhagens mutantes parecem ter um bom nível de segurança”, observa o coordenador das pesquisas.
O último teste de eficácia da bactéria geneticamente modificada consistiu em desafiar os animais “vacinados” com uma dose letal da linhagem selvagem de salmonela. Camundongos “vacinados” individualmente com duas linhagens mutantes desenvolvidas no IB sobreviveram após o desafio com a linhagem patogênica, indicando a eficácia do microorganismo produzido pela equipe na indução de resposta imune protetora.
Essas linhagens mutantes passam atualmente por processos de registro de patente, enquanto outras cinco estão em fases de testes com animais. “Os resultados alcançados até aqui são promissores, mas um extenso percurso ainda precisa ser percorrido até chegarmos ao uso dessas linhagens como vacinas”, ressalta Brocchi.
Proteção
Apesar da pesquisa coordenada por Brocchi se tratar de ciência básica, interessantes aplicações podem ser trabalhadas a partir desse estudo financiado pela Fapesp. Segundo o professor do IB, através do emprego de metodologias de clonagem molecular, genes podem ser inseridos nas linhagens mutantes de salmonela para expressar proteínas heterólogas (não pertencentes ao microorganismo). Isso permite que, em tese, a salmonela expresse qualquer tipo de antígeno possível, protegendo o organismo contra outras doenças, além da infecção causada pela própria salmonela.
Isso permite que uma grande variedade de vacinas contra mazelas típicas do ambiente brasileiro sejam estudadas. “Sendo a Unicamp uma instituição pública de pesquisa, as linhagens vacinais produzidas por nós poderão ficar à disposição de outros centros de pesquisas que se interessem em dar seqüência aos estudos. Nós já fazemos isso em uma parceria com o professor Fabio Trindade Maranhão Costa, aqui do IB. Nesse estudo buscamos desenvolver uma linhagem vacinal de salmonela que expresse antígenos do parasita causador da malária”, explica Brocchi.
Os resultados do estudo coordenado por Brocchi também podem trazer benefícios econômicos ao país. O pesquisador conta que até pouco tempo atrás as linhagens modificadas de salmonelas tinham que ser adquiridas em centros norte-americanos ou europeus. “Neste caso, se produzíssemos algo com valor comercial aqui, seria necessário fechar acordos comerciais com os institutos detentores das linhagens. O desenvolvimento desses microorganismos em nosso território garante maior independência às pesquisas brasileiras”.
Por último, o pesquisador do IB ressalta que, embora sua pesquisa não trate diretamente da produção de vacinas contra doenças humanas (nenhum teste foi feito em indivíduos da nossa espécie até o momento), essa linha de pesquisa abre interessantes frentes de trabalho. Um dos pontos mais importante é trabalhar quais antígenos as linhagens de salmonela podem expressar. Outra linha de pesquisa pode se ater às diferentes formas de expressão do antígeno em questão, buscando uma reposta imunológica mais efetiva. A isso tudo se soma o potencial de qualificação de profissionais em diferentes áreas da biologia como a microbiologia básica, a genética de microorganismo, a tecnologia de DNA recombinante e a imunologia. “É preciso ter conhecimento em diferentes áreas para se desenvolver um projeto dessa espécie. Nesse contexto, a parceria com diferentes grupos de pesquisa é fundamental”, finaliza Brocchi.
Câncer
A salmonela tem sido usada também em pesquisas que buscam tratamentos contra o câncer. Brocchi fala que ela é uma bactéria que tem tendência a se direcionar e se multiplicar muito bem em massas tumorais. Há vários estudos, inclusive com testes em humanos, que mostram reduções de massa tumoral em razão do uso de linhagens atenuadas de salmonela. As linhagens vacinais produzidas no IB podem ser trabalhadas, no futuro, em pesquisas dessa espécie.
(Por Luiz Paulo Juttel, Jornal da Unicamp, 14/11/2008)