Quando se pensa em visitar a Bahia, um dos primeiros lugares que vêm à cabeça é a Chapada Diamantina, no centro do estado. Conhecida pela gama de atrativos para o ecoturismo e recheada de cavernas, a região passa por um momento difícil. No dia 3 de outubro, foram avistados os primeiros focos de incêndio da temporada dentro do parque nacional, com 152 mil hectares de campos rupestres, Mata Atlântica e Cerrado.
Há cerca de um mês, no entanto, as chamas ganharam força. Resultado: cerca de metade da área ocupada pela unidade de conservação já virou cinza. Trata-se da maior tragédia ambiental de sua história. “Todo o impacto poderia ter sido minimizado. Mas a divisão do Ibama e a criação do Instituto Chico Mendes deixaram todas as unidades de conservação federais órfãs”, diz Cézar Gonçalves, analista ambiental do Parque Nacional da Chapada Diamantina.
A situação entrou, faz tempo, em estado de emergência. “É um verdadeiro Inferno de Dante”, relatou Gonçalves há cerca de duas semanas. De lá para cá, o cenário só fez piorar, o que levou o servidor a enviar uma carta de desabafo carregada de emoção para os endereços eletrônicos de pessoas próximas. O teor era de profunda decepção com a atitude do governo federal, diretamente responsável pela falta de controle dos incêndios.
“A verdade é que a gente faz de conta que administra um parque nacional. Ou alguém em seu juízo normal pensa que uma área com 152 mil hectares, com mais de 100 famílias morando dentro, cercada por cinco cidades que, de alguma forma, dela se utilizam para atender a suas necessidades, pode ser administrada por cinco analistas ambientais e está tudo bem?”, indaga Cézar no texto. Logo depois, ele diz que a omissão do ICMBio e do Ibama em relação às áreas protegidas do país é tão grande, que o parque perde o sentido de existir.
Em conversa com a reportagem, o servidor explicou que a divisão do Ibama é uma das maiores culpadas pela situação da Chapada Diamantina. Segundo ele, o Chico Mendes começa apenas agora a montar uma estrutura para cuidar das unidades de conservação federais. “As pessoas se desdobram lá em Brasília, é preciso dizer isso. Mas não têm condições de trabalho”, reclama.
Ele tem razão. O PrevFogo, setor do Ibama que cuida da prevenção e combate a incêndios, mostrou eficiência mínima neste caso. Enviou, há 15 dias, os primeiros (e até agora únicos) três funcionários para coordenar as ações dos brigadistas voluntários e contratados na Chapada Diamantina. “Eles são muito competentes. Mas deveriam ter chegado antes, é preciso haver uma estratégia anterior de combate. Quando foram enviados, o incêndio já estava incontrolável”, diz Gonçalves.
A ajuda prestada pelo ICMBio é ainda mais insignificante: apenas um servidor, lotado na Reserva Biológica do Una (BA) foi enviado para ajudar nos combates. O completo descaso do governo na gestão daquele parque nacional, criado por decreto em setembro de 1985, leva o analista ambiental de 39 anos a pensar em alternativas.
“Acredito que, se não conseguimos implantar um modelo, é preciso mudar. Por isso levanto a hipótese de acabar com o parque e criar uma floresta nacional em seu lugar. Assim, atividades como mineração, fundo de pastos, produção de mudas nativas e moradia no interior da unidade seriam legalizadas. E não perderíamos o trabalho feito até agora”, afirma, para depois completar que não pretende levantar esta bandeira, mas apenas fazer com que as pessoas discutam novos paradigmas.
A situação das brigadas
Hoje, representantes do Ibama de Brasília estão reunidos com a chefia do parque nacional, Corpo de Bombeiros de Lençóis (principal cidade da Chapada Diamantina) e Secretaria Estadual de Meio Ambiente da Bahia. O encontro acontece tarde demais.
Atualmente, há três grandes focos de incêndios: um na região sul, próximo ao município de Ibicoara; um no centro, no município de Mucugê e outro ao norte, entre Palmares e Lençóis. No combate ao fogo, há cerca de 200 brigadistas, 42 contratados pelo Ibama, quatro aeronaves cedidas pelo estado e dois helicópteros.
Para tentar ajudar no confronto com as chamas, a aeronáutica enviou, na última quinta-feira, um Hércules, avião que pode carregar até 13 mil litros de água. No mesmo dia, o chefe do parque nacional, Christian Berlinck, se mostrou otimista. “Acredito que, até segunda (ontem), com a ajuda do Hércules, o fogo já tenha sido totalmente debelado”, disse na ocasião. Não foi o que aconteceu. “Os gestores tomam medidas de emergência, o que nem sempre é o ideal. O Hércules é enorme, joga água aqui e volta para reabastecer em Salvador. É um trâmite de três horas, pelo menos”, adverte o paulista Abroaldo Vasconcelos, o “Jubileu”, que vive há nove anos na região e coordena a brigada voluntária do Vale do Capão.
De acordo com Jubileu, que também é presidente da rede Via Condutor, responsável por gerir todas as associações de brigadistas da chapada, o governo não erra apenas na falta de estratégia e pequeno número de pessoal enviado. O principal problema, explica, é a demora em viabilizar os equipamentos necessários para os combatentes – como coturnos, óculos, bala-clavas – e o apoio logístico de alimentação e transporte.
“Nunca sabemos quando levarão alimentação, água, ou nos tirar da mata. Normalmente, uma brigada deve trabalhar de 12 a 14 horas por dia na linha de fogo e depois é preciso que haja a troca de equipe. Mas não tem estratégia, dinâmica de transporte. Somos o front, é preciso existir um planejamento por trás e não há”, relata Jubileu, que passou dias seguidos no meio da vegetação combatendo os incêndios na última semana. Acabou resgatado. Segundo ele, o trabalho é mesmo difícil, com relevo altamente acidentado. Mas não há explicações para deixar os brigadistas saírem de suas casas com tênis e camiseta para o combate. Haja amadorismo governamental.
Apesar das críticas diretas aos servidores que trabalham no parque, Jubileu recebeu apoio de Cézar Gonçalves. O analista também reclamou da falta de equipamentos de proteção pessoal (chamados de EPIs) e relatou que apenas os brigadistas contratados receberam o kit completo. Mesmo assim, os coturnos (botas) não servem para a missão, pois a empresa que ganhou a licitação promovida pelo ICMBio enviou um material de baixa qualidade. O assunto está sendo resolvido na justiça. O resultado é que as trocas de equipamentos são constantes, o que impede que um grande número de servidores trabalhe ao mesmo tempo. “Já mandamos (para Brasília) diversas vezes listagens e mais listagens com as relações dos voluntários, mas nada! E temos 150 caras apagando fogo dentro da UC sem equipamento”, escreveu Gonçalves, em sua carta.
Os impactos ambientais
“O chefe do parque é culpado, o presidente do ICMBio é culpado, o PrevFogo também. O órgão é incompetente. É uma catástrofe anunciada. Apresentamos projetos, desde a prevenção dos incêndios, estratégias de monitoramento, fizemos um planejamento de quais municípios não têm brigadistas voluntários para priorizar na contratação, mas ninguém fez nada”, diz Jubileu.
A resposta de César Gonçalves é imediata. Para ele, as sugestões só não foram implementadas porque surgiram outras melhores, como manter dois acampamentos em áreas suscetíveis ao fogo. “Mas só conseguimos fazer isso porque os fazendeiros no entorno do parque ajudaram com dinheiro. Caso contrário, nem isso seria possível. Vale lembrar que os caminhões-pipa também foram custeados por eles (fazendeiros)”, garante.
Ainda é cedo para se avaliar o impacto causado pelos, até agora, 70 mil hectares queimados. Mas as expectativas não são nada boas. O americano Roy Funch, que há trinta anos trocou a vida nos Estados Unidos para fixar moradia na Chapada Diamantina, acredita que não há ser humano capaz de controlar os incêndios. “Agora, só São Pedro”, diz o biólogo e pesquisador da Universidade Estadual de Feira de Santana. Apesar de preferir não opinar sobre os dados ambientais, explica que existem florestas dentro de formações de arenito muito altas e cobertas de pedras onde o fogo nunca chegou. Mas, desta vez, é possível que elas não tenham como escapar.
“Há também muitos focos de calor nas cabeceiras dos rios, o que destrói a vegetação e a matéria orgânica que segura a água. A Chapada é a cabeceira do Rio Paraguaçú, responsável por sustentar Salvador. Os únicos rios perenes da bacia estão aqui”, avisa Roy, preocupado com a possível falta de água causada pelos incêndios.
Não há culpados conhecidos pelos incêndios, porém, é quase certo que foram causados pelo Homem. O fogo é usado em diversas ocasiões dentro do parque: seja para formação de pasto, colher sempre-vivas ou para a caça, já que a natureza se recompõe após o incêndio e atrai animais durante a regeneração. Aliás, este é um dos principais problemas vistos por Gonçalves. As chamas foram tão intensas que pode demorar muito para a floresta retomar seu crescimento. Por isso, muitas espécies da fauna devem morrer de fome. “Toda a área do parque ao sul de Mucugê foi destruída. Isso significa que algumas espécies da flora endêmicas destes campos rupestres (com pedras) foram extintas. As aves, que estavam se nidificando, devem ter perdido suas crias”, diz o analista ambiental.
Cézar acusa o Ibama da Bahia de descaso. Célio Pinto, superintendente do escritório do órgão em Salvador, tem outra versão. “O PrevFogo já anunciou que encaminhará mais 20 brigadistas e material de combate. A ação do Ibama se completa com a ação dos órgãos estaduais. Não procede a informação de que os voluntários não têm equipamento de proteção”, afirma. Talvez por se manter na capital, Pinto não tem a dimensão da tragédia instaurada a cerca de 400 quilômetros de distância, em um dos maiores paraísos naturais de seu estado. Até o fechamento desta edição, O Eco não conseguiu contato com José Carlos, responsável pelo PrevFogo, em ação na Chapada Diamantina.
(Por Felipe Lobo, OEco, 11/11/2008)