Depois de uma hora de vôo a partir da capital Campo Grande (MS), as portas do bimotor se abrem e o calorão úmido pantaneiro nos abraça forte. Estamos em Corumbá, município de 99 mil brasileiros às margens do imponente Rio Paraguai. Do outro lado da margem, se estende a Bolívia de Evo Morales. Avançamos, no entanto, sobre terras verde-amarelas, rumo a Porto São Pedro, alcançado com mais 30 minutos dentro de um pequeno monomotor. Lá, a reportagem de O Eco se uniu por alguns dias à oitava edição do curso Estratégias para Conservação da Natureza, na carona de um barco-hotel.
O nome pode soar genérico, servindo a qualquer movimento privado ou governista, mas a empreitada carrega muita história, conta o tenente-coronel da Polícia Militar do Mato Grosso do Sul, Ângelo Rabelo. Aos 48 anos e na reserva da corporação, conta que a iniciativa vem desde 1994, voltada à formação de batalhões qualificados para a proteção do meio ambiente. Tudo fruto da batalha que varreu o Pantanal na década anterior, quando polícias enfrentaram caçadores bolivianos, brasileiros e principalmente paraguaios (veja quadro e imagens abaixo). As peles de jacarés figuravam no olho daquele furacão predatório.
“Passamos toda aquela década trocando tiros. Foram dez anos de guerrilha. Muitos oficiais tombaram. Os ‘coureiros’ ameaçavam de morte fazendeiros e suas famílias, para que silenciassem frente às caçadas. Também havia muita pesca e desmatamento ilegal, além do tráfico de animais silvestres, como a arara-azul”, disse.
O combate à criminalidade e a queda da procura mundial surtiram efeito, elevando preços e inviabilizando o mercado nacional de peles de jacaré, um dos símbolos da biodiversidade pantaneira. Do animal, retirava-se apenas o couro macio das laterais, facilmente transformado em bolsas, sapatos, cintos e outros objetos, no Brasil e exterior. Todo o resto era descartado. Além disso, milhares de peles apreendidas apodreceram nos depósitos da fiscalização ou foram queimadas. Novas leis também aumentaram a pressão sobre os atos contra a natureza. Hoje os tempos são outros, reconhece Rabelo, mas os problemas persistem. Ganharam em tecnologia e novos métodos para saquear um patrimônio de todos os brasileiros.
Aí se encaixam os cursos capitaneados pelo militar, apoiados com dinheiro ou de forma institucional por Instituto Homem Pantaneiro, Fundação Boticário, Conservação Internacional e Agência Nacional de Águas, além da Secretaria Nacional de Segurança Pública. Essa última, inclusive, já os vê como formadores de agentes que poderão ser aproveitados em ações da Força Nacional pelo Brasil afora.
Cada capacitação tem mais de cem horas e tem ocorrido sempre no Pantanal, abordando evolução do planeta e das espécies, legislação, áreas protegidas e desenvolvimento sustentável, sistema de informações geográficas, reprodução de peixes, entre vários outros pontos. Tudo é repassado por biólogos, pesquisadores, gestores públicos e ambientalistas. “Leva vantagem quem tem mais informação”, ressaltou Rabelo.
Os policiais militares também puderam se embrenhar na mata, aprendendo novas técnicas de navegação, com e sem equipamentos como o GPS (sigla em inglês de Global Positioning System, ou Sistema de Posicionamento Global). Na carona, descobrem quanto suor é necessário para se atuar na planície alagada. Este ano, foram percorridos trechos na Serra do Amolar, espetacular e inesperada cadeia de montanhas (acima) encravada no Pantanal. As matas que rodeiam a morraria são vistas como amplo viveiro de onças e outros grandes gatos da América do Sul. Este ano, cerca de 25 mil hectares, ou quase metade da área, foram torrados por incêndios, como mostrou O Eco.
As trilhas adentraram uma reserva particular do patrimônio natural com cerca de 13 mil hectares, reconhecida este ano pelo governo federal. Ela foi criada pela MMX com a compra de antigas fazendas de gado. A mineradora atua em Corumbá e pertence ao empresário Eike Batista. Dois estudos feitos no local revelaram centenas de espécies de animais e de plantas.
Entre multar e educar
A realidade em campo dos agentes ambientais é desafiadora. Entre autuar uma idosa que cria há anos um papagaio silvestre, um pescador esfomeado atuando em plena piracema (período reprodutivo dos peixes) ou um madeireiro ilegal, o bom senso aponta firme para o último, enquanto a legislação vê a todos como criminosos ambientais.
“Perdemos muitos aliados da preservação pela aplicação intransigente da lei. Os agentes precisam ter visão técnica e preventiva, entender as culturas locais, se antecipar aos problemas e definir prioridades de atuação”, comenta Rabelo. “Não somos ambientalistas ou lavradores de autos de infração, somos administradores de conflitos sócio-ambientais. Nosso papel é de proteção ambiental e transformação social”, completa o tenente-coronel Milton Nomura, da Polícia Militar de São Paulo.
Mudança de postura radical para quem, anos atrás, era treinado para combater a criminalidade ecológica com uma arma na cintura. Por tudo isso, as capacitações são cada vez mais procuradas. Este ano, apenas Amapá e Roraima ficaram de fora. Todos os outros estados enviaram oficiais, somando quarenta deles. De volta, repassarão as lições a cada batalhão ambiental.
A situação é bem diferente da registrada nos anos 1980. À época, apenas oito grupos estaduais combatiam esses crimes. A participação na Rio92 deu novo ímpeto aos policiais e, na primeira edição do curso, em 1994, já havia 14 batalhões ambientais no país.
Apesar do maior número de batalhões, os policiais militares têm atuação dificultada, conforme os relatos ouvidos pela reportagem durante o curso, por ingerências políticas, ofertas de suborno, baixos salários, ameaças, falta de integração entre corporações estaduais, poucos equipamentos ou danificados e deslocamento para atuação urbana, sempre mais cobrada pela sociedade. Além disso, a caserna pode ter ficado mais verde, mas os policias ainda não tanta liberdade para criticar a situação das corporações.
Por essas e outras que o batalhão ambiental de Mato Grosso está praticamente desativado desde fevereiro do ano passado, enquanto no Pará há menos de 150 agentes para 1,2 milhão de quilômetros quadrados. Os dois estados costumam encabeçar a lista do desmatamento da Amazônia. Seguindo pelo Brasil, verifica-se que Vitória (ES) ainda é rota pesada do tráfico de animais silvestres, enquanto que em Corumbá (MS) notas frias vendidas por comerciantes esquentam peixes capturados em quantidade acima da permitida.
O coquetel de ilegalidades apontadas pelos policiais ambientais em todos os biomas é o retrato de como o Brasil trata sua natureza: desmatamento dentro e fora de áreas protegidas, biopirataria, caça e pesca ilegais, tráfico de fauna silvestre, carvoejamento ilegal de mata nativa, maus tratos a animais domésticos, mineração não autorizada, lixões, transporte de produtos florestais sem documentação.
Força verde desprezada
As polícias ambientais e florestais somam cerca de oito mil homens no Brasil, sete em cada dez na Mata Atlântica, principalmente nos estados do sudeste. Apesar da concentração naquele bioma, o contingente pode ser um peso-pesado no combate a delitos ecológicos. O Ibama tem 1.222 fiscais no país.
Agora, as polícias militares ambientais se movimentam em busca de maior reconhecimento pelos governos. Eles avaliam que o momento político é positivo para reforçar sua atuação, afinal, em julho foi criada a figura da Guarda Nacional Ambiental. Conforme o tenente-coronel Rabelo, o melhor aproveitamento e aparelhamento desses efetivos traria ganhos reais em campo. “Nenhum país do mundo tem um efetivo desse porte dedicado ao setor ambiental”, comentou.
No Pará, por exemplo, a brigada ambiental vem tocando os bois piratas do ministro Carlos Minc para fora da Estação Ecológica da Terra do Meio. Dali, os animais seguem para São Félix do Xingu e depois para Xinguara. Em seguida, serão transportados por quem os arrematou em leilão.
De passagem pelo curso, o presidente do Instituto Chico Mendes (ICMBio), Rômulo Mello, assegurou que a estratégia do governo é justamente se aproximar das polícias estaduais para melhorar a fiscalização e gestão de áreas protegidas federais. “Isso pode trazer crescimento significativo do controle nessas unidades”, disse. A declaração do gestor ganha em sentido quando ele reconhece que o Estado vem tratando o tema de forma precária. “Nossa estrutura pública é insipiente. Tudo é muito grande (fiscalização, conservação), com exceção do nosso orçamento. Sem parcerias será impossível gerir todo o patrimônio natural”, ressaltou.
Mello comentou, ainda, que o ministro Carlos Minc pleiteia para que o orçamento da União de 2009 tenha recursos específicos para apoiar polícias ambientais e florestais e bombeiros. Boa medida, mas tudo depende de arranjos entre os governos federal e estaduais. E no ramo da política, como se sabe, o futuro muitaz vezes corre só até a próxima eleição.
Um tiro certeiro
O coronel da Polícia Militar Ângelo Rabelo (48), mineiro de Belo Horizonte e filho de militares que atuaram no Mato Grosso do Sul, não esquece aquele 3 de dezembro de 1983. Na boca da noite, verificava denúncia sobre caça ilegal na região de Nabileque, sul do Pantanal, quando assistiu a seu “piloteiro” tombar com um tiro na testa. O segundo disparo varou seu ombro direito. Apesar do ferimento, a troca de tiros foi intensa. Alguns caçadores fugiram. Outros, levados à água quando atingidos, acabaram na boca das piranhas. Rabelo sobreviveu à batalha, mas precisou de uma dezena de cirurgias e de uma temporada em São Paulo para recuperar os movimentos do braço. A imobilidade física o levou a uma reflexão sobre o quanto valiam os tiroteios e fiscalizações pontuais para a proteção do meio ambiente. Também mergulhou nos livros sobre legislação e ecologia. Aí nasceu a idéia do curso capitaneado pelo militar reservista, por onde já passaram centenas de policiais brasileiros. Rabelo já foi secretário de Meio Ambiente de Corumbá, duas vezes, fundou o Instituto Homem Pantaneiro e assessora o senador Delcídio Amaral (PT/MS), entre tantos outros feitos.
De olho no Pantanal
A família do fazendeiro Armando Lacerda habita a região há quase 80 anos. Como a maioria dos chegados ao bioma, viram o futuro no passo da boiada. Até as grandes enchentes de 1974, cerca de 16 mil cabeças de gabo se fartavam nas pastagens. Dali em diante, os negócios declinaram. A pecuária resistiu só até 1997. Nos últimos anos, Armando vem reativando as empreitadas familiares em parte dos 33 mil hectares da propriedade. Está criando alguns bois, para “controlar o capim” e alimentar bocas caseiras e de turistas vindos de vários países. “Quando a pecuária acontece sem desmatamento, sem alimentação artificial e é bem manejada, não há problema”, avalia. Seu público é formado principalmente por observadores de pássaros e pescadores esportivos. Apesar das placas que instalou em terra firme e águas, invasões são freqüentes. “Passo o ano inteiro brigando com pescador ilegal”, reclama. Também critica a liberdade oferecida ao tucunaré no Pantanal, peixe exótico e exímio devorador de filhotes de espécies nativas. No entanto, do alto da barranca do Rio Paraguai, ele vê o horizonte com esperança e peito aberto. “Isso aqui (pantanal) é a minha vida”, disse com orgulho. Para conhecer a bela “paragem” de Armando Lacerda, em Porto São Pedro, basta ligar para (67) 3232-1238 ou (67) 9648-9272 .
(Por Aldem Bourscheit, OEco, 11/11/2008)