Na madrugada da última quinta-feira, um grupo invadiu um dos laboratórios do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo e depredou o local, quebrando computadores, mostras de culturas de células e vidros. A ação foi assinada pela Frente de Libertação Animal (ALF, na sigla em inglês) com uma pixação. Também deixaram os recados “Nós voltaremos” e “Busquem alternativas” nas paredes da sala.
Esta não é a primeira vez que um grupo que luta contra o uso de animais em pesquisas age em São Paulo. Em julho passado, durante reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), membros da Vegan Staff, uma organização que “defende e luta pela libertação animal”, segundo auto designação, realizaram protestos durante todo o evento, empunhando faixas com os dizeres “Experimentos em animais atrasam o progresso da ciência”. O principal ato do grupo, no entanto, ocorreu durante o I Fórum das Comissões de Ética em Experimentação animal do Brasil, quando membros da organização jogaram uma lata de tinta vermelha na pesquisadora Regina Pekelmann Markus, coordenadora do núcleo de discussão do tema.
Em seu site, a organização afirma que escolheu “cuidadosamente” Regina como alvo de seu ataque por ela ser “a pessoa mais repulsiva” da reunião da SBPC. “A Vegan Staff.org organizou e atuou de forma cirúrgica contra todo os assassinatos ali defendidos como ciência”, diz site do grupo. Na ocasião, membros da Organização Protetora dos Animais (OPA) também empunharam uma faixa dizendo “Auschwitz ainda existe para milhões de animais”. Segundo colegas de trabalho da pesquisadora, que é judia e possui familiares sobreviventes dos campos de concentração da II Guerra Mundial, Regina ainda está muito abalada e amedrontada com o ocorrido.
Em agosto passado, a ALF também assumiu uma ameaça de bomba no campus da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A denúncia fez com que todo o quarteirão onde ficava o prédio da ocorrência fosse interditado por cerca de três horas. No ataque desta quinta-feira, os vândalos entraram pela janela do laboratório da USP, o mais fácil a ser acessado, segundo o diretor do instituto, Wellington Delitti. Os dois vigias do prédio não presenciaram a ação. Os custos da destruição são estimados em 15 mil reais, mas, para Delitti, o maior dano é científico, já que foram destruídas culturas de tecidos usadas no estudo da malária. “Felizmente as culturas não estavam infectadas”, diz o diretor. Na sala atacada não havia animais vivos.
O caso está sendo analisado pela Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância e, de acordo com a polícia, foram colhidas digitais presentes nos objetos danificados. Segundo Delitti, a universidade já solicitou a compra de novos equipamentos de vigilância, como câmeras e grades para janelas.
Debate complexo
Mais do que intensificar a segurança das salas, o que os professores da Universidade pretendem agora é retomar, com maior intensidade, os debates sobre o assunto. “Chegou a um ponto que talvez precisemos ser mais ativos, realizar cursos e palestras sobre o assunto dentro e fora da universidade”, defende Eleonora Trajano, professora de zoologia da universidade.
Segundo ela, o assunto é complexo e deve ser tratado com cuidado, no entanto, ainda falta “visão acadêmica” no modo de encarar a experimentação animal. Por isso, não são raras as situações em que os pesquisadores são demonizados pela prática. Em artigo sobre o assunto, Eleonora já defendia tal opinião. “O ataque aos cientistas que trabalham com experimentação animal apresenta ainda desdobramentos mais perniciosos e intelectualmente desonestos ao tentar comparar ou mesmo igualar esses profissionais aos portadores de uma psicopatologia conhecida como sadismo. Ou seja, cientistas não são intrinsecamente pessoas frias, egoístas e insensíveis, mas diferem de boa parte da sociedade pela fato de nortearem suas decisões finais pela racionalidade, evitando manter o compromisso com o erro e com o contraditório”.
Para Eleonora, o trabalho de algumas entidades de defesa dos animais é realmente importante para a preservação de certas espécies, como aquelas que lutam contra o uso de peles. No entanto, atos extremos como os ocorridos na universidade só demonstram que ainda há “visão restrita” da prática e dos benefícios que ela traz. “Queremos apenas trazer à tona um importante argumento, que não tem sido suficientemente lembrado: a experimentação animal resulta em benefícios em termos de diminuição do sofrimento a longo prazo, beneficiando um incontável número de indivíduos, não apenas humanos como também outros animais”, disse ainda, no artigo.
Ao contrário do que os grupos extremistas pregam, os animais não são submetidos a condições extremas de dor ou desconforto e, sempre que possível, são usados métodos alternativos de experimentação, diz a pesquisadora. Para ela, os vídeos exibidos por tais grupos para justificar suas ações e os argumentos utilizados não condizem com a realidade. “Os experimentos nazistas não foram validados pela ciência e utilizar exemplos extremos não é provar seu ponto de vista. O que eles querem é chamar a atenção”, diz Eleonora, em referência aos protestos realizados na reunião da SBPC. “Esse problema é muito mais amplo. Eles pegaram justamente a parte que se expõe, que faz isso de forma ética e que tem justificativa”, diz.
Quem também defende a discussão ampla sobre o assunto é o professor César Ades, psicólogo que há 40 anos estuda comportamento animal e hoje dirige o Instituto de Estudos Avançados da USP. Segundo ele, o tema começou a ser debatido nas universidades há cerca de 30 anos e contribuiu de forma decisiva para a discussão ética sobre o bem estar e direito dos animais. No entanto, atitudes extremas como as realizadas pela ALF só tendem a prejudicar o andamento dos trabalhos. “Condeno completamente os atos ocorridos. Jogar tinta vermelha em um pesquisador é o fim da ética...é o retorno do fundamentalismo”, defende.
Segundo ele, ao tratar do assunto é necessário levar em conta a grande maleabilidade das experimentações e da biologia animal, já que cada uma utiliza um tipo de técnica que impacta de forma diferenciada os animais e é feita para fins igualmente diversos. “Existe uma série de coisas para serem discutidas quando o assunto está em foco. [A ética na experimentação animal] é um ramo muito nobre de pesquisa e que vai mudar de dia para dia. Mas esse tipo de iniciativa extrema é ruim para os animais e para a discussão ética”, diz.
Segundo Eleonora Trajano, ainda não é possível associar o aumento no número de ataques à aprovação da Lei Arouca, sancionada em outubro pelo presidente Lula e que regulamenta o uso de cobaias em experimentos. No entanto, diante dos últimos acontecimentos, sua regulamentação se faz cada vez mais urgente.
(Por Cristiane Prizibisczki, OEco, 11/11/2008)