O Brasil voltou a discutir nesta semana um dos maiores problemas para conservação da biodiversidade marinha no planeta: a transferência involuntária de organismos através da água de lastro dos navios. A cidade fluminense de Arraial do Cabo sediou seu encontro bienal entre 4 e 6 de novembro, quando reuniu alguns dos maiores especialistas brasileiros sobre o tema que, como outros dilemas ambientais internacionais, depende de demoradas costuras diplomáticas para realmente ter efetividade. Mas os impactos não esperam.
Em 2004, a Organização Marítima Internacional (IMO, na sigla em inglês) elaborou a Convenção Internacional sobre Gestão da Água de Lastro, que prevê medidas estritas para que os navios deixem de ser vetores de invasões biológicas, capazes de afetar a saúde pública, o meio ambiente e as economias. Só que até hoje ela não entrou em vigor. É necessária a adesão de pelo menos 30 dos 74 países membros da IMO, e o equivalente a 35% da frota mercante mundial. Há quatro anos, ela foi assinada por oito países, incluindo o Brasil, mas em 2005 precisou ser ratificada. Dados da IMO mostram que até setembro de 2008, dezesseis países se comprometeram a seguir a convenção, o que representa pouco mais de 14% dos navios comerciais do globo.
Embora o Brasil ainda não tenha ratificado a convenção, o país passou a controlar o descarte do lastro quando o Departamento de Portos e Costas (DPC) da Marinha baixou uma norma em 2005 que obriga todos os navios que aportam no Brasil a comprovarem que trocaram sua água de lastro em mar aberto. Por mais que a eficiência deste método não seja uma unanimidade, espera-se que apenas organismos de água muito salgada sejam trazidos para a costa, cujo ambiente é tão diferente que dificilmente sobreviveriam.
A autoridade portuária brasileira exige ainda que os navios tenham um plano de gestão de água de lastro e apresentem um formulário. Eles estão sujeitos à fiscalização e, no caso dos navios que só navegam em águas nacionais, é necessária a troca de água no caso de cabotagem entre bacias hidrográficas, como numa viagem do Rio de Janeiro a Manaus. “A Marinha tem fiscalizado e dado multas a quem não faz essa troca, estimulando com isso que de algum modo todos passem a se adequar”, explica Alexandre Leal Neto, da superintendência de meio ambiente da Companhia Docas do Rio de Janeiro (CDRJ).
Segundo ele, para não duplicar esforços de fiscalização no mundo, as inspeções seguem uma estratégia estabelecida num “memorando de entendimento”, que divide o planeta em diversas zonas. O Brasil segue o memorando de Viña del Mar, no Chile, junto com outros países da América do Sul. Cada uma dessas zonas é responsável pela fiscalização de 15% da frota dos portos, que verifica o cumprimento de todas as outras convenções da IMO. “Eles vêem se a embarcação está com salva-vidas corretamente, se tem área de treinamento, como está a gestão do esgoto, se faz separação de água e óleo e também se trocou água de lastro no mar através de uma amostra de salinidade”, exemplifica Neto. Essa verificação é feita a cada seis meses.
O problema é que, tecnicamente, nenhum navio hoje foi desenhado para essa troca de água de lastro em alto mar. E, por isso, a prática ainda é vista como arriscada, principalmente após o acidente com o navio Cougar Ace. Em julho de 2006 a embarcação virou quando atravessava o Pacífico com quase cinco mil automóveis a bordo. Apesar do mar agitado, a perda de estabilidade do navio tem sido atribuída à troca de água de lastro.
Para o Almirante Armando Vidigal, assessor para assuntos internacionais do Sindicato Nacional de Empresas de Navegação Marítima (Syndarma), a partir de 2009 os problemas jurídicos devem começar a aparecer. “A convenção já estabeleceu datas para construção dos navios com o mecanismo de troca em mar aberto, mas não entrou em vigor. Isso vai ser um problema grande”, prevê o almirante. Tecnologias de tratamento físico-químico da água de lastro a bordo também já têm data para valer, por isso, nos últimos dois anos, a IMO tem aprovado algumas metodologias, que podem ser literalmente salgadas. “Para nós, armadores, esses equipamentos vão ser muito caros, algo na ordem de 300 a 400 mil dólares por navio”, diz o almirante. Segundo ele, os custos são equivalentes ao trabalho que será tratar, por exemplo, as cerca de 100 mil toneladas de água de lastro que carrega um graneleiro. “Os armadores vão ter que subir o frete para que eles consigam cumprir a convenção. Esta será a saída”, sugere Vidigal.
Similaridade ambiental
Dado o tamanho da frota de mundial de navios e a impossibilidade de fiscalizá-los, alguns estudos sobre similaridade ambiental entre portos começaram a ser feitos. Segundo Alexandre Leal Neto, da CDRJ, essa avaliação prévia de riscos poderia indicar se determinado navio oferece baixa ou alta probabilidade de se tornar vetor de espécies dependendo de seu trajeto, o que orientaria melhor medidas para inspecionar portos pelo mundo. Prever o risco de invasão biológica depende de fatores como clima, tamanho de determinada população de organismo, competidores nativos, disponibilidade de alimento, temperatura e salinidade, entre outros.
Um estudo realizado no porto de Sepetiba, no Rio de Janeiro mostrou que em 919 visitas registradas, 1.540 tanques de água de lastro foram descarregados de 148 portos diferentes. Este foi um dos experimentos possibilitados durante a vigência da primeira fase do Programa Globallast, da IMO, que até 2004 pesquisou seis portos espalhados pelo mundo sob o enfoque da água de lastro. Ainda de acordo com esse estudo, o Porto de Sepetiba foi considerado ambientalmente similar à maioria dos portos com quem comercializa. E isso pode ser um problema. Acredita-se que quanto mais parecidas essas condições, maiores as possibilidades de sucesso de uma introdução biológica involuntária.
Impactos à saúde e ao meio ambiente
Hoje em dia são visíveisos prejuízos ambientais e econômicos provocados pela introdução do organismo invasor mais famoso do país, o mexilhão dourado. Ele veio pela água de lastro de um navio asiático que aportou no rio da Prata, na Argentina. Sem predadores locais, a espécie exótica se tornou invasora, subiu o rio Paraná encrustando as turbinas de Itaipu, se espalhou pelo Pantanal e um de seus últimos registros foi feito em Cáceres, em Mato Grosso. Para especialistas, é grande o risco de o mexilhão adentrar pelos rios amazônicos, com mais danos imprevisíveis à biodiversidade.
Segundo a pesquisadora Márcia Chame, da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz), os vetores do cólera e da hepatite são outros perigosos visitantes que seguramente podem ser transportados através da água de lastro. “A cólera é um potencial invasor por água de lastro, mas no caso do Brasil, ela chegou aqui através de migrações humanas”, explica. No Peru foi diferente. Silvia Ziller, diretora-executiva do Instituto Hórus, conta que o vibrião do cólera chegou na costa do Peru através da descarga de água de lastro nos anos 90, depois de passar décadas erradicado na América do Sul. “O cólera contaminou os frutos do mar ingeridos pela população. Em duas semanas, 200 mil casos foram registrados. E a partir daí a doença voltou a se alastrar por 14 países. Em 1994, morreram 10 mil pessoas”, relata.
Providências tardias
De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), desde 2002 existem estudos sobre a qualidade microbiológica da água e o porto de Santos será palco de um projeto para orientar políticas públicas de prevenção e controle das bioinvasões. Além de Santos, o projeto deverá acontecer no porto de Paranaguá, no Paraná, e no Fundeadoro de Fazendinha, no Amapá. Mas ainda não saiu do papel. Aguarda liberação de recursos para contratação de instituições públicas responsáveis por realizar as pesquisas.
Independentemente da assinatura da convenção para gestão de água de lastro, Silvia Ziller acredita que o Brasil poderia estar fazendo muito mais. “Os países precisam ter um plano de contingência. Os nossos esforços para conter o mexilhão dourado, por exemplo, foram irrisórios. O melhor é não deixar as espécies exóticas invasoras chegarem, mas se isso acontecer, temos que ter no mínimo alguma capacidade de resposta”, sugere Silvia.
Apesar da baixa adesão à convenção até agora, Neto espera um efeito positivo de seu cumprimento mesmo que em apenas alguns países. “Imagine que se um navio brasileiro for para a Venezuela, que não aderiu, vai chegar lá dentro das normas. Se um navio da Venezuela vier para cá, só vai poder atracar se mostrar que está de acordo com a convenção”, diz. Por mais que tudo dependa da boa vontade dos países, já é possível observar pelo mundo movimentos a favor de um cuidado mais especial com o transporte de água de lastro.
“Na Austrália, cada estado tem uma legislação forte em relação à água de lastro porque por lá eles já tiveram problemas sérios”, conta Neto. Isso sem falar em pequenas ilhas oceânicas, que têm dado um banho de seriedade quando o assunto é meio ambiente. “A gente observa adesão à convenção de países como Quiribati, Tuvalu, Maldivas... são arquipélagos muito fragilizados por causa das consequências do aquecimento global, por isso têm sido os primeiros a aderir a todos esses instrumentos internacionais”. Que sirvam de exemplo.
(Por Andreia Fanzeres, OEco, 08/11/2008)