Há algum tempo, o papel das ONGs transnacionais, em particular na Amazônia, tem sido objeto de polêmica. Mas nem todas as intervenções nessa discussão podem ser consideradas sérias ou merecedoras de confiança. Há, contudo, notáveis exceções. Uma delas é o artigo "A Globalização da Conservação: Uma visão desde o Sul", publicado na revista Science, em agosto de 2007, cuja tradução está disponível no site do FBOMS.
O artigo, que provocou grande celeuma, questionava a política e a prática de ONGs como a Conservation Internacional (CI), The Nature Conservancy (TNC) e World Wildlife Fund (WWF), lançando dúvidas sobre as suas formas de atuação e o seu papel, principalmente nos países em desenvolvimento. Segundo o artigo, a estratégia dessas grandes ONGs transnacionais não só seria falha no seu objetivo de proteger o meio ambiente, como também acabariam prejudicando a atuação de pequenas instituições nos países em desenvolvimento. E, dotadas de grande capacidade para captação de recursos, a influência e o poder dessas organizações nesses países as levaria a ditar, na prática, as políticas ambientais.
Neste ano, foi publicado um livro que, tratando do mesmo tema, inexplicavelmente não teve ainda a mesma repercussão do artigo da revista Science. Estamos falando de "A ecologia política das grandes ONGs transnacionais conservacionistas", organizado por Antonio Carlos Diegues, professor do Programa de Pós-graduação em Ciência Ambiental da USP (PROCAM). O fato de o livro, que é uma coletânea de textos, não ter provocado um debate no interior da sociedade civil não deixa de ser surpreendente, uma vez que os argumentos apresentados são pura nitroglicerina. E, concorde-se ou não, deveriam ser objeto de um amplo debate.
Um livro contundente
Para se ter uma idéia, basta vermos trechos da introdução de Diegues, onde nos apresenta breves sumários dos capítulos:
1) “Um desafio aos conservacionistas”, de autoria do antropólogo Mac Chapin. "O autor analisa os impactos das áreas protegidas integrais sobre os povos nativos, estratégia estimulada e patrocinada pelas grandes ONGs. Mac Chapin critica a visão dominante nessas organizações conservacionistas, segundo a qual os seres humanos não são vistos como parte da equação ecológica. O autor mostra também as ligações dessas ONGs com o setor corporativo e as fundações norte-americanas, enfatizando a necessidade de uma maior transparência na prestação de contas à sociedade."
2) "O segundo artigo é constituído por duas respostas, entre as dezenas recebidas pela revista Worldwatch, em virtude da publicação do artigo de Mac Chapin, onde são mostradas as reações das ONGs criticadas (WWF), como também daqueles que apóiam as idéias do autor, como a do Amazon Alliance for Indigenous People of the Amazon Basin."
3) “Por dentro da TNC: banco de terra sem fins lucrativos arremata bilhões: filantropia faz ativos em parceria com as corporações”, de David B. Ottaway e Joe Stephens. O terceiro artigo "mostra, principalmente, a política de compras de terras para a conservação e as ligações dessa ONG com as grandes corporações norte-americanas, muitas delas grandes poluidoras e responsáveis por desmatamentos nos Estados Unidos”.
4) “Administrar democraticamente a biodiversidade graças às ONGs?”, do cientista político Daniel Compagnon. "Apresenta uma visão crítica das ONGs que apregoam uma “governança global”, como representantes da “sociedade civil”. (...) Segundo esse autor, a noção de “governança global ou multiníveis” é uma cortina de fumaça num sistema-mundo em que as próprias idéias de conservação sofrem as leis de mercado, aparecendo como um subterfúgio para os procedimentos de captação de recursos e cooptação de parceiros, escapando ao controle democrático”.
5) “Escalas nas teorias da conservação: um outro conflito de civilizações?”. Maritew Chimère-Daw, do Center for International Forestry Research, "faz uma crítica aos modelos de “grandes paisagens” usadas pelas ONGs, analisando a maneira pela qual o aumento de escala combina-se com a ideologia para produzir uma anti-agenda impermeável aos fracassos históricos da “conservação-fortaleza” (parques nacionais) em ambientes tropicais dos países do sul. Para ele aumentar as escalas é importante, mas o desenvolvimento humano deve ser colocado no centro e não em objetivos estreitos da conservação concebidos em lugares distantes do norte”.
6) “Refugiados da conservação”, de Mark Dowie, "dá o tom aos próximos artigos, nos quais se analisa o papel das grandes ONGs conservacionistas na promoção de áreas protegidas de onde as populações locais são expulsas ou tem seu modo de vida tradicional impossibilitado pelas restrições ambientais. O autor termina seu artigo afirmando que “se quisermos proteger a biodiversidade em todos os lugares do mundo, frequentemente ocupados por povos nativos de forma ainda ecologicamente sustentáveis, a história nos mostra que a coisa menos inteligente a fazer é expulsá-los de suas terras”.
7) “Expulsão para a conservação da natureza’, é resultado de uma pesquisa realizada por Dan Brockington e Jim Goe sobre o tema de deslocamento e expulsão de populações nativas de seus territórios para a criação de parques nacionais e reservas no mundo inteiro. (...) Para os autores, a relocação dos moradores de seus territórios envolve dois processos: não só a remoção forçada das pessoas de suas casas, mas também deslocamento econômico e a exclusão social causada pela legislação que leva os moradores a migrar de seus territórios em busca de melhores condições de vida. (...) A imagem de “bons rapazes globais” não é somente uma parte importante da auto-percepção dos conservacionistas, é também essencial para a imagem das grandes organizações da conservação em seus esforços de arrecadação de fundos”.
Questionamentos inconvenientes?
Como se pode observar, as críticas são graves. Mas não se pense que os artigos se limitam a lançar críticas e acusações de maneira leviana e sem fundamentação. Pelo contrário, os textos são sóbrios, com argumentos sérios e fundamentados em dados e fatos cuja veracidade pode ser averiguada. Apenas esse fato já deveria ser suficiente para suscitar um debate não só entre as ONGs ambientalistas, mas também demais organizações e movimentos sociais da sociedade civil brasileira.
É verdade que no livro, o Brasil está praticamente ausente. Mas esse fato não nos exime da tarefa de averiguar, pois as "Três Grandes" em questão - TNC, CI e WWF -, assim como outras entidades internacionais, adotam filosofias e práticas coerentes no Brasil ou em qualquer outro país, ainda que reflitam as especificidades de cada realidade nacional. Ademais, é notório que essas ONGs exercem uma influência significativa, o que é um motivo adicional para que concordemos com Diegues sobre a necessidade de realizar pesquisas sobre “a ação dessas grandes ONGs presentes no Brasil, suas estratégias e práticas conservacionistas, seus impactos sobre as políticas dos órgãos públicos, das quais participam ativamente, como é o caso do Projeto ARPA, os programas de identificação de áreas prioritárias para a conservação e, sobretudo, sobre as populações tradicionais, cujos territórios foram transformados em áreas de proteção integral com conseqüências semelhantes às que foram descritas por vários trabalhos desta coletânea". Além do caso da ARPA, poderíamos citar o Conselho Consultivo, recém-formado pelo Ministério do Meio Ambiente, que conta com a participação das ONGs em questão.
Não se trata de realizar um "julgamento" em que as citadas entidades sejam colocadas no banco dos réus. O debate posto pelo artigo da revista Science e os textos da coletânea organizada por Diegues é mais profundo. Trata-se de, ao refletir sobre os questionamentos e críticas, realizar uma auto-avaliação necessária neste momento em que a política e o papel das ONGs ambientalistas têm sido colocados em xeque.
Negar essa necessidade é como tapar o sol com a peneira. Afinal, a despeito de conquistas, avanços e de uma ampliação dos espaços institucionais de participação da sociedade civil em tomadas de decisão, temos sofrido reveses que não podem ser ignorados nem esquecidos, como os sofridos no CTNBio. E uma questão crucial que tem sido colocada é a definição e delimitação dos papéis e da relação entre os principais atores e segmentos, a saber, o poder público, os agentes do mercado e os representantes da sociedade civil. Um tempo pleno de dilemas e perguntas que, como a mitológica Esfinge, nos lança o desafio: "Decifra-me ou devoro-te".
O fato é que quando as fronteiras entre o público e o privado desaparecem já não se pode falar de "parceria" ou de "aliança". E as críticas que permeiam os textos do livro de Diegues parecem insinuar exatamente que por trás do conservacionismo de algumas ONGs pode estar a mão invisível de interesses estranhos à causa do meio ambiente.
Todas estas questões já vêm sendo colocadas, ainda que de modo tímido e restritas a listas de discussão e a pequenos círculos de ONGs ambientalistas e movimentos socioambientais. Talvez seja o momento de colocar esse debate de modo aberto, ainda que isso signifique colocar o dedo na ferida. E, certamente, concorde-se ou não com o seu conteúdo, o livro de Antonio Carlos Diegues pode proporcionar essa oportunidade. É, sem dúvida, um livro importante que deve ser lido e divulgado. Título: A ecologia política das grandes ONGs transnacionais conservacionistas, de Antonio Carlos Diegues (organizador), pela Editora Nupaub - USP
(Por Temístocles Marcelos e Rui Kureda*, Brasil de Fato, 06/11/2008)
*Temístocles Marcelos é membro da Executiva Nacional e coordenador da Comissão Nacional do Meio Ambiente da CUT; Rui Kureda é militante ecossocialista e foi assessor da Comissão Nacional do Meio Ambiente da CUT.