Um domingo de outubro, seis da manha. Começa uma viagem cujo objetivo era a participação do Fórum Carajás e da Associação Tijupá a um encontro entre moradores de comunidade vizinhas para discutir com os diretos interessados os problemas das terras naquela região, em relação ao avanço do agronegócio e da especulação imobiliária.
Primeiro um ônibus até Morros, a cerca 150 kilometros de São Luis em direção leste. Não muito longe de ali começam os campos de dunas que formam os Lençóis Maranhenses. De alguma forma, já na pequena Morros é possível sentir o cheiro seco da areia, que vai se revelando em sua brancura ao longo da estrada em direção da comunidade rural Santa Cruz, o nosso destino. Essa parte da viajem é feita no carro com Carlos e Loura, membros Tijupá, que apresentam a Amanda Freire, recém chegada no Maranhão para acompanhar as atividades do Fórum Carajás, a região indicando os rios que eles cruzam. O Una é um deles, águas verdes e rápidas. É uma terra rica em águas. Áreas alagadas e igarapés revelam essa abundancia e amenizam os efeitos do sol e do vento impiedoso. A vegetação não é alta como nas áreas de cerrado: os arbustos são menores, típicos de uma zona pré-costeira. Única arvore que domina e ergue-se alta é o buriti, a bela Mauritia Flexuosa, que ocorre unicamente em áreas brejosas e úmidas como essa. O verde brilha embaixo do sol alto no céu, de um azul compacto e sem nuvens.
Uma missa na comunidade de Santa CruzÉ Loura, apicultora, nascida em Presidente Juscelino, que indica a estrada lateral, quase imperceptível, que conduz á pequena comunidade. A placa sinalizadora, pintada à mão, está de cabeça pra baixo, como muitas coisas nesse mundo. Desceram do carro e procederam a pé na frente do carro por causa da areia onipresente que iria se levantar debaixo das rodas agressivas do carro. A entrada na comunidade devia mesmo ser feita assim, gradualmente, andando, chegando perto pouco por vez, ouvindo uma musica crescente chegar dos fundos. Duas casas de barro na esquerda, teto de folhas de palmeira de buriti, a "arvore da vida" na língua dos tupis, por sua capacidade de oferecer aos homens todas as partes de seu corpo. Na direita uma arvore solitária abriga fraternamente com seus grandes galhos horizontais dois cavalos brancos e um jeguinho de olhos pacíficos, uma moto também faz parte do circulo de meios de transportes. Uma área central aberta, com pequenas cercas de madeiras para proteger plantios, uma porca, galetos e bichanos.
Mais no fundo o lugar de onde continuava chegando uma musica ritmada: uma construção que naquele domingo de manhã iria hospedar como primeira coisa uma missa. O teto também de folhas secas e amareladas de buriti, dispostas lateralmente providenciando uma boa proteção do sol, tabuas apoiadas sobre paus fincados a fundo na areia formando os bancos. No canto do fundo um grupo de homens, na maioria idosos, com vultos marcados por rugas e olhos irônicos. Tocam pandeiros, tambores e cavaquinhos, produzindo um alegre batuque. As vozes dos cantos são principalmente das mulheres, de todas as idades, que mesmo segurando bebes ou puxando crianças sapecas, elevam a voz ao Senhor. Mas o textos não falam só de Jesus Salvador, falam também da luta do povo, das lutas dos negros e da busca de justiça, que um dia chegará. Impossível não acompanhá-los nas palmas da mão.
Vamos falar de terras?Terminada a missa, o pequeno e vibrante Inaldo, a convite do qual Tijupá e o Fórum Carajás estavam presentes, apresenta e introduz o argumento pelo qual eles vieram. As terras. Começa uma fase da discussão em que todos se viam frente a frente, para estimular os moradores a contar o que sabiam, a compartilhar o conhecimento sobre o tema delicado, que assusta e pesa sobre a comunidade como uma nuvem carregada no céu daquele domingo que já estava ficando insuportavelmente quente. Carlos e Loura começaram a falar do risco de compra das terras em breve tempo. Alertam os presentes sobre falsidades que políticos ou outros barões poderiam inventar para tranqüilizar o povo enquanto as operações de compra e venda prosseguem longe de aqui, mas vertem sobre esse exato pedaço de terra sobre o qual os pés de todos repousavam lado a lado. Não se deve acreditar nas falsas assegurações desses sujeitos, as terras são ameaçadas e esse é uma sombria realidade.
Os moradores se olham um pouco incertos, e começam a falar. "Sim é verdade -dizem- nos ouvimos isso também", Fulano contou, Beltrano confirmou, Cicrano já perdeu. Vozes começam a se sobrepor. Quem pede orientação, quem pede ação, quem ainda recua em aceitar a triste verdade. Tem até quem na comunidade sabe bem do que se trata. Uma grande construtora de São Luis, a Franere, parece ser a direta interessada. Alguém lembra também o caso da comunidade Mata dos Almaral. Lá, parece que o interessado á terra seja um português, não melhor identificado. "É um homem alto", acrescentam.
Mas os solos não são arenosos? O que querem plantar? Mayron, do Fórum Carajás, responde "para o agronegócio não existem barreiras", nem mesmo a bela areia branca, agora tão quente, sobre qual de fato todas as comunidades da região de Morros até Barreirinhas vivem, desfrutando das águas abundantes e do sol brilhante para uma agricultura que desde sempre os sustenta. Inaldo sobe no banco, os olhos mandam brasas, ele está pronto para lutar, diz. Quem esta com ele, pergunta desafiador para os próprios companheiros. Carlos confirma, não se deve ficar esperando, a realidade deve ser afrontada cara a cara, a Tijupá já se apelou ao representante do INCRA e os documentos relativos àquela área foram encontrados. Agora é ficar em cima e pressionar o INCRA para que cumpra seu dever e transfira a titularidade para quem na terra vive, e não abrir mão das terras em troca de falsas promessas. É preciso ir ate a sede do INCRA, é preciso se mobilizar. Para isso estamos lá, para afirmar que essa questão não vai se resolver sozinha, que a nuvem não será empurrada pela forte brisa marinha, mas que eles mesmos devem agir pelos próprios direitos junto ao nosso apoio.
Mas as perguntas do valente Inaldo restam suspendidas no ar abafado junto ao zumbido das muriçocas: quem está com ele? Estamos prontos? Estamos unidos? O agronegócio não tem barreiras, as brancas areias de Santa Cruz não vão parar a lenta maré destruidora do agronegócio e a rica fonte de água doce que esta logo ali, perto de nos, é um forte apelo para os eucaliptos que trazem o deserto em suas raízes.
(Por Amanda Freire *,
Adital, 05/11/2008)
* Assessora do Fórum Carajás