“Se você achar um peixe nessas beiradas do rio Cuiabá de 10 a 20 quilos, tem que pegar, tascar um beijo nele e falar: ‘Você é um herói!’, e depois soltá-lo novamente no rio”, diz, gesticulando, como se realmente estivesse pegando um peixe, Benedito Moia Filho. O que ele diz não parece exagero. Benedito e o resto dos pescadores que vendem peixes na Feira do Porto, em Cuiabá, são unânimes em atestar que os peixes sumiram daquelas águas.
A capital de Mato Grosso, fundada há 289 anos, já precisou muito do rio que deu nome à cidade para transporte e culinária, notadamente apreciada pelo sabor marcado de peixes nobres, como pacu, pintado, dourado, matrinxã e caxara. A cultura do peixe é tão importante na capital mato-grossense que até virou lenda. “Quem come cabeça de pacu não sai de Cuiabá” é uma das mais conhecidas. A antiga abundância está também nas músicas típicas, nas redes tecidas pelas artesãs de Várzea Grande e nas cerâmicas do bairro São Gonçalo Beira Rio. A diferença é que hoje são quase peças de museu.
Segundo seu Benedito, o rio Cuiabá está muito seco e a situação tem sido ruim desde que entrou em funcionamento a Usina Hidrelétrica de Manso, em 2000. “Antes, tínhamos fartura de peixe, em qualquer lugar tinha, agora precisamos descer o rio até Santo Antônio (município distante 34 quilômetros) para poder pescar”, diz. “Nós esperávamos a indenização de Furnas, mas não vai sair. O rio já não enche mais como antes, fica sempre vazio”, comenta o pescador.
Para o comerciante na Feira do Porto Manoel do Nascimento Filho (45), depois da barragem de Manso a quantidade de peixe diminuiu cerca de 70%. “Temos agora que ir pescar em Santo Antônio, Pantanal ou Barra do Bugres, no rio Paraguai, para encontrar peixe”, relata. Já o pescador e comerciante Marcos Antônio da Silva percorre a rodovia transpantaneira (MT-060) para encontrar seu ganha-pão. “Os peixes que eu pego vêm do Pantanal, na região de Porto Jofre. Lá eu encontro todas as espécies, mas a quantidade é menor e o tamanho também. É difícil encontrar peixes entre 70 e 80 quilos, até 100 quilos mais raro ainda”, comenta.
A partir da explicação do secretário-executivo do não-governamental Centro de Pesquisa do Pantanal, Paulo Teixeira, é provável que a percepção dos pescadores esteja mesmo correta. Ele diz que, como a usina serve ao Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), o controle de vazão de água é dinâmico. “As comportas vão abrir ou fechar conforme a necessidade do ONS. Temos dados científicos constatando que a construção de Manso alterou a produção de peixes no Pantanal”, relata. No entanto, Teixeira não descarta o impacto da sobrepesca no trecho do rio. “Como existe mais gente pescando do que há dez anos, hoje a pessoa tem que se esforçar mais”, completa.
A seca no rio Cuiabá também é outro sintoma de que a saúde do rio vai mal e é sentida por Antônio Batista (44), pescador desde os sete anos de idade. Segundo ele, falta fiscalização, principalmente durante a piracema (reprodução dos peixes). “Quando chega essa época, saímos do rio e ele se escancara para o pescador irregular. Os representantes do povo não estão nem aí com essa situação. Se não fosse o peixe de tanque já tinha tudo acabado”, comenta, indignado. “Tem muito pescador passando redes e usando armadilhas. Numa redada vem de 10 a 15 peixes, já no anzol a pessoa pode ficar o dia inteiro e ainda não pescar nada. Se não fiscalizarem, daqui a pouco vamos viver de quê?”, questiona o pescador e comerciante Marcos Silva.
Poluição no rio Cuiabá
Os antigos pescadores vinculam ainda ao esgoto de Cuiabá, cuja região metropolitana abriga um terço da população de Mato Grosso, o sumiço dos peixes no rio pantaneiro. “Quanto mais gente, maior o consumo e a quantidade de esgoto jogado todos os dias no rio”, lamenta o comerciante Manoel do Nascimento Filho.
Seu companheiro de vendas na feira, Benedito Moia Filho, nota que a água está poluída e os peixes nobres acabaram mesmo. “Você só vai encontrar pacupeva, curimbatá e algumas piraputangas pequenas, que são os peixes que gostam de ficar no esgoto”, conta.
É por isso que o pescador considera um tanto quanto perigoso ingerir esses peixes, especialmente nos arredores de Cuiabá. “O curimbatá tem um gosto de óleo e um sabor forte, diferente se você pescar de outro lugar”, diz Benedito Filho, que pesca desde 1987.
Apesar do que dizem os pescadores que toda a semana comercializam os peixes na Feira do Porto, o presidente-substituto da Colônia de Pescadores Z1 de Cuiabá, Carlcion Jac de Jesus, discorda. “Peixe nós temos e muito no rio. Só não temos da qualidade que os pescadores querem, como pintado, pacu, caxara e dourado”. Segundo ele, o motivo de tanta crítica recai sobre a precariedade do saneamento de Cuiabá. “O peixe some e o culpado é o pescador? Vamos tirar a boca de esgoto e deixar o rio livre”, ressaltou.
(Por Juliana Michaela*, OEco, 05/11/2008)
Jornalista em Cuiabá.