Manaus (AM) - Os assentados da reforma agrária na Amazônia se defrontam com um imenso dilema: com pouca ajuda técnica do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), têm de conseguir se sustentar sem degradar o meio ambiente e gerar gases de efeito estufa (GEE), potencializadores do aquecimento global. A tarefa não é fácil, tendo em vista urgências tais como fome, falta de educação, saúde e demais problemas locais, do tipo fundiário e de escoamento do excedente da produção. Por causa disso, o caminho mais fácil e degradante da retirada florestal para o fabrico ininterrupto de carvão acaba sendo a única saída.
Na área do assentamento Tarumã Mirim, o maior do leste amazonense, onde nos últimos onze anos 12% da cobertura florestal tombou — cerca de 4.500 hectares —, o desmate indiscriminado para alimentar o mercado carvoeiro ilegal em Manaus foi contínuo e flagrante. Segundo dados do Programa de Manejo Florestal (Promanejo), encerrado ano passado pelo Ibama, ao menos duas toneladas do produto têm sido retiradas todas as semanas, desde 2004, direto para a capital amazonense.
A venda em Manaus acontece, sobretudo, em uma região conhecida popularmente como “Boca do Emboca”, ao sul da cidade. Situada ao lado do prédio-sede da empresa Manaus Energia, que fornece eletricidade à capital, a “Boca” oferece variados preços a quem passa de carro e compra o produto, sem nem perguntar de onde vem. Adquirindo em pequenos nacos a “mata torrada” do assentamento, de quebra o cliente ainda auxilia em outro crime, o do trabalho infantil.
Meninos entre 8 e 11 anos podem ser vistos durante todo o dia no local, carregando e descarregando sacolas em meio a adultos, todos negros da cabeça aos pés por causa do pó do carvão. Tudo às claras e sem cerimônia, as sacas são vendidas entre R$ 20 e R$ 50.
É para lá, por exemplo, que vai parte da produção de Cláudio Santos (40). Ele não possui licença para produzir carvão dentro do assentamento Tarumã Mirim, mas afirma que prefere viver na clandestinidade a passar fome. Segundo ele, a opção pela atividade surgiu depois de seu fracasso com a agricultura. “Já plantei de tudo. Neste solo não dá nada se você não for orientado. O jeito é derrubar madeira para fazer carvão”, comentou.
Na mesma situação irregular está Josimar Pinheiro (45), que retrata bem o drama de quem faz carvão sem licença. Ele teve seu material apreendido no último 12 de julho. Foram confiscadas 52 sacas de carvão (1,8 toneladas do produto). A carga esbarrou no posto da Secretaria de Fazenda, instalado no início da AM-010, e foi embargada. “Antes era mais fácil. O carvão ia para Manaus em caminhões. Agora, tem de ser levado em carros menores por conta dos fiscais”, comentou.
Inoperância oficial
O governador do Amazonas, Eduardo Braga, sabe do problema e já se pronunciou sobre a possibilidade de transferir os carvoeiros para uma área maior, em outra região de Manaus, com infra-estrutura adequada e condições de higiene diferenciada. Seria o “shopping do carvão”, segundo informações da Agência de Comunicação do Governo. Sobre combater a exploração da força de trabalho dos meninos carvoeiros e estancar o tráfico de madeira do Tarumã Mirim, nem uma palavra. Enquanto isso, segue o entrave.
Segundo investigações de Roberto Lima e Rubem de Souza, do Núcleo de Eficiência Energética da Universidade Federal do Amazonas (Nefen/Ufam), há ainda questões institucionais que afligem os assentados. “As exigências do Ibama fazem com que quase todos os produtores de carvão de Manaus trabalhem na clandestinidade, tendo medo de que seus nomes e localizações sejam revelados, para não sofrerem represálias”, descreve Lima.
O mais difícil para os produtores, apontam os especialistas, são a autorização para o desmatamento, o transporte do material e a declaração de venda legalizada. Sobre esse três itens, o chefe de fiscalização do Ibama/AM, Adilson Cordeiro, disse que a fiscalização no Tarumã Mirim é feita, na maioria, via denúncias. Segundo ele, em todas as rodovias federais do Amazonas o índice de desmatamento é grande e na BR-174, onde está esse assentamento, a situação não é diferente. “De qualquer forma, a preocupação maior atualmente é com o sul e sudoeste do Amazonas (Boca do Acre, Canutama, Lábrea, Apuí e Novo Aripuanã), onde o desmatamento atingiu 250 mil hectares de florestas nos últimos quatro anos”, destacou, deslocando o debate para outra área do estado.
Além do nebuloso horizonte de mudanças, da parte do Incra nada de novo debaixo do sol. Dados atualizados de sua Diretoria de Obtenção de Terras e Implantação de Projetos de Assentamento apontam que, dos 99 assentamentos planejados pelo órgão desde a década de 1940 no Amazonas, apenas 12 foram consolidados até fim de 2007, mais de 50 anos depois do início do processo de ocupação da Amazônia. Outros 87 estão em processo de concretização pelo menos desde 1997, sem data para serem legalizados e apoiados tecnicamente pelo governo.
No Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), a estratégia adotada para combater o desmate ilegal e a produção irregular de carvão no Tarumã Mirim também é por meio de denúncias, via telefone ou Internet. Mas o Ipaam não dispõe dos mesmos “mapas de desmatamento” gerados pela atividade de sensoriamento remoto consorciado entre Ibama e Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), como também possui pouco conhecimento do volume total do carvão retirado semanalmente. Segundo o instituto, tais informações não são possíveis de serem contabilizadas no momento por falta de estrutura de pessoal.
Em meio à falta de aparelhamento e recursos humanos, continuam as atividades predatórias em Tarumã Mirim, onde fornos de carvão cada vez mais ganham espaço em meio à floresta nativa, a olhos vistos de Ibama, Incra e governo estadual.
Assentados estão sós
O Tarumã Mirim se situa na zona rural de Manaus, no quilômetro 21 da BR174 (Manaus-Porto Velho) e abriga índios da etnia sateré-mawé e assentados da reforma agrária. São 42 mil hectares de terras, onde moram cerca de cinco mil famílias oriundas do Nordeste, Centro-Oeste e interior do Amazonas, além de alguns remanescentes indígenas.
O assentamento, na opinião da pesquisadora Elisa Wandeli (foto ao lado), doutoranda pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), foi desastroso e só surgiu por conta da necessidade do Incra de arrematar verbas junto ao governo federal, na década de 1980. “O Instituto colocou pessoas na região e as esqueceu lá. E como elas nunca tiveram assistência regular do órgão passaram a explorar o meio ambiente para sobreviver”, criticou ela, que trabalha na Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias (Embrapa) Amazônia Ocidental.
Elisa taxou como negativa a abertura de estradas que interligam o assentamento à capital amazonense por conta de pressões empresariais e históricas. “A exploração madeireira foi o que falou mais alto no início. Tanto que, hoje, 60% dos lotes estão situados sobre solos arenosos, pobres para o plantio”, explicou.
“Até a água consumida em Manaus já foi afetada pelo assentamento, pois a grandiosa bacia fluvial do Rio Tarumã Mirim alimenta grande parte dos reservatórios manauaras tem sido aniquilado pelas práticas irregulares dos assentados”, indicou a pesquisadora. Ela também enfatizou a contribuição nociva da região para o total de GEEs emitidos anualmente pelo Amazonas, onde em média são desmatados 350 quilômetros quadrados de florestas por ano, o que corresponde a 3% do desmate amazônico anual, conforme o Inpe.
Há saídas
O especialista da Embrapa, Silas Guedes, é enfático ao afirmar que o modelo dos sistemas agroflorestais são uma alternativa para amenizar o caos social e ecológico em que estão mergulhados os assentados do Tarumã Mirim. Seja em geração de renda ou manutenção da cambaleante sustentabilidade planetária, estudos de Guedes apontam que culturas como açaí, cupuaçu, pupunha, araçá-boi, castanha, mogno e ingá poderiam absorver de carbono da atmosfera e ainda gerar renda aos assentados.
“Por que sistemas agroflorestais são considerados sistemas sustentáveis de uso da terra? Existem princípios de funcionamento e práticas de manejo de sistemas agroflorestais que favorecem sua sustentabilidade”, resumiu Guedes, defendendo um dos modelos de ação que atualmente está no topo do ranking de atividades que poderão ser usadas pelos agricultores familiares da Amazônia em face ao aquecimento global e à ameaça da fome.
(Por Renan Albuquerque*, OEco, 04/11/2008)
*Colaborou Elendrea Cavalcante