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complexo hidrelétrico Juruena impactos de hidrelétricas terras indígenas
2008-10-29

Índios foram induzidos a negociar compensações sobre algumas obras sem nunca ter sido informados de que havia muito mais hidrelétricas planejadas na mesma região nem quais seriam os impactos sobre a área do Rio Juruena, no noroeste de Mato Grosso. Para impedir o licenciamento de novos projetos no estado, os Enawane Nawe defendem a moratória. Um grupo de mais de 80 deles vem a Brasília no início de novembro para conversar com a Funai.

Em reunião no dia 23 de outubro com o Procurador da República em Mato Grosso, Mário Lúcio Avelar, um grupo de lideranças do povo Enawene Nawe discutiu a proposta de uma moratória para impedir o licenciamento de novos projetos de aproveitamento hidrelétrico. Os índios exigem a realização prévia de uma avaliação dos impactos que o conjunto de barragens pode causar em cada uma das bacias do Estado de Mato Grosso. Para que isso ocorra, porém, é necessário que se assine um acordo entre Ministério Público, Fundação Nacional do Índio (Funai), indígenas e Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema/MT).

Esse tipo de moratória já está em vigor em Goiás, desde 2004, quando o Ministério Público Federal e do Estado de Goiás e a Agência Goiana de Meio Ambiente e Recursos Naturais (AGMARN) celebraram Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para garantir que os processos de licenciamento de Usinas Hidrelétricas (UHEs) e Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) sejam precedidos do Estudo Integrado de Bacias Hidrográficas para Avaliação de Aproveitamentos Hidrelétricos (EIBH), com análise de impactos cumulativos, sem prejuízo à obrigatoriedade de apresentação, análise e aprovação dos EIA/RIMAs de cada empreendimento hidrelétrico.

Fogo nos galpões e equipamentos
No dia 11 de outubro, cerca de 120 indígenas da etnia Enawene Nawe incendiaram o canteiro de obras da PCH Telegráfica, na cidade de Sapezal, a 430 km de Cuiabá. Após retirarem os funcionários do local, os índios atearam fogo em equipamentos e galpões do Consórcio de Empresas Juruena Participações Ltda., responsável por um complexo de usinas a ser implantado ao longo de 110 km do Rio Juruena, entre os municípios de Sapezal e Campos de Júlio, e que integra o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal.

Desde 2002, a empresa Maggi Energia planeja instalar nove PCHs e duas usinas hidrelétricas (UHEs) no Rio. Em 2005, os empreendedores se transformaram em Consórcio Juruena, com as transferências de licença da Maggi para duas outras empresas: Juruena Participações e Linear Incorporações. Cinco projetos foram licenciados em 2007 e, na seqüência, foram licenciadas mais três das 11 obras planejadas.

Ainda em 2007 as obras de cinco empreendimentos foram iniciadas mesmo sem haver qualquer consulta aos cinco povos indígenas impactados (Paresis, Nambikwara, Menku, Rikbaktsa e Enawene Nawe), como determina a Constituição Federal. Essas PCHs terão capacidade instalada total de 91,4 MW e receberam do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) financiamento no valor de R$ 360 milhões. Desse total, a Telegráfica, com capacidade instalada de 30 MW, teve apoio do BNDES aprovado no valor de R$ 120 milhões.

O ato ocorreu após reunião entre índios e representantes da Funai, no início de outubro, na qual foi apresentado um mapa produzido pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), do Ministério de Minas e Energia, que identificou 22 novos aproveitamentos hidrelétricos com viabilidade econômica no entorno da Terra Indígena (TI) dos Enawene Nawe, num trecho de cerca de 150 km de rio, logo acima da TI. No total, o mapa levanta 53 locais para construção de futuras centrais hidrelétricas nas bacias dos rios Aripuanã e Juruena.

Apesar do grande número de projetos a serem implementados na região, e de vários poderem potencialmente impactar as TIs, nenhuma comunidade indígena foi previamente consultada sobre a possibilidade de construção dessas hidrelétricas, embora essa seja uma obrigação do órgão ambiental estipulada na Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário. Segundo Ivar Bussato, coordenador da Operação Amazônia Nativa (Opan), os povos indígenas da Bacia do Juruena só ficaram sabendo oficialmente da construção das hidrelétricas depois das licenças prévias expedidas e das obras iniciadas e, então, foram procurados pelo Consórcio Juruena para negociar a compensação financeira referente à construção das cinco PCHs.

A proposta dos empreendedores era de R$ 4 milhões e 200 mil. A contra-proposta dos índios foi de R$ 6 milhões, para as cinco etnias afetadas – R$ 1 milhão e meio para os Menku e R$ 1 milhão e meio para os Enawene, além de R$ 1 milhão para cada um dos demais povos - Paresi, Nambikwara e Rikbaktsa.

No início de outubro, os índios Paresi, Nambikwara, Menku e Rikbaktsa fecharam o combinado com os empreendedores. O povo Enawene Nawe, no entanto, voltou atrás e não aceitou o acordo - preocupado com o fato de estar prevista a construção de muito mais empreendimentos hidrelétricos na Bacia do Rio Juruena - ficando isolado politicamente.

Índios temem reação do espírito do Rio
A oposição dos indígenas à construção de PCHs no Rio Juruena não é novidade. Em dezembro de 2007, os Enawene Nawe já haviam ocupado os canteiros de obras para reivindicar estudos independentes sobre os impactos desses aproveitamentos hidrelétricos, que nunca foram realizados.

Depois do incêndio da PCH Telegráfica, os Enawene Nawe não querem mais saber de nenhuma PCH na região, muito menos de compensação financeira. O líder Daliaywacê Enawenê Nawê diz que a sua comunidade não concorda com a construção das PCHs e que não quer negociar dinheiro para a compensação ambiental, como foi oferecido pelo empreendedor. Segundo ele, que falou pelo telefone do escritório da Funai em Juína (MT), o dinheiro não vai repor o peixe e a água: “O rio é um espírito muito forte que come muito peixe e bebe muita água nos nossos rituais, temos que fazer esculturas para ele ficar feliz e abençoar a aldeia. Se houver todas essas barragens no Rio, ele vai ficar bravo e com fome e vai causar a doença nas pessoas da nossa aldeia. Nós estamos com muito medo do que pode acontecer com o nosso Rio e com o nosso povo”, afirma Daliaywacê. Ele conta que ninguém consegue explicar aos índios quais serão os impactos na rotina da comunidade - o que vai acontecer com os peixes, com as roças e com as pessoas. “A Funai deveria estar nos protegendo e está apenas atendendo aos empreendedores, negociando dinheiro. Nós queremos é que façam todas as compensações para que nada mude no rio.” Ele considera que a empresa interessada na construção das PCHs enganou os indígenas: “Disseram que seriam apenas cinco construções e já estão querendo fazer mais três PCHs perto da nossa área”, conta. “Eles mentiram pra gente a vão mentir de novo. Nós não queremos mais conversar com o empreendedor e nem que nenhum pesquisador venha aqui para estudar mais barragens no nosso rio”.

Costumes e rituais Enawene Nawe
A cada ano, junto com a colheita do milho novo, os Enawene Nawe iniciam um complexo e longo ritual, de sete meses de duração, que só termina com o plantio da roça da mandioca. É o Yãkwa. Durante esse período, reverenciam os Yakairiti, espíritos que vivem embaixo da terra, com pescas, cantos, danças e comida, numa complexa troca de sal e alimentos.

Os Enawene Nawe não comem carne e, portanto, não caçam. Muito raramente e cercados por uma série de restrições, comem algumas aves como mutum, macuco e jacamim, pegas na maioria das vezes por armadilhas colocadas no mato. O peixe é considerado um alimento nobre, fundamental para a realização dos rituais e objeto de troca nas relações sociais e amorosas.

Como conhecem os processos de reprodução e movimentação migratória dos peixes pelos rios, usam esse conhecimento para organizar as pescarias. No final do período das chuvas, entre fevereiro e março, os homens Enawene Nawe se dividem em grupos e partem para a pesca coletiva do ritual Yãkwa. Permanecem dois meses acampados e só alguns homens ficam na aldeia com as mulheres preparando o sal vegetal, limpando o pátio e os caminhos.

Nessa época, os cardumes estão migrando e os índios pescam e defumam grandes quantidades de peixes que serão levados para a aldeia e consumidos durante os quatro meses seguintes (período de cantos e danças do ritual Yãkwa).

Quando os Enawene Nawe estão doentes ou quando há qualquer outro tipo de problema, consideram que a responsabilidade é dos espíritos Yakairiti que estão insatisfeitos com alguma coisa, ameaçando levá-los ao outro mundo. No ritual Yãkwa faz-se uma troca generalizada (homens e espíritos) através dos grupos rituais, entre todos os habitantes da aldeia. Tudo visando a cumprir os ensinamentos e satisfazer os Yakairiti, de forma a, de um lado, não dar motivos para que esses espíritos ameacem a vida da aldeia e, de outro, manter a harmonia do mundo.

O rito Yãkwa (ou iyaõkwa) dos Enawene Nawe é tão importante que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) está registrando-o como Patrimônio Imaterial Brasileiro.

Saiba mais sobre os Enawene Nawe
De acordo com a antropóloga Ana Paula Lima, que trabalha há nove anos com os Enawene Nawe, não há como trocar um território e rios saudáveis por, por exemplo, criadouros de peixes, como está proposto. A atual coordenadora do GT para revisão de limites instaurado pela Funai em outubro do ano passado, que também é colaboradora do GT do Iphan para o registro do rito Yãkwa como Patrimônio Imaterial, explica que “os peixes fazem parte de uma concepção profunda de geografia fundada e habitada pelos temíveis e poderosos espíritos subterrâneos, e não há como destruir seu habitat natural sem conseqüências extremamente desastrosas. Portanto, medidas de mitigação e compensação, do ponto de vista de uma cultura como essa, na verdade não compensam nem mitigam a continuidade de toda uma relação fundante da densa máquina social, estética e ecológica como a que está em jogo para os Enawene Nawe”, diz a antropóloga. Para ela, a perda de diversidade de peixes e da salubridade do rio, “pode sim significar a destruição de seus ritos complexos e conseqüentemente da vitalidade de sua cultura e da vivacidade tão característica e reportada desse povo”. Para que não restem dúvidas a esse respeito, Ana Paula cita uma frase do chefe Kawari: “Se a destruição do habitat yakayriti prosseguir, todos irão morrer: nós, você, você, e todos vocês, iñoti (não-índios). A diferença é que nós sabemos disso, mas vocês não...”

Análise de impactos
Logo após o incêndio, o Ministério Público Federal (MPF) reforçou, na Justiça, o pedido feito em duas ações civis públicas já em curso: a suspensão das obras até que os impactos cumulativos de todas as PCHs sejam adequadamente avaliados. As obras chegaram a ser paralisadas em abril deste ano, mas a medida acabou cassada pelo ministro Gilmar Mendes, presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), após visita do governador do Mato Grosso. Veja mais aqui.

Depois da liberação das cinco obras - sem análise independente dos impactos gerados pelos empreendimentos -, a Funai liberou, em setembro, um parecer apontando irregularidades nos estudos apresentados pelos empreendedores. O parecer técnico da Coordenação de Patrimônio Indígena e Meio Ambiente (CGPIMA) da Funai - assinado pelo biólogo Marcelo Gonçalves de Lima, doutor em ecologia pela Universidade de Brasília e autor de mais de 50 pareceres na área - afirma que o principal estudo que permitiu o licenciamento do complexo de usinas do Rio Juruena (a Avaliação Ambiental Integrada - AAI, elaborada pelos próprios empreendedores, e que justificou a renovação das licenças das usinas, emitidas a partir de diagnósticos simplificados) é contraditório, incompleto e não permite estimar os reais impactos das obras ao meio ambiente e aos índios. Além disso, recomenda que o processo seja suspenso enquanto não forem feitos "estudos de impacto ambiental detalhados", tendo em vista que "o risco ambiental advindo da implementação de todos os empreendimentos supracitados no Rio Juruena não foi devidamente mensurado."

Apesar dessa recomendação interna, a Funai vem atuando na intermediação dos acordos entre os povos indígenas afetados e os empreendedores, como se o processo estivesse correto. Nos próximos dias 4 e 5 de novembro, 84 índios Enawene se reúnem com a Funai em Brasília, para discutir os últimos acontecimentos.

PCHS e licenciamento simplificado
Existe uma explosão de investimentos em PCHs no Brasil, refletido no Mato Grosso. Parte do estouro tem a ver com medidas compensatórias / financeiras como: credito fácil (Proinfa), isenção do pagamento da compensação financeira pela utilização de recursos hídricos (royalties); isenção do pagamento da taxa de pesquisa e desenvolvimento; receita bruta anual com valor inferior ao teto definido pela Receita Federal (Imposto de Renda calculado pelo Lucro Presumido) e recebimento da Conta de Consumo de Combustíveis (CCC) quando a energia da PCH substituir a geração termelétrica existente ou atender expansão de carga que seria atendida com geração termelétrica em Sistemas Isolados, além da forma simplificada de fazer o licenciamento.

O processo de licenciamento ambiental é dividido em três etapas: Licença Prévia (LP), Licença de Instalação (LI) e Licença de Operação (LO), cada uma concedida em diferentes fases. A LP aprova localização e concepção, atestando a viabilidade ambiental. A LI autoriza a instalação do empreendimento ou atividade de acordo com as especificações constantes dos planos, programas e projetos aprovados, incluindo as medidas de controle ambiental. A LO autoriza a operação comercial do empreendimento e sua emissão é condicionada a uma vistoria na qual é verificado se a central está de acordo com o que foi previsto na Licença Prévia e na Licença de Instalação e, ainda, se todas as exigências e detalhes técnicos descritos no projeto aprovado foram desenvolvidos e atendidos ao longo da implantação. O licenciamento é um ato administrativo vinculado, já que é uma licença e não uma autorização, e pode ser revogado ou cancelado, caso as condições estabelecidas pelo órgão ambiental não sejam cumpridas.

Não resta dúvida de que os impactos de uma PCH são menores do que os de uma UHE, mas da maneira como têm sido planejadas e construídas - várias no mesmo Rio -, o impacto cumulativo dos empreendimentos tem de ser colocado na conta, pois a sutil diferença entre Impacto versus Capacidade de Geração pode tender para maior em casos como o do Juruena.

(ISA, 28/10/2008)


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