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política de gestão do Pantanal carvão vegetal impactos ambientais da agricultura
2008-10-29

Depois de ter passado uma semana meio em transe, pela alegria de estar revendo o Dr. George Schaller, com quem tive o privilégio de iniciar meus trabalhos no Pantanal nos idos de 1977, conversei recentemente com o Walfrido Tomás, pesquisador da Embrapa em Corumbá, MS, sobre ameaças atuais ao Pantanal. A conversa, sobre a dura realidade que o Pantanal enfrenta hoje, foi um banho de água fria.

Além de ser um amigo de longa data, o Walfrido tem acumulado uma bagagem respeitável de conhecimento prático sobre a ecologia do Pantanal. Ele é Mestre em Ciências de Vida Selvagem, pela Oregon State University, nos EUA, e doutorando em gestão de biodiversidade, pela University of Kent. Desde 1990, tornou-se pesquisador da Embrapa Pantanal. Nós nos encontramos pela primeira vez nos campos da fazenda Jofre, em 1985, quando ele estudava a dieta do cervo-do-Pantanal.

Atualmente, Walfrido trabalha em projetos de conservação e ecologia de paisagem, utilizando levantamentos de espécies indicadoras de biodiversidade através de câmeras fotográficas automáticas, observação direta e identificação de pegadas ou outros indícios. Tem também coordenado projetos em rede que inclui estudos de relação espécie-habitat, com anfíbios, répteis, aves e mamíferos, tentando compatibilizar a conservação da natureza com a atividade pecuária no Pantanal, além de definir políticas públicas mais coerentes com a realidade ecológica, sócio-cultural e econômica da região.

Na boca do forno
Depois de ver muitos caminhões carregados de carvão vegetal em meu retorno para Corumbá, ao voltar de Porto Jofre, eu queria saber sobre os problemas de desmatamento que algumas áreas do Pantanal têm sofrido, principalmente em sua borda leste. Uma das minhas perguntas era a relação entre o desmatamento de cordilheiras e cerrados e a demanda de carvão para alimentar as siderúrgicas que vêm sendo instaladas em Corumbá, na borda sudoeste do Pantanal.  Para esclarecimentos sobre esse aspecto, conversei também com Ricardo Pinheiro Lima, chefe do escritório regional do IBAMA, também em Corumbá.

Pelos dados do IBAMA, o Mato Grosso do Sul é o maior produtor de carvão vegetal nativo do Brasil, respondendo por 44% da produção. Todo esse volume de lenha carbonizada sai, não somente da região do cerrado, mas também das bordas e do próprio coração do Pantanal, como os municípios de Corumbá e Miranda, com forte impacto por conta do desmatamento.

Teoricamente, esse carvão seria produzido através de lenha já desvitalizada, resultante de desmatamentos autorizados para plantio de pasto ou culturas alimentares. Porém, o que se observa através de imagens de satélite e de dados dos próprios produtores rurais, é que nem a fronteira agrícola nem a pecuária se expandiram tanto a ponto de justificar todo esse volume de carvão.

Segundo especialistas, a demanda por carvão vegetal das siderúrgicas do MS gira em torno de 31.000 ha anuais de plantios de eucalipto. Mas não se planta eucalipto para supri-las. Logo, para abastecê-las de carvão, a mata nativa, cuja produtividade é dez vezes menor, perde uns 310 mil hectares por ano, uma área equivalente a 217 campo e futebol.

Gado e soja
Alguns fazendeiros afirmam, categoricamente, que produzir carvão tem dado mais lucro do que criar gado ou cultivar soja. Por isso, há vários indícios de que o desmatamento ocorra única e exclusivamente para gerar lenha. O preço do carvão, em menos de 3 anos, subiu quase 100%, empurrado pela demanda na região. Além disso, parte do carvão produzido no MS tem como destinos os parques industriais de MG. Lá, muitas siderúrgicas ainda desrespeitam o Código Florestal, que estabelece prazo máximo de 10 anos para que as siderúrgicas utilizem carvão vegetal nativo, tempo suficiente para que as indústrias tivessem seu próprio suprimento de carvão por reflorestamento. Indústrias com mais de 10 anos de funcionamento continuam utilizando carvão nativo e, como não há mais mata para a retirada de lenha em Minas, Goiás ou São Paulo, os fornecedores são o Pantanal e o Cerrado Sul-matogrossenses.

E não é só. Walfrido lembra que o Pantanal enfrenta, historicamente, ameaças cada vez mais intensas, pelo aumento do uso agrícola e pecuário nos planaltos circundantes. Elas afetam o Pantanal, pois todas as atividades humanas nas bacias hidrográficas que o formam acabam por repercutir dentro da planície de inundação.

Como o ritmo de inundações é o principal fator da dinâmica do Pantanal, qualquer alteração neste sistema, seja através de mudanças no regime de águas, seja pela poluição, afeta os ecossistemas da planície pantaneira de forma sistêmica. Ao mesmo tempo, o desmatamento dentro da planície, somado à outras formas de alteração das paisagens e dos habitats, afeta a biodiversidade na região.

Ao mesmo tempo, as fazendas de pecuária tradicional se descapitalizam, a divisão de terras por herança diminui seu tamanho original e a viabilidade resultante, e a crescente onda de intensificação dos modelos de produção pecuária requer intervenções profundas na paisagem e nos habitats, através do cultivo de pastagens exóticas. Dados da Embrapa Pantanal mostram que pelo menos 14% das áreas florestais do Pantanal já haviam sido destruídas em 2004. Certamente, a área desmatada deve ter aumentado de lá para cá.  A caça ilegal, que já foi um problema muito sério no passado, hoje pode ser considerada um fator menor de ameaça. Grave é o abate indiscriminado de grandes predadores, como as onças pardas e pintadas, a pretexto de conter a predação do gado.

Paisagem alterada
Este impacto ficou claro para mim durante um sobrevôo que realizei recentemente em área que conheci no início da década de 80, e hoje está bastante descaracterizada, quase irreconhecível. São problemas que tendem a afetar os ecossistemas de forma abrangente. Dados da Embrapa Pantanal, citados por Walfrido, indicam que há uma relação bastante estreita entre produtividade pesqueira e o pulso de inundações. Alterações nos padrões de inundação levam a uma reação em cadeia que afeta todas as espécies, cujo ciclo de vida é regulado por estes padrões.

Isso inclui o ciclo de renovação de pastagens nativa, que constituem o recurso natural de maior significado econômico na região, a reprodução dos peixes, a reprodução das aves, e assim por diante. O resultado pode ser o desmantelamento das cadeias ecológicas, empobrecendo o potencial biológico do Pantanal como o conhecemos até recentemente. Resultados de estudos atuais mostram que áreas que deixam de inundar ou têm seu período de inundação diminuído de forma significativa acabam invadidas por espécies arbóreas e arbustivas, que de outra forma ficariam restritas às terras mais altas. O resultado é a mudança gradual na paisagem e a perda de qualidade das pastagens nativas para a pecuária.

A poluição do sistema hidrológico tem como resultado, muitas vezes, efeitos na cadeia trófica e degradação das condições ambientais, até mesmo para o ser humano. A Embrapa Pantanal desenvolve um projeto de monitoramento da qualidade da água que entra na planície pantaneira, em diversos pontos. Os dados mostram que a poluição já é um problema preocupante.

O abate de grandes predadores pode ser considerado um problema crônico. Mas a população de onça pintada, apesar disso, parecer ter aumentado substancialmente nas últimas décadas. As onças podem ter sido beneficiadas pelas inundações mais intensas de vastas áreas que, ao permanecerem inundadas por mais tempo, se tornaram inviáveis para a pecuária. Com isso, houve uma diminuição do conflito entre a pecuária a os predadores.

Vale lembrar que a remoção de espécies que são topo de cadeias alimentares desequilibra as comunidades animais e vegetais, levando à instabilidade do ecossistema. Sem falar que o aumento das populações de onças favoreceu o ecoturismo, sobre o qual as onças exercem uma atração quase irresistível. Entretanto, conforme apropriadamente mostrado em recente reportagem de Aldem Bourscheit, é fundamental resistir à tentação de apelar para procedimentos nada éticos, cevando onças para melhorar seu aproveitamento turístico. Essa é certamente mais uma ameaça de que o Pantanal não precisa.

Código Florestal
Outra é o risco da implantação de destilarias de álcool nas bacias hidrográficas do Pantanal. Há grande interesse na instalação destas usinas na região, cujos defensores alegam a necessidade de diversificar a economia do Estado. E sua força política está longe de ser desprezível. Mas, pelo menos até agora, tanto o Ministerio do Meio Ambiente quanto o IBAMA vêm ratificando o disposto na Resolução CONAMA n° 01 de 1985, que suspende a concessão de licenças para a implantação de novas destilarias no Pantanal.

Em nossa conversa sobre o que deveria ser feito para que estes problemas fossem resolvidos, Walfrido argumentou que eles são complexos e a sua solução requer ousadia, criatividade e inovação. O Código Florestal é praticamente impossível de ser aplicado em uma paisagem em mosaico muito diversificado e dinâmico como no Pantanal. Por este corpo de leis, o Pantanal quase todo deveria ser uma área de preservação permanente (APP), o que é uma utopia e, por isso, inviável. Assim, necessitamos de uma legislação mais condizente com as características ecológicas, culturais e econômicas da região. Até agora, este corpo de leis não foi suficiente para controlar os processos de degradação ambiental fora do Pantanal, nas bacias que o formam.

Pelo Código Florestal, as propriedades situadas na região deveriam manter 20% de sua área preservada a título de reserva legal. Porém, observa-se em todo o Mato Grosso do Sul que muitas fazendas já não possuem mais nenhum percentual de mata nativa, tendo sido desmatados até 100% da cobertura florestal. Mesmo em escala regional, uma única legislação mais abrangente não é adequada, levando-se em conta o atual estado de degradação das cabeceiras e assoreamento dos rios.

O Pantanal passa hoje também por um processo de “taquarização” alarmante. O processo de assoreamento catastrófico por que passou e passa o rio Taquari, com impactos econômicos, sociais e ambientais dentro do Pantanal, já pode ser observado em vários outros rios, incluindo o próprio rio Paraguai, a coluna dorsal do ecossistema. Assim, leis mais rígidas para conter os processos de degradação que vêm de fora, bem como leis mais adequadas para a planície, sem métricas excessivas e mais adequadas à paisagem e aos processos ecológicos fundamentais, são urgentemente necessárias.

Fazendas sustentáveis
Walfrido comenta que outro fator importante é a criatividade na definição de estratégias de gestão da pecuária, que sejam capazes de remunerar melhor aqueles fazendeiros que produzem de forma sustentável. Ou seja, sendo viáveis economicamente, melhorando a qualidade de vida das comunidades locais e garantindo a conservação da biodiversidade. Este é um aspecto também complexo, porque envolve fatores que estão além dos limites do Pantanal e das fazendas, como a cadeia dos produtos da pecuária. Falamos aqui de mercados para os produtos da região.

A saída passa pela identificação de estratégias capazes de serem adotadas pelo mercado e que resultem em maior remuneração àquele produtor que realmente garante à sociedade um Pantanal bem conservado. Vale lembrar que o Pantanal é definido na Constituição como Patrimônio Nacional. Logo, aqueles que se caracterizam como guardiões deste patrimônio merecem alguma forma de compensação pela sociedade. Talvez a aplicação de incentivos fiscais e a certificação de fazendas sustentáveis sejam saídas viáveis. A Embrapa Pantanal tem buscado isso como prioridade em suas pesquisas, segundo Walfrido.

O turismo deve também ser um indutor de desenvolvimento sustentável, mas isso precisa ser feito de forma eficiente, cuidadosa e com alta qualidade. Nada de malabarismos e usos “mercenários”, não-sustentáveis da fauna e da flora. Hoje estamos longe dessa meta, pois o turismo está muito mais baseado na pesca esportiva, com poucas experiências bem sucedidas em outras formas de turismo. Os estados e municípios deveriam primar por profissionalizar o setor, oferecer incentivos e infra-estrutura, além de mão de obra qualificada para atingir públicos mais sofisticados e exigentes. Sem isso, pouco do potencial turístico do Pantanal será aproveitado.

Estratégias para incrementar o setor turístico no Pantanal não são difíceis de se aplicar, dado o enorme potencial da região, diz Walfrido.  Corumbá quer usar o tucunaré como atrativo para pescadores durante o defeso da piracema. Os defensores dessa idéia argumentam que o tucunaré é espécie invasora no Pantanal, e por isso não deveria ser protegida, mas sim atacada. Embora seja ecologicamente correta essa afirmação, o problema está na gestão desta estratégia. Mal administrada, ela poderia fomentar a criação do tucunaré, a fim de garantir a perenização deste recurso, o que seria uma catástrofe para o Pantanal.

A pesquisa tem um papel muito claro na sociedade, que é o de mostrar caminhos, buscar soluções técnicas para problemas, e dar suporte à definição de mudanças de que a situação requer, como por exemplo, políticas públicas. Neste sentido, a pesquisa deve atuar como esclarecedora da sociedade, ajudando-a a escolher o melhor caminho para todos. A adoção de soluções indicadas pela ciência depende de vontade política e da capacidade de se disseminar os conhecimentos à sociedade, que tem força de pressão. Vale lembrar que muitas vezes, a ciência esbarra em dogmas e questões culturais difíceis de serem contornados. Em última instância, a conservação sempre vai depender das atitudes das populações locais.

Diante destes cenários, é oportuno se pensar nas iniciativas que vem sendo tomadas para dirimir estes problemas. O fato de existir um centro de pesquisas da Embrapa específico para o Pantanal todo, é uma indicação da preocupação de se buscar soluções para o desenvolvimento sustentável para a região. Juntamente com universidades parceiras, bem como outras instituições de pesquisa, muito se tem avançado neste sentido. O estabelecimento de redes de pesquisa apoiadas pelo Ministério de Ciência e Tecnologia também é uma indicação da preocupação atual com a conservação do Pantanal e com seu desenvolvimento em bases sustentáveis. O trabalho em rede tenta agregar as competências regionais para, pela primeira vez, trabalharem juntas, buscando soluções abrangentes. Segundo Walfrido, este foi um paradigma quebrado pelas redes apoiadas pelo MCT e conduzidas pelo centro de Pesquisas do Pantanal –CPP, que é uma OSCIP composta por duas universidades do MT  e seis do MS, além da Embrapa Pantanal, criada em 2002.  Por outro lado, a busca de soluções para o conflito entre grandes predadores também tem sido buscado por vários grupos de pesquisa atuando dentro do pantanal, incluindo o Ibama e várias ONGs.

(Por Peter G. Crawshaw Jr., OEco, 28/10/2008)


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