O Porto de Santos é um dos maiores complexos portuários da América do Sul. Movimentou 81 milhões de toneladas em 2007, mais de um terço de todo o comércio exterior do Brasil. Os navios que cortam o canal sinuoso entre as cidades de Santos e de Guarujá conferem grande importância econômica ao estado de São Paulo, que contabiliza aumento anual de 15% na movimentação de cargas no local. O crescimento é grande, mas o progresso quer mais. E em nome dele, espécies ameaçadas como o boto-cinza (Sotalia guianensis), a tartaruga-verde (Chelonia mydas) e a toninha (Pontoporia blainvillei) podem estar com seus dias contados.
Neste mês, o Ibama começou a tirar do papel um projeto que vem sendo discutido há vários anos: a dragagem para aprofundamento do canal do Porto, que possibilitará o aumento no trânsito dos navios com maior calado e, conseqüentemente, o incremento da movimentação econômica regional. Depois de duas audiências públicas, reuniões técnicas e revisões de documentos, o órgão federal emitiu a licença prévia do empreendimento, mesmo sabendo que em uma análise independente, a Fundação Florestal deu parecer desfavorável ao licenciamento. O órgão da Secretaria Estadual de Meio Ambiente considerou que o estudo de impacto ambiental (EIA/Rima) não tinha dados suficientes para se avaliar a viabilidade ambiental do empreendimento.
Calado para grandes navios
Os estudos elaborados pela Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp) não são simples. Em mais de mil páginas, a proposta encaminhada ao Ibama prevê o aumento da profundidade do canal, que hoje varia dos 12 aos 14 metros, para 15 metros. Sua largura também aumentará, passando dos atuais 150 metros para 220 metros. Isso permitirá a Santos operar os modernos navios de grande capacidade, chamados pós-panamax, que necessitam de pelo menos 14 metros de profundidade.
Pelo projeto, ainda será necessário dar fim a duas grandes pedras que cruzam o caminho dos navios, a Teffé, que fica próxima ao terminal de passageiros, e a Itapema, vizinha ao sub-distrito de Vicente de Carvalho. A demolição destas barreiras tem que ser feita com explosões. O volume a ser retirado é previsto em 34 mil m³. Já o volume do material dragado no aprofundamento do canal e dos berços de atracação – cujo material dominante é argila – é previsto em 12 milhões de metros cúbicos.
Em teoria, serão usadas técnicas que causam mínimo impacto ambiental, incluindo os efeitos para a população do entorno. Na prática, o EIA/Rima já dá mostras do quanto será complicado garantir esta sustentabilidade.
Impacto cumulativo
A Baía de Santos já está bastante degradada devido às atividades industriais de Cubatão. No entanto, ainda existem muitas espécies tentando sobreviver nesta área. Segundo levantamento realizado pela própria Codesp, lá existem cerca de 38 tipos de peixes, três de camarão, além de outros crustáceos e invertebrados. A região também é largamente utilizada como zona de alimentação da tartaruga-verde e de certos cetáceos, como o boto-cinza, todas com alto grau de vulnerabilidade na natureza. Isso sem falar nos outros bichos que habitam o continente e que estão na área de influência direta do porto, como pássaros e mamíferos, entre eles o próprio homem.
Os impactos que estas populações sofrerão encheria várias páginas. Alteração da qualidade do ar e níveis de ruído, mudanças na qualidade da água devido à movimentação de sedimentos durante a dragagem e disposição de rejeitos, alteração no regime das águas, redução de habitats, alteração da qualidade da água por derramamentos de óleo e graxa e assoreamento do canal são alguns deles, entre tantos outros.
Outro aspecto bastante negativo da obra, ressaltado no EIA-Rima, é a atração da fauna no local de descarte do material dragado, o chamado bota-fora. Rico em matéria orgânica morta, o sedimento serve de fonte de alimento para peixes e crustáceos, como camarão-sete-barbas e siris. Os camarões, por sua vez, atraem diversas espécies de peixes. O problema é que, não raro, estes sedimentos estão contaminados, o que torna a fauna que dele se alimenta, direta ou indiretamente, perigosa para o consumo humano e de outras espécies.
Apesar de todos os indícios de que as obras no Porto de Santos serão fatais para várias formas de vida, o EIA-Rima afirma que “os impactos que ocorrem na região podem ser qualificados como reversíveis, com uma freqüência cíclica ou descontínua, moderadamente relevantes, com abrangência local e magnitude baixa”. Estas e outras afirmações não agradaram a algumas entidades, biólogos e à própria Secretaria Estadual do Meio Ambiente.
Críticas ao projeto
Segundo o oceanógrafo Fabrício Gandini, diretor do Instituto Maramar, organização que trabalha para a gestão responsável dos recursos do mar na Baixada Santista, os estudos apresentados pela consultoria são falhos ou negligentes em vários pontos. Para ele, os principais problemas são ausência de preocupações relativas à erosão costeira, sobretudo em tempos de mudanças climáticas, e aos impactos a pelo menos quatro comunidades pesqueiras que sofrerão os efeitos diretos da lama dragada. “Sucessivas erosões na Ponta da Praia, em Santos, atestam que os estudos deveriam atentar também para esta problemática. Os programas de mitigação e compensação não são interessantes, pois obedecem a mesma lógica de sempre e não colocam a comunidade pesqueira como atores no processo”, diz.
Outra de suas principais brigas é pela mudança no local em que ficará o bota-fora. Segundo o EIA/Rima, a lama retirada do canal será despejada em uma área de 40 quilômetros quadrados e profundidade de cerca de 20 metros. Os pesquisadores responsáveis pelo documento consideram esta profundidade viável por vários motivos, entre eles “a ausência de áreas de interesse biológico especial”. De acordo com o documento, boa parte desta região é vista como área de exclusão de pesca, o que significa que aqueles que vivem dos recursos do mar não serão prejudicados em suas atividades.
Mas, segundo Gandini, a área de ocorrência do camarão, cuja pesca é tradicional entre os caiçaras, é realizada entre cinco e 30 metros de profundidade, ou seja, a área de deposição - na qual está excluída a pesca - cortará o espaço da atividade pesqueira bem ao meio. Isso sem contar na lama fina que fica em suspensão por tempo indeterminado e se espalha por vários metros além da área delimitada do descarte, afetando ostras e mariscos nos costões rochosos. Ruim para a vida marinha e para as atividades de aqüicultura.
O pescador Roberto Domingos dos Santos, que há 20 anos vive dos recursos do mar, diz ter receio do que pode acontecer com os pescadores durante a execução da obra. O problema da lama já é uma realidade nas comunidades pesqueiras, devido às dragagens rotineiras de manutenção do canal. Com o aprofundamento, o volume do material dragado aumentará em três vezes, intensificando também a dispersão e a camada de lama já existente no subsolo marinho. “Quando passamos a rede vem junto ferro, pedra e muita lama. Muitos pescadores chegam a perder seu material. Também não sabemos se estamos manuseando camarão contaminado”, reclama.
Além da possível contaminação dos pescadores, o oceanógrafo do Maramar salienta que o material contaminado chega até a costa, poluindo praias como Guaúba e do Tombo, principalmente. Em proposta enviada ao Ibama e à Fundação Florestal, Gandini sugeria que fossem feitos outros estudos para indicar a região mais propícia para a deposição do material dragado e que ela ficasse em áreas de, ao menos, 30 metros de profundidade. A sugestão não foi acatada pelo órgão federal.
Segundo o analista ambiental do Ibama, Fernando Campello, permanecerá a proposta do empreendedor. “Não há comprovação científica de que o material atinja a praia”, diz. Sobre o impacto nas comunidades pesqueiras, Campello reconhece que o documento tinha falhas, mas garante que uma das condicionantes colocadas pelo Ibama foi a realização de programas de apoio a elas.
Já para o biólogo Fábio Olmos, a questão não é somente a água contaminada no continente, mas sim outros impactos causados sobre a vida marinha pela movimentação de contaminantes, além do impacto físico de se jogar o material sobre a fauna do mar. Vale lembrar que a área fora da lha de Santo Amaro (Guarujá) foi transformada em Área de Proteção Ambiental há apenas duas semanas, tornando contraditório que o Ibama autorize o lançamento de material dragado que pode impactar em área protegida.
De acordo Olmos, parte do material com nível de contaminação mais alto, acumulado no Canal de Piaçaguera e na bacia de evolução do Porto da Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa), deverá ser sepultado em aterros “especiais” no Dique do Furadinho, área de manguezal aterrada pela Cosipa no governo Paulo Maluf e que ainda hoje é um dos passivos ambientais da empresa. “Essa parte do estuário tem toda a banda podre da tabela periódica e algo mais. No mínimo seria necessário que alguma entidade isenta monitorasse esses impactos de forma adequada” diz.
Olmos argumenta que alguns países já utilizam o material dragado de seus portos em projetos de restauração ambiental, fabricando ilhas e bancos de sedimentos que são transformados em manguezais e marismas, áreas alagadiças com vegetação próximas às praias. “Em estudos de impacto ambiental em que trabalhei, sugeri que isso fosse feito no Largo de Santa Rita a fim de reconstruir parte dos estimados 43 km2 de manguezais historicamente perdidos na região. Seria até mais barato que jogar o material fora da barra do porto. Mas como há a intenção de destruir aquela área com o projeto Barnabé-Bagres, a idéia não avançou”, diz o biólogo, em referência a outro projeto de expansão do porto.
Estado X federação
Em seu parecer, a Fundação Florestal deixa claro que as deficiências do EIA-RIMA são motivo para a revisão geral do projeto. “Diante da insuficiência de dados no EIA-RIMA, referentes a campanhas, estudos e resultados, entendemos que a avaliação da viabilidade ambiental do empreendimento fica prejudicada, principalmente no que tange à área de disposição/descarte do material dragado”, diz o documento do braço da SMA.
No entanto, o Ibama argumenta que o documento é viável. Segundo Fernando Campello, o órgão federal realizou reuniões com os empreendedores para readequação dos pontos frágeis do documento e foram definidas ações condicionantes para a continuidade do processo, como determinação dos novos pontos de monitoramento. “Essas ações serão avaliadas antes de liberarmos a licença de operação”, diz. O analista também alega que a Fundação Florestal não teve acesso aos resultados das reuniões com o empreendedor, por isso emitiu parecer discordante do Ibama.
O lobby para que a dragagem de aprofundamento do canal se concretize é grande e encontra respaldo na velha desculpa do desenvolvimento. Figuras de grande peso estão nesta briga entre progresso a todo custo e preservação da natureza, como o próprio governo federal, que planeja investir 167,2 milhões de reais do PAC na obra. Os que estão do lado do meio ambiente e da qualidade de vida provavelmente terão de sair de mansinho para não perder a luta por nocaute.
(Por Cristiane Prizibisczki, OEco, 24/10/2008)