Realizado nos dias 14 e 15 de outubro, módulo 2º do workshop “Planejando o Futuro – USP 2034” discute as características necessárias para a universidade no século 21, como a interdisciplinaridade, a internacionalização e a interação com a sociedade
Gestão, pesquisa e inovação tecnológica e o perfil da universidade do futuro foram os temas debatidos no segundo módulo do workshop “Planejando o Futuro – USP 2034”. O seminário foi preparado pela Comissão de Planejamento da USP, presidida pelo professor Glaucius Oliva, do Instituto de Física de São Carlos, e reuniu docentes, alunos, funcionários e convidados na Sala do Conselho Universitário, em São Paulo, nos dias 14 e 15 de outubro.
Joel Souza Dutra, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, abriu os debates. Ele lembrou que o desenvolvimento de uma instituição só se dá com o desenvolvimento dos profissionais que trabalham nela. Para Dutra, antes as pessoas definiam suas carreiras e permaneciam nelas até a aposentadoria. “Hoje, cada vez mais as pessoas entram e saem de um trabalho, mudam de carreira, têm carreiras paralelas. Mesmo professores universitários vêem a carreira acadêmica como uma segunda ou terceira carreira.”
Ele também ressaltou a importância de manter nos funcionários o estímulo para o desenvolvimento pessoal. Para o docente, as pesquisas mantêm os docentes estimulados, mas o mesmo não ocorre com os servidores técnico-administrativos. Dutra defendeu a criação de um sistema que pense no aprimoramento dos funcionários e premie as pessoas que realmente ajudam no desenvolvimento da Universidade.
Pedro Antônio de Melo, vice-diretor do Instituto de Pesquisa e Administração Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), destacou a complexidade da administração das universidades, lembrando que na atualidade elas são, essencialmente, instituições burocráticas, o que não deveria ocorrer. Melo definiu cinco pontos principais que deveriam nortear o desenvolvimento da USP nos próximos 25 anos. O primeiro é a “gestão da mudança”, que consiste em preparar as pessoas para lidar com as mudanças sociais e tecnológicas que vêm pela frente. O segundo é a abertura e internacionalização da Universidade, que inclui trazer professores e pesquisadores de outros países e conhecer diferentes sistemas de gestão.
O terceiro ponto diz respeito à profissionalização da gestão, criando um sistema de capacitação de docentes para essas atividades. O quarto ponto é ampliar a transferência dos conhecimentos gerados na Universidade. O quinto item reforça o compromisso social da Universidade e estabelece como objetivo das pesquisas a diminuição da miséria.
Filipe Cassapo, superintendente da Fundação Nacional de Qualidade (FNQ), conceituou o conhecimento como um recurso estratégico que agrega valor à organização. “O conhecimento não pode ser armazenado como uma coisa. Se eu tenho um lápis e alguém tem um lápis, nós temos dois. Com o conhecimento isso não acontece. Se eu tenho uma idéia e alguém tem uma idéia, nós podemos ter várias idéias. Eu posso compartilhá-la com alguém e desenvolver várias outras”, refletiu.
Interdisciplinaridade: uma das metas fundamentais da USP para as próximas décadas, segundo especialistas
O último expositor foi o diretor da Unidade de Hipertensão do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, Eduardo Moacyr Krieger. Ele destacou o grande gasto da USP com pessoal (cerca de 80% do orçamento) e lembrou que a Universidade tem 25% de seu orçamento proveniente de financiamento externo de pesquisa, mais do que muitas universidades do mundo. Mas lembrou a pequena participação das empresas privadas nesse tipo de financiamento: apenas 10% dos investimentos externos para pesquisa.
Por isso, Krieger acredita que as fontes a serem exploradas pela Universidade são as empresas de capital privado, pois não se pode esperar um aumento substancial de recursos do setor público. Lembrou, porém, que para que as empresas invistam é necessário que a USP acompanhe mais as demandas de ciência e tecnologia da sociedade.
Impacto
O debate sobre pesquisa e inovação tecnológica foi aberto pela pró-reitora de Pesquisa da USP, Mayana Zatz. Para falar das áreas estratégicas do futuro, Mayana mencionou sua recente participação no Fórum Anual de Ciência e Tecnologia, no Japão, que reuniu 750 participantes de 91 países para discutir sobre como crescer em harmonia com a natureza. Os três grandes temas identificados foram as mudanças climáticas, as fontes alternativas de energia e a relação entre biotecnologia, saúde e genética.
“Essas áreas estão interligadas. Não se pode mais pensar em ciência isolada”, disse. Os consensos, em relação à primeira, são investir em energia nuclear, desde que com segurança máxima, e nos biocombustíveis, avaliando seu potencial impacto ambiental e na produção de alimentos. É preciso também educar os chamados “ecoxiitas” para evitar refrões como “tirem o DNA da minha comida”.
Na pesquisa, Mayana defendeu que a USP deve buscar publicações de impacto, e não apenas aumentar a quantidade. É preciso também incentivar e facilitar a colaboração entre os diferentes grupos de pesquisa da USP e deles com outros de dentro e de fora do país. A pró-reitora defende também o incentivo à vinda de professores estrangeiros e à volta de cientistas brasileiros que estão no exterior.
A professora sugeriu que a USP crie um órgão para captação de recursos de agências nacionais e internacionais e na iniciativa privada. A Universidade também deve aumentar sua participação no diálogo e educação de políticos e da população, na interação com a mídia, na formulação de políticas públicas e em ações que melhorem a compreensão da ciência pelo público em geral. “Conte-me e esquecerei; mostre-me e lembrarei; envolva-me e entenderei”, disse, citando Confúcio (551 a.C.-479 a.C.).
Na graduação e na pós-graduação, Mayana defendeu a redução da quantidade de horas de aulas teóricas. “Um aluno me disse que a matéria saía da boca do professor e ia direto para o seu caderno sem passar pela cabeça de nenhum”, lembrou, arrancando risos da platéia. Para a professora, deve haver menos tempo em sala e mais aula prática, biblioteca, laboratório e campo. Mayana Zatz encerrou citando a cientista italiana Rita Levi Montalcini, Prêmio Nobel de Medicina, que vai completar cem anos em abril de 2009. “Meu cérebro vai ter um século, mas não conhece a senilidade. O corpo se enruga, não posso evitar, mas não o cérebro.”
Planeta limitado
O palestrante seguinte foi José Galizia Tundisi, professor aposentado da USP, presidente do Instituto Internacional de Ecologia, empresa de consultoria e pesquisa com sede em São Carlos, e ex-presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Coordenou também o chamado Relatório Tundisi, divulgado em 2001, com sugestões de políticas de longo prazo para as unidades de pesquisa vinculadas ao Ministério da Ciência e Tecnologia.
Os desafios globais em áreas como energia, saúde, sustentabilidade e mudanças climáticas alteraram concepções. “Passamos da noção de planeta ilimitado para a de planeta limitado”, disse. No caso brasileiro, salientou que o país ainda conhece muito pouco sua megabiodiversidade, seus mecanismos e suas interações. “Boa parte dos recursos hídricos do Sudeste vem da Amazônia. O que os 70% do PIB brasileiro localizado no Sudeste vai fazer a respeito?”, disse, citando a questão que profissionais do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia levantaram recentemente num congresso em Brasília.
Para Tundisi, uma das funções capitais da Universidade é a formação de lideranças científicas para o estado e o país. “É fundamental fazer ciência para transformar a sociedade. Ser um motor de transformação social é um dos papéis fundamentais da Universidade”, defendeu. O professor lamentou que, por uma questão cultural, o sistema de ensino brasileiro não estimule a criatividade. “Mais engenheiros têm que pensar como artistas e artistas como engenheiros”, disse. O professor também propôs mudanças nos currículos, estimulando a inter e a multidisciplinaridade. “Nunca encontrei processos disciplinares fora da universidade”, afirmou, citando casos de produção de Relatórios de Impacto Ambiental país afora nos quais trabalham em conjunto engenheiros, geólogos, biólogos, sociólogos e outros profissionais. “A USP pode encabeçar processos de mudança, porque o que acontece aqui repercute no Brasil.”
Tundisi recomendou, como mecanismos de ação, maior rapidez nas decisões e a criação de conselhos consultivos externos com os quais a Universidade se reúna para identificar necessidades e desafios. Citou sua experiência como aluno em Southampton, na Inglaterra, em que já nos anos 60 alunos e professores discutiam cenários e idéias com empresas e outros membros da comunidade. “A Universidade deve proporcionar ambientes para isso. As empresas e setor público precisam das idéias da Universidade, mas às vezes a vêem como algo um pouco enigmático. Há barreiras de comunicação, e a Universidade tem que mostrar que está conectada com os problemas sociais.”
A mesa foi encerrada com a palestra de José Fernando Perez, professor aposentado da USP e ex-diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Perez deixou o cargo em abril de 2005 e em outubro de 2006 criou a Recepta Biopharma, empresa de biotecnologia que, em parceria com o Ludwig Institute for Cancer Research, faz parte de uma rede de pesquisas para o câncer no Brasil. O professor trabalha com unidades como o Instituto Butantan e a Faculdade de Medicina da USP, em cujos laboratórios atuam pesquisadores da empresa. “Não é prestação de serviço da Universidade para a empresa. É uma parceria ganha-ganha”, disse. Para os professores, um dos ganhos é que o trabalho gera resultados publicados em revistas de impacto e apresentações em congressos internacionais.
Perez acredita que há mais investidores privados no Brasil do que se imagina. “Existe mais dinheiro do que bons projetos. Estão faltando as boas pontes”, salientou. O professor citou uma diretora do Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos, que disse numa entrevista que estava ficando difícil conseguir formar bons alunos porque eles estavam muito envolvidos com suas próprias empresas. Perez afirmou que, além de incentivar o empreendedorismo, “a Universidade tem que arregaçar as mangas e ver como melhorar a questão do financiamento”.
O professor também defendeu a necessidade de mudanças no ensino. “O sistema de pós-graduação brasileiro foi brilhante, mas hoje está superado, congelado, e precisa mudar. A universidade é perfeita para congelar as coisas, o que atende aos interesses de comodidade da corporação”, disse. Para José Fernando Perez, a melhor forma de transferência de conhecimento para a sociedade é a geração de recursos humanos de alta competência, formados na fronteira do conhecimento e treinados em pesquisa. “O papel fundamental da universidade, que não deve ser esquecido, é formar gente”, concluiu.
O futuro é multidisciplinar, não departamental
A necessidade de mudanças curriculares, que enfrentem a rigidez dos departamentos e permitam mais interdisciplinaridade e intercâmbio de alunos em instituições de dentro e de fora do país, foi uma das ênfases do painel “A Universidade do Futuro”, coordenado pelo professor Luiz Roberto de Britto, diretor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB), durante o workshop “Planejando o Futuro – USP 2034”. “Estamos vivendo mais uma revolução, a do conhecimento”, ressaltou Britto.
Sérgio Mascarenhas, professor aposentado da USP e diretor do Instituto de Estudos Avançados de São Carlos da USP, abriu sua fala dizendo que tem um “amor extraordinário pela USP, que foi a plataforma de lançamento da minha vida”. A seguir, desfiou lembranças de alguns dos lugares para onde foi lançado dessa plataforma ao longo de 52 anos: a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a Universidade Federal de São Carlos e a Academia de Ciências dos Países em Desenvolvimento (TWAS), por exemplo. No momento, está envolvido na Rede Nacional de Nanotecnologia. “A atualidade é trabalhar por projetos e temas, não por departamentos. É nas redes que se pesca o conhecimento”, disse. “A mudança é fundamental. Hoje o ciclo de vida dos produtos é curto. O do conhecimento é muito mais curto ainda.”
Aproveitando a presença da reitora Suely Vilela e de outras autoridades da USP no workshop, Mascarenhas lamentou os entraves burocráticos que dificultam a vida dos pesquisadores. Citou o caso de Marcos Pontes: “O único astronauta latino-americano quer entrar na USP, mas a burocracia não deixa”, apontou. Mascarenhas registrou a necessidade de mudanças também nas concepções jurídicas do país. “Escrevi um manifesto defendendo uma proposta de emenda à Constituição que obrigue o Supremo Tribunal Federal a ter alguém que entenda de ciência e tecnologia. O Executivo e o Legislativo já têm, falta o Judiciário”, disse, afirmando ainda que a própria Faculdade de Direito deve ter aulas sobre ciência, tecnologia e inovação.
Para Mascarenhas, é preciso “voltar à paz filosófica entre o abstrato e o real”, como na tela A academia de Atenas, em que Rafael retrata os filósofos Platão e Aristóteles. “A USP tem que ser a universidade da fusão das humanidades e da ciência”, disse. “Temos que nos respeitar mutuamente, mas nos usar mutuamente. Temos que nos reorganizar, como se a USP fosse um mercado em que você utiliza o cardápio de acordo com o que precisar. Temos muitas coisas dispersas e separadas. É preciso juntar e os departamentos proíbem isso.”
A Universidade deve apossar-se do futuro e não ter medo dele, afirmou. “Inovar e mudar são a mesma coisa. Inovar não é só publicar trabalho. Numa empresa, é ter novos negócios. Temos que ter gestão terceirizada e auditorias. Temos que chamar profissionais para isso e pagá-los melhor. Se os burocratas estão congelados, de que servem?”, perguntou. “Falo essas coisas pela razão, mas me dói no coração. Estou falando por amor à minha universidade.”
Sérgio Mascarenhas apontou alguns dos gargalos para o futuro: terceirização, concursos (“um concurso não é licitação de cebola; precisamos ter mais liberdade para escolher os professores”, disse); o Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP), que para ele “está engessado”; e a isonomia (“que não reconhece o mérito”). Para o professor, a Universidade tem que fazer ensino, pesquisa e extensão, mas não é necessário que cada indivíduo atue nos três. Mascarenhas citou problemas brasileiros como a pobreza e a violência – “temos professores que saem chorando das escolas na periferia” – e defendeu a internacionalização como forma de procurar soluções, de onde quer que elas venham.
A fronteira atual do conhecimento é não ter fronteira, disse o professor, referindo-se ao livro O mundo é plano, de Thomas Friedman. Sérgio Mascarenhas, que completou 80 anos em maio, encerrou sua palestra brincando que era “um morto-vivo falando para os jovens como vai ser o futuro, quando já não estarei aqui”, e apresentou um epitáfio bem-humorado em forma de haicai: “Aqui jaz um uspiano/ que sonhou com a utopia/ da USP no mundo plano”. Foi longamente aplaudido pela platéia.
Compromisso social
Na seqüência, o reitor da Universidade Federal do ABC (UFABC), Adalberto Fazzio, apresentou o projeto da instituição, que foi planejada a partir de 2004 e implantada em 2006. A estrutura não tem departamentos e seu projeto acadêmico-pedagógico prevê interdisciplinaridade e grande interação com a sociedade. “Só foi possível criá-la assim porque não havia departamentos, congregação etc.”, disse. Os cursos estão organizados em três grandes centros (Ciências Naturais e Humanas; Matemática, Computação e Cognição; Engenharias, Modelagem e Ciências). Manter a interdisciplinaridade e a interação constante dos próprios professores são metas permanentes. “Se não tomarmos cuidado, os centros viram departamentos. A estrutura organizacional por si só não garante isso”, afirmou.
Para Fazzio, pensar a universidade do futuro não é um problema só da USP, mas do mundo. Na Europa, está em vários anos em discussão o Protocolo de Bolonha. “A modificação de uma estrutura já existente é complexa”, disse. Fazzio identifica problemas de formação em relação aos alunos que chegam à universidade. Apenas 15%, em média, dos professores que lecionam matemática, química e física nas escolas são graduados nessas disciplinas. “Não adianta só melhorar o salário. É preciso formar melhor o professor que vai para a escola básica e média”, disse o reitor, afirmando que essa é uma grande preocupação do ministro da Educação, Fernando Haddad.
Para Álvaro Toubes Prata, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a universidade do futuro não é única: há vários modelos. “USP, UFSC e UFABC não representam o ensino superior brasileiro, que está mal, não está bem”, diagnosticou o reitor. No universo de cerca de 2.300 instituições, registrou, o perfil dominante é do ensino privado, noturno e em escolas com menos de 5 mil alunos. Prata defendeu o investimento público no ensino superior, citando os exemplos das universidades americanas de Stanford e Harvard, que recebem respectivamente 87% e 82% de seus recursos de fontes federais. “Mesmo se os alunos de graduação da USP pagassem R$ 2 mil por mês de mensalidade, não dariam conta do orçamento atual da Universidade”, ressaltou.
Para Álvaro Prata, é preciso haver compromisso com o ensino público. “Não posso ignorar que 17 mil professores precisam ser qualificados em Santa Catarina, e isso num estado que tem bons indicadores”, disse. “Não quero discutir a universidade atendendo a si própria, mas envolvida com a responsabilidade de alterar esses números.”
O reitor da UFSC citou quatro diferentes tradições do mundo universitário: a alemã, de Humboldt, com foco na pesquisa; a inglesa, do cardeal Newman, com foco na educação; a francesa, de Napoleão, que profissionaliza; e o modelo de Tomás de Aquino, que organiza. “Nossa universidade é muito recente e traz influências de todas”, disse Prata. Para ele, a universidade do futuro terá várias missões: além de educar, pesquisar, profissionalizar e organizar o conhecimento, é preciso interagir fortemente com a sociedade, sem ignorar, por exemplo, que apenas 11% dos jovens brasileiros estão no ensino superior. “O grande desafio é o compromisso. Não há espaço para o intelectual absorto e descompromissado.”
(Jornal da USP, 24/10/2008)