O director do Instituto Potsdam de Investigação sobre Impactos Climáticos, Hans Joachim Schellnhuber, sugere um megaprojecto-piloto com 20 grandes centrais solares no Norte de África e na Península Ibérica para alimentar a Europa com electricidade.
O físico Hans Joachim Schellnhuber, 58 anos, é um daqueles cientistas a quem os políticos gostam de recorrer em busca de orientação. Sentou-se ao lado da chanceler Angela Merkel, como seu principal conselheiro em matéria de alterações climáticas, durante a presidência alemã da União Europeia e do G8 em 2007. O presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, também o chamou para integrar um grupo de alto nível que o aconselha em matéria de clima e energia. Schellnhuber está à frente de um dos mais respeitados centros de investigação sobre alterações climáticas, o Instituto Potsdam, na Alemanha, que dirige desde 1992.
Com um pé na ciência e outro na política, apresenta uma visão preocupante do aquecimento global. Mas não é pessimista: até ao final do século, diz, o mundo poderá ficar livre do carbono como fonte principal de energia. Será preciso melhorar a eficiência energética, encontrar tecnologias para enterrar o dióxido de carbono (CO2) das centrais térmicas a carvão e gás e, por fim, apostar forte na energia solar. Custa caro? Nem por isso; muito menos do que o preço da crise financeira, que mostra o falhanço da visão de curto prazo. Schellnhuber esteve em Lisboa na semana passada, para uma palestra na Fundação Calouste Gulbenkian, e conversou com o P2.
A crise financeira é razão para se adiarem medidas contra as alterações climáticas?
Schellnhuber - Acho que é exactamente o contrário. Esta bolha do investimento imobiliário dos bancos demonstrou muito claramente que o pensamento de curto prazo acaba, no final, por levar à catástrofe. Foi claramente uma onda na qual as leis da natureza, as leis do mercado e as leis da economia não se aplicavam mais. Todos na sociedade temos de pensar na sustentabilidade das nossas actividades. Há muito dinheiro à nossa volta. O dinheiro está à procura de investimentos sustentáveis, e transformar o nosso sistema energético será o maior negócio deste planeta nas próximas décadas.
Mas há muitos países que dizem que, por causa da crise, não há dinheiro para gastar com as alterações climáticas. Isto é absolutamente ridículo. É apenas um argumento que é reciclado de tempos em tempos. Não é uma questão de dinheiro, é uma questão de prioridades. De repente, há biliões de dólares disponíveis para salvar aqueles que se meteram em péssimos negócios, prejudicando a sociedade. E é engraçado que, depois deste crash do pensamento imediato, os pensadores imediatos digam: "Eu quero lucro nos próximos cinco anos e não me importa como será o mundo daqui a dez, vinte anos." É absolutamente ilógico.
Vê como um risco o facto de alguns Estados-membros da UE estarem a contestar agora as metas climáticas europeias?
Schellnhuber - O risco real é o de que todos os projectos sejam adiados - no clima, na energia, na saúde, na segurança social. Todo mundo está apenas a olhar para esta enorme serpente que é a crise financeira. A Europa deve manter o rumo, porque se não o fizer perderá toda a sua credibilidade. Pense nas grandes declarações que fizemos... Bali, a última conferência climática [da ONU], teria sido um completo falhanço sem a UE. Copenhaga [conferência prevista para 2009] será uma completa catástrofe sem a UE. A Europa perderá ainda mais capital político, não só no campo das alterações climáticas, mas como união em si.
Qual é a sua visão de soluções para a energia a curto e médio prazo?
Schellnhuber - Nas próximas duas décadas, provavelmente será aumentar a eficiência energética. Estou seguro de que em Lisboa é possível aumentar a eficiência energética, por exemplo, alterando-se os comportamentos nos transportes. Há pessoas que insistem em ficar duas horas em filas de trânsito, apenas para ter o seu próprio carro.
Mas acha que é possível alterar comportamentos no curto prazo?
Schellnhuber - É um processo lento, mas não tanto que leve um século. Acho que é possível alterar atitudes em alguns anos, na verdade. É uma questão [que envolve] educação pública, os media, debates. É algo cultural. Mas é possível e haverá avanços nos próximos dez a vinte anos.
E quanto à tecnologia?
Schellnhuber - Para o médio prazo, a tecnologia de que precisamos para proteger o clima é a da captura e armazenamento de carbono. Continuaremos a ter centrais térmicas a gás e a carvão provavelmente até 2050, particularmente no mundo em desenvolvimento. Centenas de milhares de milhões de toneladas de CO2 terão de ser armazenadas no subsolo. Depois de 2050, creio que o sistema energético mundial será direccionado para as renováveis. Até ao final do século, teremos uma sociedade livre do carbono. A questão é o que temos de fazer agora para lá chegar. A minha solução "dourada" é a energia termo-solar. Não há fonte de energia na Terra que se compare ao Sol. Duas semanas de sol nos desertos quentes do mundo contêm a mesma quantidade de energia de todo o material nuclear do mundo. Não entendo porque não fazemos tudo para ir para esta solução. Acho que será a espinha dorsal da terceira revolução industrial.
E isso atenderia à maior parte da procura energética?
Schellnhuber - Teria de se começar com um grande projecto de demonstração: uma parceria entre a Europa e o Norte de África para uma rede eléctrica inteligente, com um número de centrais termo-solares - algumas talvez em Portugal e Espanha. Depois a electricidade seria transportada em redes de alta tensão para o Norte e Centro da Europa. Custaria 40 mil milhões de euros, para 20 centrais solares, com uma potência total de 20 gigawatts. Seria o equivalente a 20 centrais nucleares, ao mesmo custo. Mas não haveria resíduos radioactivos, nem proliferação nuclear, a energia seria gratuita, não haveria o problema do pico do urânio no futuro. Teríamos de criar um consórcio, provavelmente público-privado, e encontrar esses 40 mil milhões de euros, o que não é muito dinheiro, comparado com os valores da crise financeira.
E o nuclear? Qual será o papel do nuclear?
Schellnhuber - O nuclear é uma tecnologia interessante. Mas é muito complexa, tudo tem de estar a funcionar perfeitamente. Pense numa central nuclear na Somália ou no Afeganistão. Se você não tiver um Estado estável, com uma imprensa livre e por aí adiante... É assustador pensar nisso. Mas não sou contra um portfólio onde o nuclear tenha um certo papel no médio prazo, em países com boa governança. Na Alemanha temos cerca de 15 reactores. Podemos prolongar a sua actividade por mais 10 a 15 anos. Mas construir novos reactores, esperando que esta seja a solução para o problema climático, é uma ilusão completa. Não há, no mundo todo, nenhuma empresa privada que esteja a construir uma central nuclear. É sempre o Estado. Não é uma solução vencedora. E acho que o debate está-nos a desviar de pensar na solução real.
Há este número mágico de dois graus Celsius, a partir do qual se considera que o aquecimento global terá efeitos catastróficos. É um limite político ou algo com uma sólida base científica?
Schellnhuber - É claro que não há nenhuma linha mágica da temperatura, acima da qual possamos dizer que o mundo vai entrar em colapso. Haverá impactos, sobretudo negativos, em toda a linha [de aumento] da temperatura. Mas em torno dos dois a três graus de aquecimento, há uma alteração qualitativa, o carácter dos impactos é diferente. Teremos alterações de larga escala, bruscas e irreversíveis. É o que chamamos de "pontos de viragem" do sistema terrestre. Temos uma dúzia de possíveis candidatos.
Por exemplo?
Schellnhuber - Dou-lhe vários exemplos. O primeiro é o da cobertura de gelo do Árctico no Verão, que está a diminuir rapidamente. Provavelmente, o Pólo Norte não terá gelo no Verão dentro de 20 a 30 anos. E quando o gelo tiver desaparecido, será para sempre, ou pelo menos para os próximos 50 a 100 mil anos, até à próxima Idade do Gelo. Isto resultará num enorme aquecimento do Árctico, porque a superfície do mar absorve muito mais energia solar do que o gelo, que a reflecte. Haverá, então, um aquecimento de até 10ºC, o que modificará por completo o ecossistema. Outro exemplo é o da cobertura de gelo da Gronelândia. Se derreter, haverá um aumento de sete metros no nível do mar, a nível global.
Este não é um cenário para milénios?
Schellnhuber - Infelizmente não. Agora, aponta-se para 300 anos e provavelmente [o gelo] está a derreter ainda mais rápido. Quase todos os "pontos de viragem" serão activados caso ultrapassemos os dois a três graus de aquecimento. Se quisermos evitar os maiores acidentes possíveis, temos de estar abaixo deste nível. É claro que o melhor seria manter a temperatura precisamente como ela era antes da Revolução Industrial. A melhor meta é nenhum aquecimento. Mas isto não é realizável.
Onde há mais incerteza quanto aos impactos futuros das alterações climáticas?
Schellnhuber - Um grande ponto de interrogação está no ritmo de desestabilização do metano que existe no oceano. Podem ser libertados milhares de biliões de toneladas de metano, ou podem ser 10 ou 20. Também sabemos muito pouco sobre quantas espécies podem vir a extinguir-se devido às alterações climáticas. De certa forma, pode-se dizer que quanto mais complexo o sistema, maior é a incerteza. Mas, por outro lado, também temos certezas. Por exemplo, sobre o aumento do nível do mar. Quando se olha para trás no tempo, para milhões de anos, vê-se que há uma relação linear muito simples entre a temperatura global e o nível do mar. Um grau de aquecimento significa 15 a 20 metros de subida do nível do mar no longo prazo - mesmo que leve séculos ou milénios.
Mas o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) diz, nos seus cenários, que o aumento será de cerca de até 60 centímetros neste século...
Schellnhuber - Desde o último relatório do IPCC, há novas provas que indicam que teremos pelo menos um metro de aumento do nível do mar neste século, num cenário de business as usual. Depois, e isto o IPCC também diz, a subida continuará por pelo menos mais mil anos. Se fizermos algo para combater as alterações climáticas agora, poderão ser um ou dois metros apenas. Mas podem ser 15 ou 20 metros. Pergunto-me o que isto não fará, por exemplo, ao litoral do Algarve.
Há muitas críticas sobre o IPCC, porque os seus relatórios levam em conta a opinião dos governos. Sente-se confortável com isso, como cientista?
Schellnhuber - O IPCC, como um todo, é uma boa ideia. O problema é que é muito lento, com actualização [dos relatórios] a cada sete anos. Estão praticamente ultrapassados no momento em que são publicados. Também, o IPCC tem necessidade de ser conservador. Por isso, quando o IPCC aprova algo, pode-se estar seguro de que será o que "pelo menos" teremos em termos de impactos. Precisamos do processo do IPCC, talvez reestruturado. Mas temos de estar atentos à investigação de fronteira que surge todas as semanas. Eu diria que ninguém, nem mesmo os Estados Unidos, pode ficar atrás do IPCC. Mas alguns países podem optar por andar à frente do IPCC. O IPCC é necessário, mas não é suficiente.
O que tem a dizer dos cépticos, que afirmam que as alterações climáticas não são culpa humana?
Schellnhuber - Não conheço nenhum cientista respeitado que diga que as alterações climáticas não existem ou que a humanidade não está envolvida. Alguns, muitos poucos, dizem que o aquecimento global vai ser muito mais brando do que o que os modelos prevêem. Nunca vi nenhum argumento dos chamados cépticos que fosse estável o suficiente para sobreviver ao escrutínio científico.
(Por Ricardo Garcia, Ecosfera, 21/10/2008)