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experiência com animais
2008-10-20

Ong escreve carta denunciando mutilação de sapinhos em Itatiaia. Para cientistas, é uma crítica equivocada a um método de marcação de bicho que já prestou bons serviços à conservação. 

No final de setembro, a organização não-governamental Ibioca Nossa Casa na Terra enviou uma carta para a direção do Parque Nacional de Itatiaia. O texto dizia que 400 indivíduos de uma espécie diminuta de sapos (Melanophryniscus moreirae) endêmica de campos de altitude, estavam sendo criminosamente mutilados. “Eles cortam os dedinhos do sapo com gilete, depois inflama, cria um tumor e o animal morre. Há trabalhos em inglês condenando essa técnica”, acusou a autora da denúncia, Lucila Moura, vice-presidente da Ong. O que Moura qualificou como mutilação, para muita gente, é ciência. “O corte de falange é uma metodologia barata e eficiente de marcação, o que viabiliza estudos de longo prazo sobre dinâmica de populações de diversas espécies”, diz o herpetólogo Reuber Brandão, da Universidade de Brasília.

Conhecido como ablação de dígitos, o método é usado no mundo inteiro para marcar pequenos anfíbios, répteis e mamíferos. “O 'carimbo'  permite que o biólogo avalie noções como longevidade, densidade populacional, alimentação etc”, afirma Marcelo Lima Reis, técnico da diretoria de conservação da biodiversidade do Instituto Chico Mendes e especialista em mamíferos. De acordo com ele, a técnica, apesar de dolorosa para os olhos humanos, é a melhor que existe em animais de porte mínimo.  “É preciso apenas tomar cuidado com o manejo. Isso significa não cortar mais de um dedo de cada pata e, no máximo, quatro de cada indivíduo. Mas o ideal é que não passe de três”, diz, ao explicar que os dedos não são fundamentais para o nado, alimentação ou acasalamento em determinados anfíbios.

A mesma opinião tem Sérgio Potsch, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e um dos maiores especialistas em sapos do país. Embora não goste da ablação, por sentir pena, ele afirma que a técnica não acarreta qualquer dano para as populações de anfíbios. Falar em mortes, inflamações ou problemas reprodutivos, explica, não passa de especulação. “Além disso, não é raro encontrar mutilações deste tipo – perda de dedos – em muitos animais geradas por causas naturais, sem que o animal apresente qualquer sinal de infecção ou de diminuição de aptidão, como a perda de peso, por exemplo”, diz Brandão.

A polêmica em torno da ablação não é nova e até agora não convenceu muitos cientistas. Um dos poucos que criticam o método é o britânico Robert M. May, da Universidade de Oxford, e uma autoridade em dinâmica populacional de bichos. Em artigo publicado na revista Nature, em setembro de 2004, ele afirma que a ablação de dígitos diminui a recaptura de indivíduos marcados entre 4% e 11% a cada dedo removido. Segundo May, também existe grande possibilidade da prática causar efeitos adversos em anfíbios, como inflamação e infecção nas patas e membros.

Jamie Kristine Reaser e Robert Elias Dexter, professores do Departamento de Ciências Biológicas da Universidade de Stanford, escreveram em 1996, na Revista de Herpetologia, que há evidências seguras de que o corte das falanges causa a morte de anfíbios pela perda de peso e por causar infecções e necroses generalizadas. Os estudos de May, Reaser e Dexter embasaram os argumentos de Lucila Moura e foram enviados à direção do Parque de Itatiaia e ao Instituto Chico Mendes. Os argumentos nunca encontraram eco. Primeiro porque a ablação é barata. E depois, porque ela tem sido efetiva para a conservação de espécies.

Trabalho em conjunto
A história do Melanophryniscus moreirae começou a ser conhecida no Parque Nacional de Itatiaia há cerca de quatro anos, quando a bióloga Pilar Guido de Castro deu início aos estudos de campo para seu mestrado na UERJ. A conclusão do trabalho, que usou a técnica em debate e basicamente definiu o perfil do anfíbio, rendeu frutos inesperados para a sua conservação. “Ela descobriu que a espécie se reproduz a partir das primeiras chuvas, em outubro. Nesta época, proibimos a entrada de viaturas no planalto do parque, onde eles vivem”, conta Léo Nascimento, coordenador de pesquisas da unidade de conservação.

Até dois anos atrás, aliás, a Ciência acreditava que os campos de altitude de Itatiaia eram os únicos locais onde se poderia encontrar exemplares do sapo. Hoje, no entanto, sabe-se que eles habitam também os estados de São Paulo e de Minas Gerais.

Assim que Pilar finalizou sua tese, Denise do Nascimento, doutoranda do Programa de Pós-Graduação de Biologia da UERJ, continuou os esforços. Enquanto a primeira desenvolveu uma tese para avaliar a atividade horária e anual da espécie, Denise trabalha com a dinâmica populacional. “Temos trinta unidades amostrais espalhadas pelo parque, que percorremos mensalmente. Em cada uma delas capturamos os bichos, medimos, pesamos e identificamos o sexo. Já encontrei bicho marcado pela Pilar. Ou seja, sabemos que eles vivem, pelo menos, quatro anos na natureza”, avalia a bióloga, que está em campo há três anos e tem mais um pela frente.

Além do objeto estudado, Denise e Pilar têm em comum também a orientadora, Monique Van Sluys. Doutora pela UERJ, ela é outra que defende com unhas e dentes a ablação em dígitos por considerá-la essencial para futuros projetos de conservação, apesar do relato de Robert May. “Esclareço que apenas podemos avaliar o 'status' de espécies se compreendermos sua história de vida, e isso inclui acompanharmos suas populações ao longo do tempo. Não há nenhuma evidência de que esse método afeta o mecanismo reprodutivo dos Melanophryniscus moreirae. Outra aluna minha acaba de defender o seu mestrado sobre o comportamento reprodutivo da mesma especie. O projeto teve aprovação do Ibama”, explica.

Até o momento, muito além dos 400 exemplares levantados pela Ibioca Nossa Casa na Terra, Denise já marcou com a técnica da ablação cerca de 1.900 sapos. E pretende continuar o processo até julho do ano que vem, um mês antes de sua análise de campo terminar. Para alcançar número tão grande, ela corta quatro dedos dos anfíbios, o que permite maiores combinações. Trata-se do limite que a Ciência enxerga como saudável. “Não vou chegar a cinco”, diz a pesquisadora.

(Por Felipe Lobo, OEco, 19/10/2008)


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