Estudos científicos recentes estimam que metade das doenças descritas pela medicina pode estar relacionada a “defeitos” na conformação das proteínas no organismo humano. Ainda que, no futuro, esse índice não se mostre tão elevado, decifrar o sistema que leva tais biomoléculas a cumprirem adequadamente seus papéis é um dos caminhos para tentar alcançar a cura para diversas enfermidades, notadamente as neurodegenerativas.
No Instituto de Química (IQ) da Unicamp, uma equipe coordenada pelo professor Carlos Henrique Inácio Ramos participa desse esforço. Atualmente, o grupo dedica-se a investigar aspectos relacionados à estrutura e à função das chaperonas moleculares, moléculas que auxiliam as proteínas recém-formadas a assumirem a configuração apropriada ao desempenho de suas tarefas.
Antes de detalhar o trabalho que vem sendo desenvolvido pela equipe do professor Carlos Ramos, é recomendado apresentar ao leitor as chaperonas moleculares. O nome foi emprestado do termo chaperon, que em francês significa “dama de companhia”. De acordo com o docente do IQ, é exatamente isso o que essas moléculas são. “As damas de companhia eram senhoras que acompanhavam moças jovens e solteiras em seus passeios pelas cidades francesas. O papel dessas mulheres era proteger as virtudes das donzelas, bem como facilitar a seleção de seus possíveis pretendentes. Assim como na versão humana, as chaperonas moleculares têm a missão de evitar interações prejudiciais, como a agregação, e favorecer as produtivas, como o enovelamento correto das proteínas”, compara.
Para explicar melhor como se dão essas interações, o professor Carlos Ramos lança mão de um exemplo simples. De acordo com ele, as proteínas podem ser comparadas a um colar de contas. Para desempenhar corretamente a sua tarefa, essa estrutura tem que se dobrar de modo que, por hipótese, a primeira conta fique próxima da 289ª, a 27ª junto à 8ª e assim por diante. No entanto, é preciso haver condições específicas para que as proteínas assumam a configuração final. Esse processo, que culmina com um arranjo único e funcional das proteínas, é chamado de enovelamento pelos especialistas. Ocorre, porém, que nem todas as proteínas, em especial as muito grandes e em meio muito concentrado, conseguem se enovelar como deveriam. Isso acontece, entre outros motivos, porque a temperatura do ambiente apresenta-se mais alta do que o normal.
Quando ocorre essa situação, em vez de a primeira conta do colar ficar próxima da 289ª, como seria de se esperar, ela se junta, por exemplo, a uma conta similar, mas de outra proteína. “Se a célula não agir rapidamente, esse processo dá origem àquilo que chamamos de agregados, que se depositam nos tecidos e podem provocar doenças conformacionais, tais como os males de Alzheimer e Parkinson, apenas para usar dois exemplos conhecidos”, assinala o professor Carlos Ramos. Atualmente, acrescenta ele, projeta-se que pelo menos 25% da população mundial acima de 70 anos desenvolverá alguma doença associada ao incorreto funcionamento das proteínas. “Como a tendência é de aumento da expectativa de vida de homens e mulheres, graças aos avanços da medicina, é bem provável que um número maior de pessoas sofrerá destas doenças no futuro”, alerta o docente do IQ.
Retornando às pesquisas desenvolvidas pela equipe coordenada pelo professor Carlos Ramos, os especialistas da Unicamp estão mais diretamente ligados a uma área batizada de controle de qualidade celular, um conjunto de mecanismos empregados para reconhecer e evitar os agregados protéicos. O que eles têm feito é esmiuçar as interações entre as proteínas, dando especial atenção às tarefas desempenhadas pelas chaperonas moleculares. Estão sendo estudadas proteínas humanas e de cana-de-açúcar. “Se conseguirmos compreender em detalhes como o sistema funciona, o passo seguinte será tentar intervir no processo, de forma a evitar que ocorram interações indesejáveis”, esclarece o docente do IQ. Dito de outro modo, os cientistas querem encontrar um meio de fazer com que o sistema de controle de qualidade seja mais ativo no interior das células.
Experimento realizado nesse sentido por um grupo do exterior, conforme o professor Carlos Ramos, obteve resultados interessantes. Por meio do emprego de substâncias estimulantes, os pesquisadores conseguiram ampliar a eficiência do sistema, conferindo a algumas espécies de vermes uma sobrevida extra de 50%. “O que se imagina é que uma das causas do envelhecimento é justamente a agregação contínua das proteínas, que com o tempo se acumulam e sobrecarregam o sistema de controle de qualidade. Essa equipe estrangeira utilizou como um dos estimulantes o ginseng, fitoterápico bastante conhecido no mundo todo. Como o Brasil tem uma gigantesca biodiversidade, penso que o nosso diferencial nessa área do conhecimento, que é extremamente competitiva, está justamente na exploração racional e sustentada desse patrimônio natural. É nisso que o nosso grupo está apostando”.
Até aqui, prossegue o docente, os estudos executados no IQ ainda estão na fase in vitro. Entretanto, um novo laboratório está sendo construído para dar impulso aos experimentos. A unidade, que deverá entrar em operação no primeiro semestre de 2009, permitirá que os pesquisadores passem a trabalhar também com pesquisas in vivo. Uma das expectativas dos cientistas é a utilização de organismos geneticamente modificados. Isso permitirá, por exemplo, a produção de proteínas humanas em bactérias ou plantas, de modo a verificar o comportamento dessas estruturas em determinadas condições. “Também vamos ter a oportunidade de alterar as proteínas, de forma a obter mutantes. Isso é importante porque algumas doenças estão associadas a determinadas mutações”, explica o professor Carlos Ramos.
O futuro laboratório, adianta ele, está sendo construído seguindo uma determinação institucional, segundo a qual a unidade ficará à disposição de todos os pesquisadores do IQ. “Essa postura vem ao encontro de outra orientação do Instituto, que pretende ter vários grupos atuando em Química Biológica. Essa área ainda é pouco explorada no Brasil, embora nós já saibamos que ela será indispensável se o país quiser participar seriamente de algumas atividades de caráter inovador, tais como o desenvolvimento de novas drogas”, analisa o professor Carlos Ramos.
Além de contribuir para o avanço da ciência nacional, as pesquisas desenvolvidas no IQ da Unicamp também têm proporcionado a formação de mão-de-obra qualificada para o mercado. Nos últimos anos, informa o professor Carlos Ramos, os trabalhos renderam sete teses de doutorado. Atualmente, estudos de pós-doutorado estão em andamento. “Penso que estamos dando uma boa formação para essas pessoas. A maioria dos pós-graduandos que passaram por aqui conseguiu uma boa colocação acadêmica. Isso se deve, em grande parte, ao uso do conhecimento necessário aos estudos de sistemas tão complexos. O trabalho exige além de uma abordagem multidisciplinar, o emprego de diversas técnicas, o que leva a uma preparação mais ampla dos nossos alunos”.
As pesquisas com as chaperonas moleculares não interessam apenas à medicina. O setor agrícola também pode se beneficiar de estudos como os desenvolvidos pela equipe comandada pelo professor Carlos Ramos. É que essas “damas de companhia” expressam-se principalmente em condições de estresse [o térmico é um deles], as mesmas que favorecem o enovelamento incorreto das proteínas. Traduzindo: quando as células ficam expostas a altas temperaturas, a quantidade de chaperonas em seu interior aumenta. Trata-se de uma estratégia para fazer com que as proteínas “protegidas” se enovelem de modo adequado. Ou seja, se a ciência conseguir estimular uma planta a produzir mais chaperonas que outra da mesma espécie, a primeira provavelmente se tornará mais resistente ao calor. “Diante das projeções de aumento progressivo da temperatura do planeta, esta pode vir a ser uma boa alternativa para garantir a produção de alimentos no futuro”, infere o docente do IQ.
(Por Manuel Alves Filho, Jornal da Unicamp, 19/10/2008)