Uma grande variedade de espécies ameaçadas acabam no tráfico destinado à medicina tradicional chinesa, graças à má aplicação das normas contra esse crime, alertam especialistas e ativistas. “O mercado chinês é como um buraco negro que absorve produtos da flora e fauna dos países vizinhos”, disse Peter Pueschel, diretor do Programa de Comércio de Natureza no Fundo Internacional para a Proteção dos Animais e seu Habitat (IFAW), em entrevista que deu à IPS através de correio eletrônico. A Índia, vizinha da China, é a que está mais em perigo, por ter uma vasta biodiversidade e leis mal implementadas.
De acordo com a base de dados sobre crimes contra o meio ambiente mantido pela Sociedade Protetora da Natureza da Índia (WPSI), 846 tigres, 3.140 leopardos e 585 lontras de água doce foram caçadas ilegalmente entre 1994 e 31 de agosto deste ano, e outros 320 elefantes o foram entre 2000 e 2008 na Índia. “Embora muitas espécies utilizadas na medicina tradicional chinesa agora estejam protegidas pelas leis nacionais e internacionais, o comércio e a caça ilegais aumentaram até chegar a níveis de crise, já que a popularidade da medicina tradicional chinesa se expandiu nas duas últimas décadas”, disse Samir Sinha, do capitulo indiano da Traffic, a rede de controle de comércio de fauna e flora com sede na Grã-Bretanha. “O problema está aumentando, e em sua maior parte se deve à falta de apoio político”, disse Belinda Wright, da WPSI.
Elefantes, tigres, leopardos, ursos negros, rinocerontes, serpentes, borboletas, gorilas, lontras, almiscareiros, répteis e produtos como fungos de larvas e espinhos do porco-espinho constituem a maior parte da matéria-prima para a indústria da medicina tradicional chinesa que, segundo a Interpol, vale US$ 200 bilhões por ano. “Cremos que existe um comércio organizado de produtos da natureza, mas é difícil identificá-lo”, disse Xu Hongfa, diretor da Traffic, respondente à IPS desde a China por correio eletrônico. Segundo a maioria dos especialistas em natureza, o comércio ilegal é incentivado pelo fato de as autoridades chinesas pouco fazerem para deter a indústria da medicina tradicional, porque esta é vista como parte da cultura da Ásia oriental.
Mas Pequim pode proteger vigorosamente – e o faz – certas espécies como o panda gigante, que possui status de ícone. “Caçar ilegalmente o panda gigante tem como resultado um castigo severo. Segundo as leis chinesas, quem for encontrado caçando um panda gigante será condenado a pelo menos 10 anos de prisão”, disse Xu. “O governo chinês tomou medidas para melhorar o manejo do mercado da medicina tradicional chinês, mas não tem muito sucesso”, admitiu.
“Durante cinco dias em junho deste ano, pesquisadores da Agência de Investigação Ambienta (IEA) observaram cinco comerciantes que nos anos anteriores haviam vendido peles de grandes felinos asiáticos”, disse Debbie Banks, da EIA, com sede em Londres, acrescentando que as autoridades chinesas não agiram com base na informação que lhes foi passada. “Passamos informação suficiente às autoridades encarregadas de aplicar as leis, para que tomassem as medidas adequadas. É evidente que elas fracassaram na implementação efetiva contra os infratores persistentes. Não seria apropriado nós mesmos publicarmos seus detalhes”, acrescentou.
Pueschel se referiu a uma reserva de 110 toneladas de marfim que desapareceram enquanto estavam sob custódia do governo chinês, em julho deste ano. “O ponto principal aqui é que estes incidentes não foram levados a serio. Continua não sendo claro para onde foi o marfim. Apesar disto, a China foi designada país importador de marfim (“sócio comercial”) apoiado pela secretaria da Convenção sobre Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas de Fauna e Flora Silvestres (Cites).
Em maio de 2006, foi descoberto o envio de 3.900 quilos de dentes de marfim escondidos em um contêiner cheio de troncos confiscados por funcionários aduaneiros em Hong Kong. O episódio revelou os engenhosos métodos usados pela máfia da natureza. “Os tamanhos padrões dos pedaços de marfim tornam mais fácil escondê-los dentro de qualquer tipo de material de embalagem”, explicou Pablo Tachil, pesquisador de fauna e flora radicado em Bangalore.
Segundo Tachil, a Birmânia surgiu como importante escala para o comércio de natureza, por ficar perto da Índia e dos principais mercados do sudeste asiático. “A Birmânia também é uma guarida ideal para caçadores ilegais e comerciantes, devido ao fraco controle”, acrescentou. O que preocupa os ativistas é a contínua demanda por produtos derivados da fauna e flora em todo o mundo. A popularidade dos objetos feitos com marfim, por exemplo, cresceu apesar do claro perigo que representa para as populações de elefantes, e isto, segundo Pueschel, se deve em parte ao fato de sites comerciais da Internet, como o eBay, facilitarem um comércio ambicioso. “Continuamos fazendo campanha para que eles proíbam todo comércio de natureza”, afirmou.
Um informe apresentado pelo IFAW em 2007 revelava que todas as listas de marfim investigadas no eBay eram legalmente suspeitas. Embora o eBay alegue que seu site permite aos “compradores ver o positivo impacto social e ambiental” de cada compra, incluindo se a mesma “apóia a preservação de espécies animais”, os ativistas dizem que nada é feito em matéria de controles. O animal que corre mais risco de terminar como matéria-prima para a medicina tradicional chinesa é o tigre, porque historicamente é reverenciado na China como símbolo do poder e da força e está arraigado à crença de que seus produtos têm potentes propriedades medicinais. Há apenas um século havia oito tipos de tigres, com cerca de cem mil animais selvagens no mundo. Hoje restam apenas cinco subespécies deste animal, com menos de cinco mil indivíduos selvagens no mundo.
Para a Índia, a boa notícia é que acontecimentos como a completa extinção da população de tigres na reserva de Sariska, no Estado de Rajasthan, entre 2002 e 2005, ficou na mente do público e ajudou as autoridades a se certificarem de que os traficantes fossem presos e obrigados e prestar contas. Também na Índia, vários indivíduos de alto perfil foram presos e interrogados nos últimos anos por caça ilegal, o que teve como resultado uma ampla publicidade em favor da natureza. Isto inclui os conhecidos atores cinematográficos Sanjay Dutt e Salman Khan e o ex-capital de cricket mansur Ali Khan Pataudi.
Em junho, dois cidadãos checos foram condenados por tentarem contrabandear Delias sanaca, uma espécie de borboleta ameaçada presente na lista do Programa I da Lei Indiana de Proteção da Natureza, no Parque Nacional Singalila, perto de Darjeeling. E em setembro um deles foi condenado a pagar multa de US$ 1.300 e a três anos de prisão. Estes casos percorrem um longo caminho na hora de ajudar as autoridades a impedir crimes contra a natureza, disse à IPS Utpal Kumar Nag, guarda-florestal em Darjeeling.
(Por Malini Shankar*, Envolverde, 15/10/2008)
* Malini Shankar é um famoso repórter fotográfico e documentarista especializado em flora e fauna.