A crise que está afetando os mercados bancários e as bolsas de valores em todo o mundo pode contribuir para a expansão das indústrias extrativas na região andina sul-americana, alertam especialistas. Investidores do mundo industrializado podem se sentir estimulados a buscar projetos alternativos para a liquidez financeira, afetada pela queda das bolsas nas últimas semanas, disse ao Terramérica Stewart Maginnis, diretor do Programa de Conservação Florestal da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN). O debate sobre as repercussões ambientais da crise financeira atraiu a atenção de muitos no Congresso Mundial da Natureza, que a UICN realiza na cidade espanhola de Barcelona, desde o dia 5 até o dia 14 deste mês, com a presença de aproximadamente oito mil especialistas.
Mas a incerteza é tamanha que alguns prevêem menor pressão sobre os recursos naturais e outros, o contrário. “Devido ao alto preço atual dos combustíveis, um investimento atraente no momento é a expansão de indústrias extrativas”, disse Maginnis, o que seria um risco para a proteção de áreas como as florestas e selvas amazônicas da Bolívia, Colômbia, Venezuela, Equador e Peru. O fenômeno poderia se acentuar pelas já favoráveis políticas aplicadas às indústrias extrativas pelos países da Comunidade Andina de Nações (CAN) - Colômbia, Equador, Peru e Bolívia - e que se chocam com interesses e concepções de desenvolvimento de comunidades indígenas. Esta contradição ficou palpável em Barcelona, em um debate entre especialistas ambientais, delegados governamentais e representantes das comunidades indígenas dos quatro países da CAN.
“Nossa idéia de desenvolvimento não coincide com a do homem branco. Para nós, o mais sagrado é proteger a Mãe Terra. Para as empresas e os governos, perfurar buracos nela é parte do desenvolvimento”, disse ao Terramérica Gerardo Macuna, representante de comunidades indígenas da Colômbia. Por outro lado, para Francisco Dallmeier, biólogo do Centro para a Conservação, Educação e Sustentabilidade do Instituto Smithsonian, dos Estados Unidos, “algumas áreas de exploração de hidrocarbonos (na América do Sul) atendem padrões de conservação biológica de alto nível”. O gasoduto Brasil-Bolívia, inaugurado em 1999 pela Petrobras, “é um desses exemplos de excelente gestão ambiental de uma exploração de hidrocarbonos”, afirmou Dallmeier.
Em uma posição intermediária, o pesquisador Cessar Ipenza, da Associação Peruana para a Conservação da Natureza, afirmou que “precisamos desenvolver ferramentas de pesquisa e avaliação que nos permitam conciliar a exploração dos recursos hidrocarboníferos como fatores de desenvolvimento com a efetiva preservação da biodiversidade nas áreas protegidas da Comunidade Andina”. A região andina é rica em jazidas de petróleo e gás. De acordo com dados oficiais mais recentes da CAN, de 2004, a produção de petróleo e derivados na Colômbia era de 686 mil barris diários. A Bolívia produz 41 milhões de metros cúbicos de gás por dia, exporta 35 milhões para Brasil e Argentina e consome apenas seis milhões de metros cúbicos.
É difícil conciliar esta enorme fonte de riqueza com a conservação ambiental e as normas aplicáveis às áreas protegidas, o que também desafia a vigência de convênios internacionais ratificados pelos países da CAN, como o Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que protege os direitos dos povos indígenas. Governos e comunidades indígenas interpretam o texto do Convênio de maneira divergente. O artigo 6 desse documento estabelece que “os governos deverão: a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e em particular por meio de suas instituições representativas, cada vez que forem previstas medidas legislativas ou administrativas que possam afetá-las diretamente”.
“Para os governos da CAN, este artigo apenas os obriga a consultar as comunidades indígenas, entendendo que os deixa em liberdade para decidir as políticas para as indústrias extrativas”, disse ao Terramérica Maria Amparo Albán, advogada e consultora ambiental equatoriana. Praticamente, nenhum governo do bloco andino está disposto a impedir as empresas extrativas de operar nas áreas protegidas e que correspondem ao hábitat de povos indígenas “apenas por razões de conservação da biodiversidade”, acrescentou a especialista.
As comunidades indígenas, por sua vez, interpretam o Convênio “como lhes dando poder de decisão sobre as políticas extrativas que acontecem em seus territórios”. Esta interpretação é sustentada pelo artigo 7, que estabelece que “os povos interessados devem ter o direito de decidir suas próprias prioridades no tocante ao processo de desenvolvimento, na medida em que este afetar suas vidas, crenças, instituições, bem-estar espiritual e as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural”, afirma Albán.
Para Óscar Castillo, especialista boliviano em Hidrocarbonos da Wildlife Conservation Society, “o desafio para a região andina é fazer uma análise integrada, supranacional, dos impactos ambientais das indústrias extrativas, para conceber políticas supranacionais para toda a região”. Mas, segundo Albán, essa política supranacional hoje é impossível dentro do bloco. “Os conflitos internos da CAN, derivados das diferenças ideológicas que separam Colômbia e Peru, de um lado, e Equador e Bolívia, de outro, paralisaram qualquer avanço na integração regional”, disse. Em razão desse conflito, a Venezuela já se retirou da Comunidade Andina.
Mais de 180 campos de petróleo e gás se estendem pela Amazônia ocidental, que compreende os cinco países andinos, e 72% do território selvagem do Peru coincide com planos de exploração de hidrocarbonos, afirma uma pesquisa publicada em agosto pela revista científica PLoS ONE. Em tempos de incerteza, muitos outros interesses podem ir em busca desses tesouros, segundo Maginnis. “Esta expansão ocorre à custa de nossos povos, e da Mãe Terra”, disse José Antúnez, líder de uma comunidade asháninka do Peru.
(Por Julio Godoy*, Envolverde, Terramérica, 13/10/2008)
* O autor é correspondente da IPS.