Apenas 31 indivíduos do gavião-de-pescoço-branco foram avistados no pouco de Mata Atlântica que restou entre Pernambuco e Alagoas.
Há pouco mais de um ano, quando o pesquisador Francisco Dénes focalizou o binóculo na ave que cruzava a Estação Ecológica de Murici, em Alagoas (PE), foi necessário conter a empolgação. As lentes mostravam um exemplar do gavião-de-pescoço-branco (Leptodon forbesi), espécie que figurou por quase noventa anos nas listas brasileiras como um grande ponto de interrogação, já que não havia consenso na comunidade científica sobre sua existência. Seria ele uma espécie peculiar ou apenas uma variação morfológica do gavião-de-cabeça-cinza (Leptodon cayanensis) em fase imatura? Naquela manhã chuvosa de outubro, Dénes começava a formular sua resposta à pergunta. O resultado do trabalho, prestes a ser publicado, confirma a diversidade da fauna brasileira e também a forma como o país muitas vezes a negligencia: o gavião-de-pescoço-branco já “nasce” sob ameaça de extinção e à parte de qualquer programa que se proponha a conservá-lo.
A história desta espécie de gavião – e as dúvidas sobre ela - começa no final do século XVII, quando o ornitólogo londrino William Forbes coletou um exemplar da ave no nordeste brasileiro e a classificou como uma variante do gavião-de-cabeça-cinza. Em 1922, começava a se delinear a possibilidade de uma nova espécie, quando outro ornitólogo inglês, Harry Swann, descreveu o animal, batizando-o com o nome do pesquisador que o havia coletado, L. forbesi. No entanto, a ave não foi reconhecida por muitos pesquisadores e permaneceu em uma “zona cinzenta” da ornitologia por várias décadas seguintes. Nem mesmo a coleta de outros três exemplares, há cerca de 22 anos, depositados no Museu Nacional do Rio de Janeiro, ajudou a melhorar o status do animal.
A trajetória da ave nos anais da ornitologia começou a mudar entre 2004 e 2005, quando o professor da Universidade de São Paulo Luis Fábio Silveira decidiu reorganizar a coleção do Museu de Zoologia da instituição. Na época, ele constatou que o exemplar lá classificado como gavião-pombo (Leucopternos lacenulatos) possuía características morfológicas diferentes em relação a esta espécie e era idêntico ao gavião-de-pescoço-branco que Swann havia depositado em Londres, o que indicava que o animal realmente existia por aqui.
Sua história de identificação ainda conta com o trabalho de outros três pesquisadores - Glauco Alves Pereira, Sidnei Dantas e Maurício Periquito -, que em 2006 fizeram um “possível” registro da ave em Pernambuco. Na ocasião, foram gravadas imagens em vídeo e o som que o bicho emitia, mas nem isso foi capaz de provar de que se tratava mesmo de uma espécie única. “Na época eu já tinha certeza que era um forbesi, mas alguns pesquisadores ainda diziam que não, por isso colocamos como ‘possível registro’ em nosso trabalho”, explica Glauco Pereira.
Enigma decifrado
Com bibliografia em mãos e o estímulo de Silveira, Francisco Dénes decidiu resolver de vez o enigma. O primeiro passo foi estudar as variações do gavião-de-cabeça-cinza para que nenhuma dúvida pairasse sobre as diferentes espécies. Para isso, ele passou por arquivos dos museus de Londres, Berlim, Rio de Janeiro e São Paulo. Foram mais de 100 exemplares estudados.
Na segunda etapa, foi formada uma equipe internacional para confirmar se os diagnósticos do forbesi estavam presentes em mais indivíduos e verificar quantos exemplares ainda existiam pela região neotropical. No grupo estavam nomes bastante conhecidos da ornitologia, como Bill Clark, Jean-Marc Thiollay, Russell Thorstrom, Sergio Seipke e Marco Granzinolli. Nas saídas a campo, os pesquisadores passaram por vários fragmentos entre o norte de Alagoas e o sul de Pernambuco, como a Mata do Coimbra (AL), Engenho Cachoeira Linda (PE), além da Estação Ecológica de Murici (AL). Em outubro passado, ainda durante a primeira expedição, foram avistados os primeiros gaviões-de-pescoço-branco. “Fui a campo pensando que a espécie não era válida, mas ficamos muito empolgados quando a avistamos. Foi uma sensação de dever cumprido”, diz Dénes.
O gavião-de-pescoço-branco é endêmico do Nordeste do Brasil, sendo encontrado apenas nos estados de Alagoas e Pernambuco. Até o momento, a equipe de Dénes fez 31 registros do animal, sendo 11 casais. Todos apenas na pequena área de mata da região, hoje quase 90% tomada por canaviais e pasto. Seu principal inimigo é a perda de habitat e a morte por captura, pressões potencializadas pela falta de unidades de conservação na área.
A ave possui cerca de 50 centímetros de comprimento e alimentação generalista, que inclui pequenos invertebrados e insetos. A espécie se diferencia do gavião-de-cabeça-cinza pelo pescoço branco, as penas também brancas na parte inferior da asa e por uma disposição peculiar de faixas brancas ao longo da cauda, que podem variar de acordo com o indivíduo. Esta última característica foi, durante todo o tempo, a principal forma usada por ornitólogos para diferenciar as espécies. “O que era a principal diagnose, na verdade, não é, Por isso tantas dúvidas”, explica Dénes.
Segundo Glauco Alves Pereira, o pesquisador pernambucano que avistou os animais em 2006, o trabalho de Dénes é importante porque confirma, com “100% de certeza”, que os gaviões avistados tratam-se de uma espécie diferenciada e não de um polimorfismo dos gaviões-de-cabeça-cinza. “O trabalho também vai contribuir para saber qual é real distribuição da ave”, argumenta.
Atualmente, Francisco Dénes se prepara para defender a tese que fez sobre o assunto e trabalha em um artigo que oficializará o registro da espécie para o Brasil. No próximo mês, ele deve deixar a escrivaninha e partir novamente para a mata nordestina, onde pretende coletar mais dados morfológicos, alimentares e reprodutivos sobre a espécie. Como a perda de apenas um indivíduo já traria grande impacto sobre as populações, a equipe de pesquisadores fez a escolha de não abater os animais, mas apenas observá-los em seu habitat. Por isso, não adianta recorrer a museus para estudar esta “nova” espécie. Vai ser preciso colocar o binóculo para funcionar.
Esforço de preservação
A luta pela identificação correta da espécie não está ligada somente ao prazer de dissolver um enigma, mas principalmente para garantir que medidas de preservação sejam tomadas pelos órgãos competentes. O gavião-de-cabeça-cinza – com o qual a “nova” espécie foi confundida durante décadas - é abundante em toda a Mata Atlântica, o que faz com que seu status de vulnerabilidade não seja considerado crítico.
Já o gavião-de-pescoço-branco, cujas populações são extremamente reduzidas, segundo levantamento de Dénes, necessita de esforços para que sua espécie não acabe vítima de um caçador ou da falta de habitat. “Se confirmado o número reduzido de indivíduos, o gavião-de-pescoço-branco estará entre as cinco espécies de gavião mais ameaçadas do mundo e a mais ameaçada da América Latina”, diz o professor Luis Fábio Silveira.
Segundo ele, trabalhos como o de Francisco Dénes provam a importância de uma taxonomia – a ciência da classificação e identificação - bem feita, já que ainda há muitas sub-espécies que precisam de pesquisas para confirmar se são válidas ou não, e seu grau de vulnerabilidade na natureza. “Precisamos continuar com o esforço de fazer revisões taxonômicas das aves brasileiras”, defende Silveira. Entre as espécies que guardam informações ainda desconhecidas estão as famílias dos andorinhões, dos papa-moscas e dos papa-formigas, por exemplo. Para elas, e talvez muitas outras, uma espera de 90 anos por estudos que contribuam para sua preservação pode ser fatal.
(Por Cristiane Prizibisczki, OEco, 13/10/2008)